Constitucionalização do Sistema Único Policial (SUP)?
por Jacqueline Muniz
Introdução
A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) da Segurança Pública, entregue recentemente ao Congresso Nacional pelo Executivo, corresponde a uma tentativa de reformular as bases político-normativas da segurança pública no Brasil. Busca-se, idealmente, delimitar as competências federativas e, com isso, reorganizar as forças policiais federais, estaduais e municipais. Trata-se, em sua ambição, de criar um “sistema”, ainda inexistente, com a constitucionalização do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP). Trata-se, em sua nova redação, não só de blindar o status quo das corporações armadas garantindo seus monopólios de policiamento, como também de manter o atual desenho semi-centralizado de responsabilização difusa, com um acréscimo das atribuições da União que já estavam antes definidas em lei, mas que, em certas gestões federais, serviram como uma “prerrogativa para poder nada fazer e não deixar acontecer”.
Ressalte-se que não se trata de um jogo de cenas no final do terceiro tempo que apenas troca seis por meia dúzia ou que “muda para ficar igual”. Tem-se na reconstrução da PEC da Segurança versão 2.0, após insatisfações de governadores instruídos por agendas corporativistas com alto impacto eleitoral, a reconstitucionalização das polícias e de seus mandatos em aberto, mais fortes e acima dos entes federados e governantes eleitos. Tem-se, portanto, a continuidade da tradição liberal-autoritária à brasileira, que viceja golpismos como solução de contorno, ao constitucionalizar as burocracias armadas como autarquias sem tutela, como espadas acima de governos civis legitimamente eleitos e, por sua vez, como aparelhos supostamente “neutros” de Estado imutáveis e refratários às exigências das políticas públicas de segurança pública saídas das urnas. A PEC da Segurança ou a PEC do SUP (Sistema Único Policial), tal como redigida, dá como vitorioso o lobby policialesco, uma vez que garante que as espadas se autogovernem podendo, sempre que julgarem oportuno, cortar a língua do verbo da política e rasgar a letra da lei. Afinal, a primeira instância de lealdade das espadas comedidas (polícias) e das espadas combatentes (FFAA) são a elas mesmas em razão da sua natureza política de dobrar vontades e produzir obediências coercitivamente em tempo real. Daí a antiga regra democrática de mantê-las abaixo dos governos civis para que se possa protegê-las do aparelhamento político-partidário e das apropriações pelos poderes econômicos.
Este artigo pretende fazer uma análise detalhada e crítica da minuta da PEC, identificando suas principais contradições, ambiguidades e limitações estruturais de forma a contribuir para o debate público e parlamentar em torno de seu aprimoramento. Sabemos todos que a PEC da Segurança é fundamental para redesenhar um pacto federativo que atenda as exigências de estabilidade, regularidade, previsibilidade, responsabilização e transparência no exercício do poder de polícia em sociedades livres e plurais. A PEC da Segurança tem jeito. Há como ajustá-la, reescrevê-la, para se criar, de direito e de fato, um “Sistema Federativo de Segurança Pública” democrático e republicado que garanta a governabilidade sobre os meios de força e impeça sua emancipação predatória da sociedade e dos governos eleitos, e que tem servido como fiel da balança para os golpismos no Brasil. Mas, antes de seguir com a argumentação, cabe aqui um parêntesis informativo: o SUSP foi criado e iniciou sua implantação em 2003 no governo Lula I, mas só foi regulamentado 15 anos depois pelo Temer, curiosamente após um suposto golpe político-jurídico-policial, por meio da Lei no. 13.675 de 11 de junho de 2018.
Serão abordados os desafios da integração federativa na segurança pública, o reconhecimento das Guardas Municipais como meios de força comedida, as redefinições propostas para a Polícia Rodoviária Federal como Polícia Viária, a fundamentação ideológica centrada na defesa social e no poder de polícia, a constitucionalização das polícias e os seus efeitos de desgoverno federativo. Também se discutirá os controles interno e externo proposto e suas limitações, as ambiguidades normativas, a duvidosa distinção entre milícias e organizações criminosas, as omissões relativas à Força Nacional de Segurança e às Forças Armadas, além da recriação simbólica dos fundos nacionais de segurança e penitenciário.
A análise aponta os riscos de uma proposta que, ao se render aos interesses corporativistas das burocracias armadas, tal como ocorreu durante a elaboração da Constituição de 1988 e que resultou no lobismo vitorioso expresso nos problemáticos artigos 142 e 144, acaba por preservar a fragmentação autonomizadora, os conflitos de competência, a ampliação de poderes coercitivos sem controle democrático e, por conseguinte, a ingovernabilidade dos meios de força, comprometendo a capacidade de gestão da segurança pública no país.
1. A tentativa de integração: promessas de um sistema que funciona no papel
1.1. Uma promessa de Sistema Único de Segurança Pública, o Sistema Único Policial, uma realidade paradoxal
A minuta da PEC da Segurança Pública anuncia a criação constitucional de um Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), sugerindo uma articulação federativa entre os níveis federal, estadual e municipal. No papel, que cabe tudo, essa iniciativa apresenta-se como uma resposta necessária para superar a desarticulação dos órgãos de segurança. Desde a Constituição de 1967 as polícias se encontram desconectadas com seus mandatos intencionalmente deixados em aberto. Mostrou-se rentável politicamente sustentar estes mandatos atravessados por conflitos de competência que até hoje se manifestam nas desautorizações continuadas entre as forças sob os olhares inseguros da sociedade. Isto consistia em um modo político de negociar algum governo provisório por meio de alianças pontuais de grupos políticos com uma ou outra espada em busca de resultados eleitorais, de fachadas de legalidade e de vistas grossas para os “esquemas” de uso da máquina estatal. Estes mandatos policiais têm sido exercidos através do poder administrativo de polícia que segue ilimitado e sem regulamentação, confinado a um vazio normativo-procedimental que amplia, invisibiliza e particulariza sua discricionariedade ao sabor dos arranjos oportunistas do momento que chantageiam aliados, silenciam oponentes, acuam o judiciário, intimidam o parlamento e transformam os policiais em mercadorias políticas. Os mandatos policiais, funcionando como uma procuração em aberto tem, no dia a dia da gestão da segurança, pervertido o poder DE polícia em poder DA polícia. O seu resultado mais sensível são as inações, os maus usos e osabusos no exercício da autoridade legal e legítima no cotidiano dos cidadãos, das favelas aos asfaltos.
