Continuando com as memórias (I)

por Izaías Almada

Ano de 1968

O dever de todo o revolucionário é fazer a revolução: a frase de Ernesto Che Guevara, assassinado em 1967 na Bolívia tinha, naqueles dias, o peso de um dogma religioso.

Há um ano, ou pouco mais, Pedro vinha fazendo pequenos treinamentos de guerrilha na Serra do Mar em alguns finais de semana. Exercícios de tiros, primeiros socorros e grandes caminhadas pela mata atlântica… Morria de medo de encontrar cobras venenosas pelo meio do caminho, mas sempre calou diante dos companheiros sobre o pavor que sentia por esses animais repelentes.

Atravessava um riacho já perto de Santos, quando perdeu o pé. Ficou se debatendo até que um dos companheiros arrastou-o para a margem. Gozação, susto, risos. E daí?

Guevara tinha asma e nunca ninguém disse nada! Mas era o Guevara. Afinal, um guerrilheiro com pavor de cobra e que não sabia nadar muito bem não podia ser orgulho de nenhuma revolução.

Passada a fase da preparação física, dos exercícios na mata, dos tiros ao alvo, transformou-se em militante urbano de uma organização que defendia a luta armada para a tomada do poder e a implantação do socialismo no país. Levara meses para tomar essa decisão, a mais séria da sua vida até então.

Tinha vida legal com profissão e endereço definido e, como jornalista, trabalhava na Folha de São Paulo, fazia parte de uma célula de contrainformação. Para provar sua disposição e sua consciência revolucionárias deveria – no entanto – realizar uma ação armada. Era a regra.

Achou isso uma contradição no seu caso, pelo simples fato de levar uma vida legal e não clandestina. E se fosse preso? Abandonaria assim, sem mais nem menos a família, o emprego, os amigos?

Resolveu correr o risco e não questionar o procedimento, pois queria e precisava botar à prova sua própria coragem, sua habilidade numa situação limite. Isso sem contar que era uma oportunidade para avaliar suas próprias convicções ideológicas. Não tomara a decisão, junto com centenas de outros companheiros, de fazer a revolução?

Iria, pois, conviver com esse conflito nos próximos anos. Provavelmente para o resto da sua vida. Não era uma escolha intelectual ou passional qualquer, pensava, mesmo considerando a sua origem proletária, o que também não era lá motivo suficiente para justificar a escolha. Os companheiros firmes no marxismo discordavam.

Merda! Tinha sempre essa mania de pensar em tudo, duvidar de tudo. Ia enfrentar um inimigo poderoso e sem piedade. Poderia ser torturado, morrer com um tiro na nuca. Era isso o que mais temia: morrer com um tiro na nuca.    

Chegou a ter um pesadelo, onde era perseguido pela polícia e levava um tiro nas costas, mas a bala ficava encravada junto à coluna, como a maçã encravada no corpo de Gregor Samsa personagem de Franz Kafka em “A Metamorfose”.

Corria e tentava desesperadamente tirar a bala das costas sabendo que, se conseguisse tirá-la, não morreria. Corria, corria, até acordar com o corpo todo suado numa madrugada fria de inverno.

 Com mais três companheiros, Pedro foi incumbido de expropriar um carro para ser utilizado num assalto a banco. Encheu-se de coragem e, no dia marcado, quase não conseguiu se concentrar no trabalho do jornal.

Trabalhava na Reportagem Geral da Folha de São Paulo, sob o comando de Claudio Abramo. Às sete e meia da noite deixou a redação e foi para a Praça Buenos Aires encontrar os companheiros Wilson Fava e o “Portuga”, de quem não sabia o verdadeiro nome.  Desastre total.

(CONTINUA)

Izaías Almada é romancista, dramaturgo e roteirista brasileiro nascido em BH. Em 1963 mudou-se para a cidade de São Paulo, onde trabalhou em teatro, jornalismo, publicidade na TV e roteiro. Entre os anos de 1969 e 1971, foi prisioneiro político do golpe militar no Brasil que ocorreu em 1964.

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Last Update: 08/02/2025