Continuando com as memórias (II), por Izaías Almada

Ano de 1968

O companheiro que fazia às vezes de motorista, Ladislau Dowbor, percebeu quando uma viatura da polícia civil emparelhou-se com o fusca em que estavam numa das avenidas da zona sul da cidade. Avançou o sinal vermelho. Correria, perseguição, tiros. Até que foram todos parar na décima sexta delegacia em Vila Mariana.

Um tira pernambucano, mau como uma cobra, arrancava tufos de cabelo do bigode de Pedro, enquanto os outros levavam golpes de telefone, socos e pontapés. Conseguiram os quatro, a muito custo e graças à ineficiência dos estúpidos policiais, acostumados ao trato com marginais, conseguiram inventar uma história de que rodavam ali pela cidade à procura de mulheres. Mas quem iria acreditar numa bobagem daquelas?

Quatro marmanjos dentro de um fusca, todos armados, e ainda por cima faltando o rádio/toca fitas. O carro era roubado, diziam os tiras. Não, não é, o fusca é emprestado, retrucavam os “guerrilheiros”.

Durante essa conversa fiada, os quatro companheiros levaram porrada de todos os lados. Até que chegou a confirmação: Pedro era mesmo jornalista da Folha de São Paulo. Ninguém sabia o que fazer… Nem os guerrilheiros, nem a polícia.

O delegado resolveu a questão mandando todos para o DEIC no bairro da Luz. O carro, afinal, era mesmo emprestado. Para Pedro e os companheiros havia apenas uma questão de honra: não falar nada sobre política, nada sobre a organização guerrilheira a que pertenciam. Ficaram quase uma semana à espera do habeas corpus. Cada um foi jogado numa cela junto a todo tipo de marginais. Nenhuma palavra sobre o que de fato faziam àquela hora da noite.

Responderam processo por porte ilegal de armas e pagaram multa de vinte cruzeiros, o dinheiro da época.., Na sua cela, Pedro ainda viu um homem com mais de sessenta anos ser surrado quase até a morte sem nada poder fazer. Abuso de menor, disseram os outros presos, é melhor você ficar quieto.

As primeiras experiências de Pedro no cumprimento de tarefas políticas geralmente não eram lá muito bem sucedidas. Ainda jovem em Belo Horizonte, quando os comunistas apoiaram a posse de Jango após a renúncia de Jânio Quadros em 1961, recebeu a tarefa de – junto a um companheiro de sua base secundarista do Colégio Estadual – tentar impedir a circulação dos ônibus urbanos, obstruindo as portas de uma garagem da periferia.

Os dois pirralhos não sabiam como convencer, às quatro da matina, aqueles trabalhadores ainda sonolentos e mal encarados alguns deles.

Não conseguiam explicar muito bem qual a relação entre parar os transportes na cidade e a posse do vice-presidente eleito. Enquanto balbuciavam mal os seus argumentos, discutidos na agitada reunião do partido na noite anterior, motoristas e cobradores ajeitavam-se em seus veículos, enfileirando-se para deixar a garagem.

Os pequenos agitadores acabaram por se transformar nos dois primeiros passageiros do dia daquela empresa, voltando ambos para o centro da cidade num dos próprios ônibus que, por tarefa política, deveriam parar.

Na delegacia da Vila Mariana, dez anos depois, enquanto levava porradas do tira pernambucano, Pedro não podia deixar de lembrar da aventura em Belo Horizonte. Riu, apesar da desgraça momentânea. O pior, no entanto, para o grupo revolucionário e para o Brasil ainda estava por vir…

Lembrar muitos anos depois que o motorista do fusca que se precipitou avançando o sinal vermelho era Ladislas Dowbor, que é hoje um dos bons economistas brasileiros, não deixa de ser gratificante do ponto de vista da solidariedade e do desejo de justiça social, desejos que expressavam a decisão correta – no seu entender – pela opção da luta armada.

A História já havia demonstrado, após o final da Segunda Grande Guerra, com inúmeras provas ao redor do mundo, que um país em desenvolvimento só conseguiria ser independente e soberano se cortasse as amarras que lhe prendiam por ardilosos golpes e dependências econômicas aos países mais ricos, sobretudo quando havia a interferência direta dos Estados Unidos da América., cuja “democracia” era exaltada pela imprensa do mundo ocidental e “imposta” a vários países através de golpes de estado, prisões e torturas.

Izaías Almada é romancista, dramaturgo e roteirista brasileiro nascido em BH. Em 1963 mudou-se para a cidade de São Paulo, onde trabalhou em teatro, jornalismo, publicidade na TV e roteiro. Entre os anos de 1969 e 1971, foi prisioneiro político do golpe militar no Brasil que ocorreu em 1964.

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Last Update: 11/02/2025