Contudo, a PEC da Segurança não resolve a questão dos mandatos policiais, seus monopólios e consequente ingovernabilidade. Isto porque ela não delimita com clareza as competências exclusivas, compartilhadas e redundantes entre os entes federados, deixando mais uma vez, tal como a Carta de 1988, o pacto federativo da segurança pública suspenso num limbo político-jurídico ao sabor da conveniências eleitorais, das conivências corporativistas e das convivências veladas com sua particularização. Essa indefinição negociada, longe de resolver os conflitos de competências, suas bateções de cabeça e desautorizações nas ruas, institucionaliza a disputa entre as burocracias armadas e destas com os governantes eleitos como uma expressão clientelizada de governo. Estes que deveriam governar as polícias como seus comandantes em chefe se tornam reféns do próprio oportunismo político expresso no aparelhamento do medo legítimo da população e performado na fantasiosa “guerra contra o crime”. E um pouco mais: adulados por alisadores de maçanetas e “espertalistas de segurança” em seus gabinetes, os governantes terceirizam o seu comando em troca de saldos operacionais (forjados ou não) de elevado valor publicitário, convertendo-se em ventríloquos de doutrinas policialescas e garotos propagandas da espetacularização da segurança e das pirotecnias de polícia ostentação.
A nova redação do artigo 21, parágrafo único, que trata da ampliação dos poderes federais tenta parecer conciliatória ao declarar que as competências da União não excluem as dos demais entes federativos. Contudo, essa redação funciona como uma gambiarra defensiva que oculta o enfraquecimento da capacidade de estados e munícipios de comandarem suas forças de segurança cujas atribuições estão, em termos práticos, mais bem definidas e maiores do que as deles na PEC. Em vez de compatibilizar para integrar, a PEC promove a continuidade das desautorizações cruzadas entre os poderes locais, regionais e federais. O resultado é um emaranhado normativo que mantém as “espadas” (as corporações armadas) ingovernáveis, alimentando a insegurança jurídica, a autonomização predatória dos mandatos policiais e reforçando o protagonismo corporativo sobre os governantes civis. Essa situação tende a reproduzir, portanto, um modelo de governança fundado no voluntarismo, na inconstância da chamada “vontade política” do governante, dirigentes e chefes das polícias, que “dá e passa”, e, em parte por conta disso, na ausência de instrumentos efetivos de coordenação, indução, regulação ou responsabilização da União. Esta se limita a um papel simbólico e burocrático, incapaz de superar a lógica do “estamos juntos e misturados” desde que mantendo “cada um por si”.
1.2. Reconhecimento tardio do papel da cidades e das Guardas Municipais: avanços simbólicos, limites práticos.
A inclusão das Guardas Municipais no artigo 144, §8º-B, como agentes autorizados a exercer ações de “segurança urbana”, incluindo “policiamento ostensivo e comunitário”, representa um reconhecimento histórico tardio dessas forças comedidas. Até aqui relegadas aos ilusórios papeis patrimoniais, com o novo texto da PEC as Guardas começam a ser consideradas parte do cenário da segurança pública, valorizando o papel estratégico dos municípios na administração da ordem urbana e na gestão local da segurança pública. Afinal, cabe afirmar o obvio: todos nós moramos nas cidades.
Contudo, esse avanço simbólico está longe de se traduzir em autonomia regulada e empoderamento institucional reais. A PEC mantém uma ambiguidade normativa perigosa, que evita o enfrentamento da hierarquia funcional estabelecida e da sobreposição de atribuições entre Guardas Municipais e Polícias Militares. A utilização de qualificativos como “comunitário” e “ostensivo” possuem apenas um efeito retórico para disfarçar conflitos de competência dando nomes diferentes para as mesmas práticas policiais e suas variedades tático-operacionais. E isto se dá porque mais uma vez não de definiu os mandatos entre as forças federais, estaduais e municipais e suas competências exclusivas e partilhadas. Optou-se por normatizar monopólios de policiamento e, num jogo nominalista, dar autorizações parciais para se fazer um mais do mesmo ostensivo. Também não se alterou a lógica subalterna em que as Guardas permanecem, sem mecanismos efetivos de delimitação ou regulação clara que lhes garanta independência e reconhecimento institucional pleno, induzindo-as a ultrapassarem na informalidade, como já ocorre na prática, a sua caracterização constitucional para poder cumprirem esta mesma atribuição. E tudo isso, em desalinho com o Estatuto das Guardas, aprovado em 2014 durante o governo Dilma I.
A subordinação das ouvidorias das Guardas ao Ministério Público exemplifica essa esquizofrenia da Guarda como uma polícia municipal, na prática, escondida de júri, e por sua vez, de si mesma e da PM na letra ambígua da lei. De um lado, o texto da PEC reconhece sua natureza policial com adição de modalidades de policiamento público e estatal; de outro, renomeia estes mesmos policiamentos adjetivando-os de modo a restringir sua autonomia e evitar um embate direto com a hegemonia das PMs que se deseja paradoxalmente mantida. Em última instância, o que o texto da PEC parece indicar, dando com uma mão e tirando com a outra, é a perpetuação do monopólio da força ostensiva pelas Polícias Militares, enquanto as Guardas permanecem em posição complementar, ambígua, dependente da PM e em conflito com suas práticas reais no policiamento nas cidades.
