Um projeto no interior do Ceará de exploração de colofanito, urânio associado ao fosfato, em discussão há mais de 50 anos, começa a avançar. O consórcio entre a estatal Indústrias Nucleares do Brasil (INB) e a Fasnor – Galvani S.A. visa explorar a principal mina de urânio do País e a quinta maior do mundo, situada entre os municípios de Santa Quitéria e Itatira, no sertão cearense, a cerca de 220 quilômetros de Fortaleza. No fim de maio, a Comissão Nacional de Energia Nuclear concedeu aval à primeira etapa do processo de licenciamento. Segundo a CNEM, a proposta atende de forma “satisfatória” aos requisitos técnicos e geológicos. No início de junho, o Ibama publicou no Diário Oficial o aceite do projeto, a quarta versão do Estudo de Impacto Ambiental apresentado pelo consórcio, documento com mais de 15 mil páginas. No fim de 2022, o órgão havia solicitado a revisão do documento, depois de ter negado duas versões anteriores, em 2004 e 2011.
A exploração preocupa moradores da região e ambientalistas. No ano passado, o Conselho Nacional de Direitos Humanos realizou uma missão in loco para analisar o Projeto Santa Quitéria e constatou uma série de irregularidades e alto risco de contaminação pela radiação gerada pelo urânio. Além disso, a histórica escassez hídrica na região, em tese, inviabilizaria o empreendimento. De acordo com moradores das comunidades próximas à jazida, mensalmente, cerca de 30 carros-pipa abastecem as localidades por conta da constante falta d’água, quantidade insignificante quando comparada à previsão de consumo da mina. “São cerca de 855 metros cúbicos por hora, numa região semiárida, e essa água seria retirada do Açude Edson Queiroz, fonte de abastecimento dos municípios da região. Esse consumo certamente comprometerá a segurança e a soberania alimentar das comunidades camponesas, dos assentamentos e das colônias de pescadores existentes naquela área”, denuncia Raquel Rigotto, professora do departamento de saúde comunitária da Universidade Federal do Ceará e integrante da Articulação Antinuclear do estado.
O problema hídrico foi um dos motivos que levaram o Ibama a negar um dos licenciamentos. Como forma de driblar o problema, o consórcio assinou um acordo com o governo do Ceará, à época sob o comando do atual ministro da Educação, Camilo Santana, que viabilizaria a infraestrutura necessária, como a construção de barragens. “Fica evidente que a escassez hidráulica no sertão não é pela falta d’água, mas pelos interesses políticos que historicamente definem quem pode ter acesso à água e quem não pode”, critica Pedro D’Andrea, da direção nacional do Movimento pela Soberania Popular na Mineração. “Como é que numa região seca o governo resolve investir numa usina e não nas comunidades para atender aquela população?”, pergunta Virgínia Berriel, do CNDH. “Temos uma Política Nacional de Recursos Hídricos de 1997 com princípios claros: em casos onde houver situações de estresse hídrico, devem ser priorizados os abastecimentos dos humanos e dos animais. Estamos num contexto de mudanças climáticas, no meio do sertão central do Ceará, em um município inserido em um processo de desertificação, e o empreendimento requer milhares de litros de água por dia. Isso também fere a Política Internacional de Recursos Livres”, avisa D’Andrea.
Além dos riscos associados ao minério, há a disputa pela água em uma região seca
Em maio do ano passado, o governador Elmano de Freitas recebeu representantes do Consórcio Santa Quitéria, que apresentaram a essência do projeto e saíram do encontro com a garantia de renovação do memorando que viabiliza a construção do complexo mineroindustrial. “Tivemos a oportunidade de dialogar com o governador e detalhar o projeto, extremamente importante e benéfico para o Ceará e o Brasil. Vamos, de maneira responsável, disponibilizar produtos inovadores e os mais limpos e de maior pureza do mercado, impulsionando a agricultura e a pecuária das regiões Nordeste e Norte, gerando novas oportunidades de negócios nesses setores e diminuindo a enorme e incômoda dependência de importações de fertilizantes fosfatados”, comentou Rodolfo Galvani Júnior, representante da Galvani, em texto publicado no site do consórcio. Procurado pela reportagem, o governo do Ceará não atendeu aos pedidos de esclarecimento.
Raquel Rigotto enumera as consequências da contaminação radioativa, caso a mina de urânio e fosfato comece a ser explorada. “O risco é alto, seja para os trabalhadores no empreendimento, caso ele eventualmente venha a ser aprovado, seja para as populações do entorno, a partir de emissões atmosféricas de poeiras e gases radioativos, como o radônio, e da possibilidade de contaminação das águas superficiais e subterrâneas. Na região estão as nascentes e os principais afluentes de rios muito importantes no estado, Aracatiá, Caraú, Curu e Aracatiá Sul, que correm até a zona litorânea, de forma que a contaminação desses cursos d’água seria levada para todo o território cearense. Isso implica sérios problemas para a saúde, especialmente em termos de cânceres e de más-formações congênitas, pelos prejuízos que as radiações ionizantes são capazes de causar no DNA.”