1.3. A redefinição da Polícia Rodoviária Federal como Polícia Viária: inovação teórica e conflitos práticos
A transformação da Polícia Rodoviária Federal em “Polícia Viária Federal” como proposto na redação dos artigos 144, II e §2º, uma ampliação de seu poder é uma inovação conceitual pertinente que destaca a importância estratégica de uma polícia da logística em movimento, do controle dos fluxos e da mobilidade em um país com a extensão territorial do Brasil. O acréscimo daí resultante da capacidade de intervenção federal pelas mãos exclusivas das polícias federais mais empoderadas e não pela gestão ministerial de uma política nacional, é uma acomodação arriscada. Ela reforça uma concepção defensiva e em retrocesso que reduz a segurança pública à ação policial, fazendo a política ser reduzida a operacionalidade tática das forças. Isto torna o governo federal dependente do que as polícias federais produzem e, que nestes termos, são mantidas como burocracias armadas acima da política pública que deveriam orientar os seus rumos. Isto permite que se mantenha a esquizofrenia de uma Secretária Nacional de Segurança Pública (SENASP) que deseja “coordenar” as polícias regionais e locais, ao mesmo tempo que esta segue dissociada e com status concorrente ao das secretarias da PRF e da PF, dentro do Ministério da Justiça e Segurança.
É sabido que tudo que uma polícia faz pertence ao campo da segurança pública. Mas, nem tudo que se faz na segurança pública corresponde a ação policial, a despeito da regularidade, intensidade e exclusividade da intervenção policial. E isto por uma descoberta cientifica básica: os meios de força policiais, porque coercitivos, são capazes somente de produzirem respostas provisórias e pontuais no tempo e no espaço. Eles não tem como intervirem nas causas dos crimes, das violências, das desordens e incivilidades sob os quais se antecipam, interferem e frustram a despeito de sua mobilização, profissionalismo e pronta resposta. Os meios de força, meios coercitivos, não mudam consciências e vontades, sendo capazes tão somente de alterarem as oportunidades de situações indesejáveis acontecerem. O que faz com que toda ação policial seja provisória e finita no tempo e no território, sendo esta provisoriedade a razão e a possibilidade de sua eficácia.
Com a conversão da PRF em Polícia Viária, a PEC da Segurança reconhece, assim, o caráter translocal das dinâmicas criminais, da capacidade de pronta-resposta a incidentes em movimento e de larga escala. E, por isso mesmo, a necessidade de controle espacial dinâmico e diverso para enfrentar, por exemplo, as redes criminosas itinerantes interestaduais e transnacionais cuja natureza política-comercial não reconhece os limites das fronteiras regionais e nacionais. Entretanto, a PEC falha ao não estabelecer com clareza os âmbitos e os alcances das atribuições entre a PRF com poderes estendidos (a polícia viária), a Polícia Federal e as Polícias Militares que desempenham funções de polícias marítima, aeroportuária, de fronteiras, florestal, fluvial e ambiental. Isto abre espaço para ingerência indevida e potencialização de conflito federativo, sem que haja clareza dos âmbitos, alcances e contornos de atuação dos mandatos policiais e, por sua vez, dos mecanismos eficazes de controle e coordenação para mitigar tais riscos.
A autorização para que a União empregue a PRF em auxílio a forças estaduais, mediante solicitação dos governadores (Art. 144, §2º-A, II), é outro ponto problemático herdado de portaria ministerial do governo Bolsonaro, durante a gestão Anderson Torres. Tratava-se de justificar a criação de grupos táticos dentro da PRF, à moda BOPE e SWAT, para realizarem operações policiais nas periferias e favelas junto com a PM e a PC, sob o álibi do suporte a “repressão ao roubo de cargas e veículos”. Este suposto “reforço da PRF no combate ao crime organizado” em área de competência estadual, tinha como razão primeira a disputa com a PF por poder, prestígio e orçamento. A oportunidade de se produzir elevada visibilidade pública com performances instamagráveis e televisivas de “polícia de espetáculo e de ostentação” tem sido feita, principalmente, por meio da participação em operações policiais estaduais, as quais consistem em teatros operacionais de larga escala, perceptíveis aos olhos nus da população e com alto potencial publicitário (“Olha, estamos trabalhando, fazendo alguma coisa”). O chamado aparelhamento de setores da PRF iniciou-se por esta avenida de grande impacto junto as mídias, a população e os políticos, de baixa operosidade sobre o tal crime organizado e de risco crítico junto aos moradores dos espaços populares. De todo modo, as indefinições das atribuições partilhadas entre PRF, PF, PM e PC mantidas no texto pela PEC seguem contribuindo para o que podemos denominar uma “cartografia do caos” nos policiamentos, ampliando a sobreposição de competências e a duplicação de esforços, com potenciais conflitos operacionais entre órgãos cujo trabalho pode e deve ser integrado e coordenado, uma vez que se clarifique na PEC as competências exclusivas e partilhadas entre os entes federados e, como consequência e não como causa, as delimitações das atribuições das polícias.
2. A defesa social como base ideológica e a segurança como poder de polícia
2.1. A consolidação do paradigma do inimigo interno.
Salta aos olhos a adoção da perversa ideologia da Defesa Social, de origem positivista e lombrosiana, como paradigma da segurança pública da PEC que distinta vezes apõe “segurança pública e defesa social” ao longo minuta. Trata-se de uma herança da Lei do SUSP do Temer e que reflete uma vitória estrondosa de segmentos policiais engajados no aumento deliberado do poder de polícia passível de ser autorizado a cada nova crise ou urgência fabricadas e que permitem instaurar governos policiais autônomos, orientados por um regime do medo que normaliza práticas de exceção, na contramão das exigências democráticas para o comando civil das espadas. E isto se faz com a construção moralista e a proliferação oportunista de inimigos internos os quais se deve combater e que podem ser gestados indefinidamente como a “próxima ameaça da vez” já que, no limite, a sociedade precisaria se defender dela mesma. E para tanto só com uma autoridade autoritária ao estilo Leviatã, mais forte que a cidadania e acima da lei, para poder fazer cumpri-la.
Embora a PEC proponha a integração institucional, ela permanece solidamente ancorada na lógica da defesa social — uma criminologia Fake Science que já foi amplamente refutada na academia, mas que continua a inspirar políticas públicas no Brasil. Essa perspectiva constrói moralmente perfis de “perigosidade” que estigmatizam grupos sociais vulneráveis — notadamente pobres, negros, jovens e moradores de periferias — como “inimigos internos” a serem neutralizados conforme a necessidade política de saldo operacional e casos de repercussão. A dicotomia entre “cidadãos de bem” e “inimigos internos” que resulta do paradigma da defesa social legitima o uso da força policial como um fim em si mesmo, deslocando a segurança pública da esfera das políticas públicas para o campo da exceção e do combate.
Esse paradigma expande ilimitadamente o poder policial que na redação da PEC, é mantido como superior ao poder de governo e como uma procuração em aberto a ser preenchida conforme interesses corporativistas e politiqueiros. A expressão “segurança pública e defesa social” não é anódina e nem samaritana. Trata-se da institucionalização sutil da tutela policial sobre a sociedade e seu governo, de um projeto de poder que fortalece o que se chama de “partido policial” e sua ambição de governo. Uma vez mais registra-se uma porta aberta para se perverter o poder DE polícia (pertencente a sociedade, administrado pelo Estado e executado pelos meios de força) em poder DA polícia ou DE grupelhos policiais com lastro constitucional.
2.2. Supremacia da ordem sobre os direitos e apagamento da política.
Da ideologia da defesa social, nascida na lei do SUSP e mantida no texto da PEC, desdobra-se a autorização velada para a manutenção de uma ordem (do status quo de alguns?) imposta a qualquer custo e de qualquer maneira. Tem-se a validação político-moral da ordem sobre a lei, e compreensão implícita de que a justiça, o devido processo legal são produtores de impunidade que fortaleceria o crime. É nesta perspectiva que os direitos civis se tornam um obstáculo à ordem e a segurança, reforçando estigmas que justificam vigilância seletiva, filtragem racial, encarceramento em massa e exclusão social.
A abordagem da defesa social traz consigo a ambição de um reavivamento da autoridade policial acima de outras autoridades de governo e exercida com ampla discricionariedade e pouca ou nenhuma transparência. A total liberdade das espadas para agirem sem ter que darem satisfação, sempre que julgarem necessário, naturaliza a letalidade e vitimização policiais como danos coletareis inevitáveis na guerra contra o crime. Uma guerra que, paradoxalmente, precisa seguir invencível para que se possa continuar indefinidamente fazendo a guerra para promover a paz das propinas, dos consórcios políticos com o crime organizado. E tudo isso costuma ser legitimado como condição para o combate eficaz ao crime vendido como cada vez mais organizado e mais forte que o Estado. Este ilusionismo tem a sua eficácia uma vez que produz e explora o agravamento coletivo do temor, fazendo da insegurança pública uma política de elevado rendimento eleitoral.
O modelo resultante da ideologia da defesa social com poder de polícia em aberto subtendido na redação desta PEC receosa induz a proeza de se abandonar a política — entendida como o espaço da negociação e produção de consensos entre interesses divergentes, em favor de estratégias de guerra (política como sucessão de táticas performáticas), que priorizam o controle exclusivamente repressivo, isto é, a repressão como um fim em si mesma. É claro que isto é um blefe operacional, uma vez que não se tem como fazer estoque de recurso repressivo e que este gera a sua própria escassez quando empregado. Na prática policial, a repressão como um fim em si mesma não tem como se sustentar no tempo e no espaço porque polícia é um pronto-emprego diuturno e, por isso, não tem armazenamento de efetivos e opera por escalas para garantir cobertura sobre território e população. Contudo o blefe retórico funciona, uma vez que diante do medo aparelhado e agravado, e medo não se adia, os cidadãos renunciam as suas garantias civis em favor do fortão que lhes prometa proteção com uma indelicada consequência: o protetor de hoje, que troca tiro em nosso lugar, converte-se no tirano de amanhã. Isso fragiliza a democracia, favorece os golpismos com autoridades autoritárias armadas e cria zonas de exceção permanentes, onde o uso da violência é autorizado e normalizado.
2.3. Expansão arbitrária do poder de polícia.
Com a histórica ausência de regulação clara do poder de polícia — um vazio mantido desde sua definição no Código Tributário de 1966, durante a ditadura civil-militar e que consiste num pode tudo do estado contra a cidadania – o texto da PEC, ainda que se imagine a contragosto, outorga “procurações em branco” às corporações policiais, legitimando abusos e ampliando sua liberdade discricionária. Esse modelo preserva o status quo das organizações de força, garantindo-lhes, uma vez mais, autonomia quase absoluta, traduzida em “independência técnica para melhor trabalhar”, e fortalecendo de forma redundante, governos policiais autônomos que podem superar em poder e influência os próprios governantes eleitos. O paradigma da defesa social mantido na PEC, favorece uma dinâmica no qual o uso da força policial deixa de ser uma atribuição controlada e passa a ser um poder desregulado, muitas vezes instrumentalizado para fins político-eleitorais e para manutenção de privilégios corporativos. Mais que um problema técnico de suposto “despreparo”, trata-se da expressão normativa da ideologia de defesa social que visa ampliar prerrogativas coercitivas sob a justificativa da crise permanente da segurança pública.
3. Polícias constitucionalizadas: desgoverno federativo e autonomização do poder armado.
3.1. Corporativismo constitucionalizado: forças armadas estaduais com soberania própria.
Como já foi dito aqui, apesar do discurso integrador, o texto amistoso meio amedrontado da PEC evita qualquer alteração substancial nos monopólios institucionais das corporações policiais, mantidos desde a Constituição autoritária de 1967. Essa perpetuação assegura às polícias autonomia funcional quase plena, blindando-as de mecanismos efetivos de controle político-institucional e social.