Guilherme Zagallo, responsável pelo relatório produzido pela CNDH, cita a visita a algumas comunidades próximas à jazida, nas quais foi constatada a incidência de mortes por neoplasia no período 2012 e 2021 superior à média do estado. “Enquanto a média do Ceará foi de 1,06 casos de óbitos por mil habitantes em 2019, em Santa Quitéria foi de 87, no assentamento de Morrinhos foi 2,58 e em Queimadas 5,75”, compara. “Às vezes, a contaminação se dá pelos lençóis freáticos, mas também porque nas pesquisas realizadas na década de 1970 para identificar o tamanho do corpo, foram construídas galerias e retirado muito material, milhares de toneladas, manuseado por gente dessas comunidades.” D’Andrea acrescenta: “Na medida em que você contamina o solo, a água e o ar, também estará contaminando as produções agrícolas. Consequentemente, baixa a capacidade de produção, vêm o adoecimento da população e a queda da produtividade, e isso incide sobre o padrão de segurança alimentar. O grande problema da mineração de urânio não é o urânio em si, mas a cadeia de transformação, os chamados filhos do urânio. Você tem um conjunto de metais pesados muito prejudiciais à saúde, porque permanecem durante muito tempo na natureza. E um deles chama-se gás radônio, que, se soprar vento de até 15 quilômetros por hora, pode chegar a até mil quilômetros de distância. A maior causa de câncer de pulmão no mundo é o tabagismo e a segunda é o gás radônio. E esse gás não tem cheiro, não tem cor, não tem como controlar.”
Ao menos dois familiares de Ingrid Souza, moradora de Queimadas, desenvolveram câncer e a principal suspeita é de que a origem tenha sido a radiação do urânio. O avô trabalhou na escavação das galerias e faleceu em 2020, depois do diagnóstico avançado. A avó, incumbida de lavar o uniforme do marido, descobriu o câncer no início e conseguiu tratar e conter o avanço da doença. “Sabemos que esse projeto vai causar muita destruição para a nossa região, não vai servir para nós. É um empreendimento de morte. Em vez desse empreendimento, cobramos do governo água para as nossas comunidades”, pede Ingrid. A população da região, diz, não foi ouvida sobre o projeto, o que fere a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, da qual o Brasil é signatário. Pela norma, as comunidades tradicionais devem ser consultadas sempre que medidas legislativas ou administrativas possam afetá-las diretamente. Segundo a AAC, na região existem mais de 150 comunidades camponesas, em torno de 35 terras indígenas em processo de demarcação, 16 quilombos, além de 28 povos de terreiro. Na aldeia Quixaba, a 22 quilômetros da mina, há um sítio arqueológico registrado, com objetos tupi-guarani de mais de 300 anos, igualmente sob risco.
Os moradores temem a contaminação, o consórcio cita a geração de milhares de empregos
Segundo o Consórcio Santa Quitéria, as rochas com fosfato e urânio serão retiradas da mina, britadas e depois moídas, para, então, passarem pelo processo de calcinação, que separa os minerais e resulta num concentrado de rocha fosfática. Na sequência, o produto é submetido a um processo industrial para extrair o ácido sulfúrico, essencial para se obter o ácido fosfórico, que passará por uma etapa de purificação para separar integralmente o urânio do fosfato e dar origem a dois novos produtos: o ácido fosfórico sem urânio e o licor de urânio. O licor é transformado numa pasta que, depois de seca, vira um pó, embalado e transportado até o Porto do Pecém, de onde seguirá para exportação. “De volta ao Brasil na fábrica da INB no Rio de Janeiro e depois de submetido a outros processos industriais, o urânio é utilizado na fabricação do combustível que gera energia nas usinas nucleares”, explica um vídeo institucional do projeto. O ácido fosfórico, por sua vez, é a base de fertilizantes e de um composto usado na nutrição animal e deve, prioritariamente, abastecer agricultores e pecuaristas do Nordeste e do Norte. A produção anual prevista é de mais de 1 milhão de toneladas de fosfatados, entre fertilizantes e produtos para alimentação animal, e 2,3 mil toneladas de concentrado de urânio para a geração de energia elétrica.
Até o fim do ano, o Ibama decidirá se emite ou nega uma licença prévia de exploração. O passo seguinte é a licença de instalação, que vai analisar mais detalhes do projeto. A terceira fase avalia a operação em si. Cada fase dura, no mínimo, dois anos. O consórcio garante, em todas as etapas, o controle ambiental do processo e promete gerar quase 3 mil empregos diretos