Na prática, isso enraíza autarquias armadas sem qualquer tutela que funcionam como Vaticanos dentro de Roma, com comandos que operam como poderes autônomos, porém provisórios e instáveis até a próxima dança interna das cadeiras, frequentemente sujeitos a fisiologismos, chantagens corporativas e insubordinações frequentes para se manterem no poder. Os governos eleitos tornam-se reféns desses comandos, que atuam como forças autônomas, muitas vezes maiores que os próprios governantes civis. Em termos concretos, o governante escolhe um chefe de polícia ou é forçado a escolher um “indicado”, uma pá nova para manter o rodízio das panelas. Espera-se como contrapartida uma fidelidade pessoal ao governante que não pode ser posta a prova, já que ela conflita com a lealdade corporativa com a própria força policial e ainda com a agenda política de seu grupo político de sustentação. Como diz o ditado: governantes passam e a polícia permanece. Isso cristaliza a lógica de “governos fracos e polícias fortes”, inviabilizando a construção de um sistema governável, democrático e subordinado ao controle civil. Aqui mais uma vez as tais das coordenação e integração federativa esbarra nos interesses corporativos concorrências dentro das forças que possuem distintas polícias e diversos grupelhos identitários em conflito entre si.
3.2. SUP em vez de SUSP: a integração que não governa.
Apesar do puxadinho estendido da competência da União proposto no Art. 21- parágrafo único, diante da manutenção de monopólios policiais dos quais emanam as atribuições dos entes federados, invertendo a ordem democrática, republicada e federativa de lidar com meios de força, a redação da PEC não tem como avançar de forma substantiva rumo a construção infraconstitucional de uma governança que possibilite a coordenação nacional e a integração dos meios de força através de uma suposta política nacional de segurança pública. Não se tem como derivar da manutenção do status quo das burocracias armadas os dispositivos de governabilidade sobre elas. O que faz com que, na prática, a coordenação e responsabilização efetiva da União seja perecível e voluntarista como um “pedido de licença” ou “um por favor”. Assim, apesar da boas intenções da nova redação da PEC, o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP) corre o risco de torna-se um rótulo retórico ou um ajuntamento de órgãos sem corpo. A PEC do jeito que está formulada institucionaliza, de fato, um Sistema Único Policial (SUP), onde prevalece a supremacia das corporações armadas constitucionalizadas sobre o desenho federativo. Sem um pacto federativo genuíno, com cláusulas claras de competência e instrumentos de comando integrado, o texto não cria um “sistema” que possa ser efetivamente governado. Ao contrário, consolida um mosaico ingovernável, onde a integração anunciada convive com a multiplicação de conflitos e com a sua ingovernabilidade
4. Controle como ilusão: entre o autogoverno policial constitucionalizado e a invisibilidade democrática.
4.1. Simulação de controle interno: corregedorias só para alguns.
Sobre controle do exercício do poder coercitivo pelas burocracias armadas, a redação da PEC revela uma mistura de desconhecimento com alguma manobra duvidosa sobre o funcionamento dos dispositivos internos e externos de controle, em especial as policias ou os meios de força comedida. O desconhecimento diz respeito ao que importa, de fato, controlar nas polícias em razão de sua natureza político-coercitiva e, por conta disso, os atributos essenciais para se produzir o controle considerando o controle do trabalho por 1) supervisão ou capatazia; 2) entre pares e 3) por resultados produzidos. A estas dimensões internas que possuem um impacto proativo em termos de controles diretos e indiretos no processo de trabalho policial, se soma uma dimensão exterior relacionada aos efeitos produzidos sobre os grupos sociais afetados de forma direta e indireta e que são reativos uma vez que o controle não é sobre a realização do trabalho em si mesmo mas sobre os efeitos que ele produz. E a manobra duvidosa tem a ver com a forma ambígua e desigual, que soa decorativa, com que se estabelece o tipo de controle associado ao status quo conferido a polícia em contrate com a guarda, o que de partida cria uma ilusão de controle e reforça a invisibilidade do processo decisório policial.
Como se sabe não é possível controlar tudo e sim o todo. No caso das polícias trata-se de controlar 1) o uso potencial e concreto de força, individual e em grupo, e 2) a liberdade discricionária no emprego do poder de polícia. Uma vez que as polícias são dispositivos coercitivos, cujas ações são por natureza invasivas, importa mais para a democracia o processo de produção do trabalho policial (dissuasório-preventivo e repressivo) do que o produto que consolida este resultado (prisões, apreensões, abordagens, inquéritos, relatórios de inteligência, operações etc.). Isto é o mesmo que dizer que importa mais, por exemplo, como um saldo operacional é produzido do que somente a demonstração de sua variedade e quantidade. Isto porque agências coercitivas podem produzir resultados forjados e manipulados (dossiês apócrifos, provas falsas, execuções, prisões ilegais etc.) que violam o pacto sociopolítico e as garantias de cidadãos e cidadãos-policiais, uma vez que elas têm a prerrogativa de dobrar vontades com o recurso coercitivo potencial ou concreto de força.
Para se produzir controle sobre o uso discricionário do poder de polícia com o recurso coercitivo da força é preciso ter clareza de que os modelos de corregedoria e de ouvidoria, mesmo que supostamente independentes, só tem como produzirem controle a partir dos resultados e não sobre todo o processo de trabalho policial. Ou seja, estas instâncias, de acordo com seus atuais desenhos institucionais, são apenas capazes de intervir diante de um fato ocorrido, depois de acontecido, e não tem como alcançar o que aconteceu antes e durante a ação policial ou seja o fluxo decisório policial. Trata-se, desta forma, de um controle reativo e sob demanda diante de um repertorio parcial de situações que tiveram algum registro, quando se sabe que a maior parte do trabalho policial nas ruas e nas unidades policiais não gera qualquer anotação.
Fica evidente que tanto a corregedoria quanto a ouvidoria são mais capazes de gerar um controle a posteriori do que regular o tempo presente da ação policial que requer controle de supervisão e por pares em tempo real. Contudo, a oportunidade de um processo virtuoso de controle reativo requer um sistema composto por controles interno e externo, isto é, necessita do trabalho articulado entre a corregedoria interna e a ouvidoria externa. Sendo que a primeira, por ser interna à polícia, tem maior capilaridade na sua apuração e um maior efeito regulatório sobre a prática policial do que a ouvidoria. Esta última, cujo controle possível é de fora para dentro, depende que a própria polícia e outras agências, como a corregedoria, produzam informações uteis para ela poder exercer o seu controle.
Note-se que a redação da PEC, se satisfaz com uma forma genérica e desigual da obrigatoriedade de controle e ainda restrito a uma lógica reativa, ou seja, ao controle do depois que desvios, violências e crimes acontecem sem trazer qualquer mudança no desenho fragmentado brasileiro de ilusão de produção de controle das burocracias armadas. Não se avança nas exigências de responsabilização, transparência e accountability cruzadas para não só viabilizar uma governança efetiva como também proteger as polícias da manipulação político-partidária, de sua perversão como um governo autônomo miliciano e mesmo de sua apropriação particularista. Isto soa coerente com a ampliação do poder de polícia e a consolidação dos monopólios policiais que comprometem a governabilidade e, por conseguinte, a oportunidade de controles interno e externo coordenados e efetivos. Tudo parece indicar que fica a cargo das próprias polícias estabelecerem os freios que desejam e julgam conveniente.
O texto da PEC deixa a impressão contraditória de que ao se preocupar com o controle o entrega as polícias, esquecendo que se trata de burocracias armadas de pronta-resposta. É como se fosse delegado as facas decidirem sobre o que cortar e ainda a intensidade e a profundidade do seu corte. É como de fosse autorizado a arma desenhar a mão e a mão determinar o pensamento. A PEC indica apenas a corregedoria para as polícias que já existe em suas estruturas organizacionais. Essa medida, longe de universalizar o controle, reforça o modelo corporativo do controle exclusivo entre colegas — o clássico “vigia vigiando o vigia”. Isso não é um avanço democrático, mas sim a institucionalização do autogoverno policial. Não se menciona o controle externo das polícias como uma obrigatoriedade. Sem isso, as ouvidorias podem seguir sem quadros, carreira, orçamento e com baixa institucionalidade, quase que uma balcão reativo de denúncias e reclamações. Sem isso, não há como estimular a que o Ministério Público que, hoje, exerce tão somente um controle de papeleira, da ponta do iceberg, crie promotorias especializadas e exclusivas voltadas para o controle externo, ainda que reativo, do trabalho policial.
Sem mecanismos externos e independentes que possam investigar, fiscalizar e responsabilizar as corporações, a autonomia policial se converte em soberania armada. Essa soberania permite pactos de silêncio e sigilo, oculta abusos e mina a transparência, comprometendo profundamente a eficácia e a legitimidade do controle interno. Para que o controle interno seja proativo e eficiente, é indispensável que seja complementado por dispositivos externos independentes, capazes de agir de forma reativa, porém garantidora da transparência e do direito à justiça.
4.2. Controle externo simbólico: ouvidorias subordinadas.
No caso das Guardas Municipais, a PEC propõe a existência de ouvidorias que prestem contas ao Ministério Público. Essa configuração, além de incompleta e disfuncional, é contraditória e ambígua: reconhece implicitamente que as Guardas são forças policiais, mas impõe apenas um tipo de tutela externa subalterna que não corresponde a um modelo democrático de regulação, deixando implícito a pertinência de uma corregedoria ou de controles internos articulados aos dispositivos externos de controle. Este modo desigual de tratar a Guarda, parece usar a figura do MP como uma espécie de desestimulo velado do tipo: As GMs estão autorizadas a fazer policiamento ostensivo mas com o ônus de ter o MP no seu encalço. Assim a PEC tenta agradar gregos (PM) e troianos (GM), mantendo as guarda como polícia envergonhada subalternizada diante a PM. Uma vez mais aqui, tem-se o desgoverno do poder de polícia das guardas municipais. Busca-se evitar, deste modo, um confronto direto com o monopólio policial estadual por uma aparente limitação da autonomia institucional municipal.
5. Ambiguidades normativas e disputas de competência: a linguagem como obstáculo.
5.1. Redação negativa e jogos semânticos: o vocabulário da dissimulação.
A nova PEC da segurança, ao longo de sua redação, define competências institucionais concedidas por negação — como, por exemplo, no Art. 144, que determina que certas forças “não exercerão funções inerentes à polícia judiciária” — uma estratégia normativa que tenta evitar tensões explícitas, mas que acaba por gerar uma arquitetura ambígua, autorreferente e ineficaz. Essa redação ambígua cria um emaranhado de regras negativas que não resolvem os conflitos, mas apenas os deslocam para a disputa política e operacional, deixando aberta a porta para interpretações conflitantes, abusos e desacatos a autoridade e litígios judiciais. Além disso, a proposta utiliza nomenclaturas como “policiamento comunitário”, “segurança urbana” e “policiamento viário” como eufemismos para manter a hierarquização tradicional entre forças policiais, sobretudo em relação às Guardas Municipais. Tais qualificativos disfarçam a verdadeira sobreposição de atribuições e perpetuam a hegemonia simbólica e funcional da Polícia Militar sobre o policiamento ostensivo.
5.2. A falácia da nomenclatura: o problema das designações artificiais.
A distinção semântica entre “segurança urbana” (atribuição das Guardas Municipais) e “segurança pública” (competência das Polícias Militar, Civil e Federais) é, na prática, superficial e meramente retórica. Ambas as categorias implicam em produzir o controle territorial, o uso legítimo da força e o exercício de autoridade coercitiva. Trata-se de categorias sinonímicas do ponto de vista operacional e que buscam marcar uma diferença desigual entre a gestão da segurança pelos municípios e pelos estados. Este jogo de nomenclaturas que não resiste a consistência de seus conteúdos serve para atender as manobras políticas de prefeitos e governadores no que diz respeito à sua responsabilização com a segurança pública. Se por um lado certas políticos querem propagandear resultados na segurança pública porque isso mobiliza muitos votos; por outro, não querem assumir de forma explicita a responsabilidade sobre a segurança pública. E é nessa tensão entre a ética dos resultados e a ética da responsabilidade política que estas categorias como segurança urbana, policiamento ostensivo comunitário servem como manobras de contorno conforme o jogo político-eleitoral.
Esse jogo nominalista também serve para preservar privilégios institucionais, impedir a configuração e expansão das Guardas Municipais como polícias locais plenas e para contornar tensões abertas entre os diferentes órgãos, ao custo da perpetuação de uma estrutura frágil que não resiste as práticas concretas sobrepostas e simultâneas de policiamento feitas por distintas polícias nas cidades. Mais que isso, essa divisão cria barreiras simbólicas que impedem a democratização da segurança pública, fragilizam a arquitetura institucional do SUSP e reforçam a concentração do poder coercitivo em poucos grupos com privilégios, mantendo o status quo da ordem pública sob tutela restrita das espadas.
6. Milícias e organizações criminosas: uma separação fake e riscos estratégicos
6.1. A distinção política-normativa entre milícias e organizações criminosas.
Um ponto crítico da PEC é a distinção feita entre “milícias privadas” e “organizações criminosas” no §1º, I do artigo 144. Essa separação artificial soa útil aos interesses políticos e corporativos, uma vez que a milícias são, a despeito de se querer ou não, organizações criminosas ou domínios armados saídos de dentro do Estado que controlam territórios, administram populações residentes e regulam mercados ilegais. Trata-se de governos criminais autônomos, assim como o tráfico, que operam em redes na economia política, itinerante e translocal do crime. As milícias são uma variante de ORCRIMs e assim com o PCC, CV, etc. tem suas atividades criminais reguladas pelo Estado que opera como uma agência reguladora do crime para o bem ou para o mal. Elas, variam nos seus métodos de produção de governança criminal e de disputas comerciais armadas e não na natureza de sua existência. Elas são uma expressão singular das modalidades do chamado “crime organizado”.
Ao negar às milícias a sua caracterização como organizações criminosas, a proposta da PEC enfraquece o enfrentamento estatal a esses grupos que funcionam como poderes autônomos, assim como o tráfico, em consórcio com o estado, regulando mercados ilícitos e atuando com articulação política e institucional. Fica-se com a impressão de que essa distinção tem um rendimento político-jurídico que favorece práticas criminosas nascidas e organizadas por segmentos da maquina estatal. Pode servir para ocultar e proteger agentes públicos e seus esquemas de corrupção que viabilizam a existência e o crescimento das milícias desde dentro do Estado. Eis aqui o risco de colocar a estrutura do estado a serviço de um governo com o crime e não contra ele. Por fim, esta distinção pode vir a servir para proteger setores que se beneficiam da infiltração das milícias no aparato público e no sistema eleitoral. Sobretudo quando se sabe que carreiras eleitorais podem servir como lavanderia do dinheiro do crime organizado. Assim, a PEC fragiliza a resposta do Estado à criminalidade organizada miliciana, aumentando o risco de erosão do pacto democrático e da autoridade estatal legítima.
7. Forças à margem do sistema: omissões significativas.
7.1. A exclusão da Força Nacional de Segurança Pública (FNSP)
A minuta da PEC não menciona a Força Nacional de Segurança Pública, revelando um grave ponto cego institucional. Embora a FNSP, um programa de ação federativa, atue como força de intervenção da união, ela não está formalmente integrada ao Sistema Único de Segurança Pública (SUSP). Esse vazio constitucional reforça sua condição de força particularizada e com baixa institucionalidade, composta de efetivos estaduais, mas utilizada como pronto-emprego no estado de emergência segundo critérios político-administrativos do Executivo federal, sem amparo em um sistema estruturado de comando e controle, com orçamento, responsabilização e transparência efetivos. Soa curioso que o uso oneroso de efetivos das polícias estaduais corra alheio ao SUSP e sua constitucionalização. Isto certamente coloca uma sombra na expansão da competência da união proposta pela PEC. Vale insistir que essa exclusão compromete o princípio da coordenação federativa e abre espaço para disputas entre polícias estaduais, guardas municipais e o governo federal, além de permitir o uso político da Força Nacional como instrumento de intervenção ad hoc, sem transparência e sem controles democráticos.
7.2. O silêncio sobre as Forças Armadas e o policiamento de fronteiras.
Outro aspecto curioso da PEC é a ausência completa de referência do emprego das Forças Armadas no contexto da segurança pública. Na prática, as Forças Armadas realizam policiamento em fronteiras terrestres, áreas, verdes e marítimas, muitas vezes em franco conflito de competência com a Polícia Federal, PRF e Polícias Militares. Além disso, desde o governo FHC assistiu-se o emprego regular e crescente das FFAA nas questões de ordem pública por meio das GLO. Viu-se ainda a proliferação retórica de argumentos de autoridade, sem qualquer base constitucional, sobre a quem pertencia a responsabilidade do policiamento nos arredores das unidades militares que permitiram, por conivência e conveniência de autoridades estaduais e federais, a manutenção de acampamentos próximos aos muros dos quarteis em 2022. Esta ingerência negociada, quando a competência era da PMDF, revela o jogo de carteiradas das burocracias armadas como parte importante do jogo político e das oportunidades de golpismos.
Isto se agrava diante das interpretações estravagantes, a serviço de lógicas antidemocráticas, do inexistente poder moderador das FFAA supostamente definido no artigo 142 da Constituição de 1988 que, diante da PEC da Segurança precisaria também ser revisto. Essa omissão normativa impede o debate em torno estabelecimento de diretrizes claras para cooperação interinstitucional e a delimitação precisa das atribuições entre Forças Armadas e polícias, perpetuando sobreposições, ineficiências e tensões operacionais que comprometem a defesa nacional, a segurança pública e a governança democrática das forças comedidas (polícias) e das forças combatentes (FFAA) e suas necessárias interfaces no Brasil federativo.
8. Recriação simbólica de fundos e subordinação do sistema penitenciário.
A PEC pretende constitucionalizar o Fundo Nacional de Segurança Pública e o Fundo Penitenciário Nacional (Art. 144, §11). Isto parece uma ideia interessante para garantir a estabilidade do financiamento das políticas públicas e contornar o receio sempre presente de descontinuidades, retrocessos, abandonos de projetos face as mudanças de governos e de suas orientações ideológicas e personalistas. Entretanto, a amarração dos fundos à constituição como requisito de estabilidade e permanência não tem como resolver os problema centrais dos fundos que são as suas gestões. A constitucionalização de tudo que não se quer mexer, reflete um apetite jurídico-normativo como um dispositivo superior a produção de consenso político e, ao mesmo tempo, uma desconfiança do próprio fazer da política e de seus mecanismos representativos no parlamento. Isto levado ao seu limite revela a predileção por processos impositivos do que pelas dinâmicas políticas de negociação que vai esvaziando a capacidade do governo eleito de governar. De todo modo, constitucionalizar os fundos não tem como dar conta de questões estruturais que afetam esses instrumentos como o contingenciamento orçamentário, aplicação desigual e falta de transparência na gestão dos recursos.
Além disso, esta proposta acaba por subordinar o financiamento federal do sistema penitenciário às razões de segurança pública (Art. 21, XXVII), sempre tomadas como mais urgentes e mais visíveis publicamente, reforçando a ideologia da criminologia da defesa social e sua lógica repressivo-penalista de muros de cadeias mais altos e de uma administração prisional onde a segurança seria superior a própria lei de execução penal e ao regulamento penitenciário. E isto pode vir a comprometer diretrizes e prioridades da política penitenciária naquelas especificidades da custodia penal e da gestão penitenciária. Tem-se aqui, com isso, uma sobrevalorização da recente polícia penal e os seus mecanismos de tranca do que dos técnicos e outros serviços que tornam a cadeia tranquila e administrável antes de ser segura.
Ao integrar o sistema prisional nessa perspectiva, a PEC pode, inadvertidamente, ampliar o poder dos “governos policiais”, reforçando o encarceramento indevassável e dependência dos estados em relação aos recursos federais. Aqui corre-se o risco de se reforçar, a contragosto, a transformação de presos em comodities para o crime organizado. Tem-se a oportunidade da emergência de espaços para a politicagem e a barganha na distribuição dos fundos, fragilizando os governantes eleitos e impedindo o desenvolvimento de políticas penitenciárias efetivas e independentes das demandas emergências da segurança publica e seu regime político e crises fabricadas que legitimam as práticas de exceção. A transformação dos presos em mercadorias políticas nas cadeias abre caminhos perigosos para a emergência de governanças coniventes com o crime, ao invés de seu controle.
Conclusão.
A análise da minuta da PEC da Segurança Pública revela uma proposta que, ao mesmo tempo em que busca formalmente a integração dos entes federativos e das corporações policiais, pode institucionalizar a fragmentação e reforçar a autonomização predatória das polícias estaduais e federais, em detrimento da governabilidade civil.
Os principais riscos decorrentes dessa configuração incluem a perpetuação da insegurança político-jurídica, o fortalecimento do corporativismo policial, a ampliação do poder discricionário dos meios e força sem mecanismos eficazes de controle, responsabilização e accountability adequados e o aprofundamento da militarização da segurança pública. A falta de regulação clara do poder de polícia e a ausência de coordenação federativa comprometem a capacidade do Estado brasileiro de formular políticas públicas eficientes, democráticas e orientadas por direitos. Além disso, a manutenção de distinções artificiais e a exclusão de uma proposta sobre as competências partilhadas com a Força Nacional e as Forças Armadas na segurança pública, de forma pontual e provisória, aprofundam lacunas institucionais que dificultam o enfrentamento coordenado da violência e do crime organizado. Diante deste conteúdo problemático proposto pela redação da nova PEC da Segurança e considerando a sua importância estratégica, torna-se urgente uma discussão substantiva no parlamento e na sociedade para aprimorá-la que suprima as ambiguidades e contradições e, desta forma:
- Garanta um pacto federativo efetivo que estabeleça claramente competências federativas exclusivas e partilhadas entre os entes federativos e, por sua vez, das polícias como um desdobramento e não o seu inverso;
- Regulamente o poder de polícia, delimitando sua extensão e assegurando o controle civil e democrático de modo a possibilitar a efetividade de uma coordenação nacional integrada;
- Institua mecanismos universais e independentes de controle e responsabilização das forças policiais que configurem um sistema de dispositivos internos e externos para todos os meios de força;
- Reconheça e promova a autonomia real das Guardas Municipais, integrando-as de forma clara e regulada ao SUSP;
- Discuta o papel de todas as forças relevantes, como Força Nacional e Forças Armadas, no sistema de segurança pública;
- Desvincule o sistema penitenciário e seu fundo das razões de segurança pública que, por natureza são razões restritivas de direitos;
- Promova a democratização da segurança pública, afastando a lógica da defesa social e da exceção.
Assim será possível construir um sistema de segurança pública brasileiro que combine eficiência operacional, governabilidade federativa e respeito aos direitos fundamentais, superando o desgoverno e as ambiguidades ainda presentes na atual proposta.
JACQUELINE MUNIZ. Cientista social (UFF), mestra em Antropologia Social (Museu Nacional/UFRJ) e doutora em Ciência Política (IUPERJ/UCAM). Professora adjunta do Departamento de Segurança Pública (DSP) e do mestrado de Justiça e Segurança Pública (PPGJS) do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (IAC) da Universidade Federal Fluminense (UFF). Professora do curso tecnólogo em Segurança Pública e Social da CECIERJ/UFF. Pesquisadora do Núcleo de Estudos em Conflitos e Sociedade (NECSo/DSP/IAC-UFF). Integrante do Grupo de Estudos Estratégicos de 1991 a 2015. Sócia fundadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e da Rede Fluminense de Pesquisadores sobre Violência, Segurança Pública e Direitos Humanos. Exerceu as funções públicas de diretora do Departamento de Pesquisa, Análise da Informação e Desenvolvimento de Pessoal da SENASP/Ministério da Justiça (2003), de coordenadora setorial de Segurança Pública, Justiça e Direitos Humanos (2002) e de diretora da Secretaria de Segurança Pública (1999) do Estado do Rio de Janeiro. Participou da formulação e da implementação de diversos projetos no âmbito das políticas públicas de Segurança Pública.
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