O avesso do problema: os impactos da (des)governança ambiental sobre a justiça climática em um mundo superaquecido

por Deborah Bronz

Desde a década de 1990, sabemos que o Clima está sofrendo um processo de mudança acelerada e que isso é um grande problema para a vida na Terra. É cada vez menor o número de pessoas que são capazes de tentar negar esse problema. Podemos contar nos dedos alguns poucos “homens de bem”, cidadãos que defendem este tipo de “liberdade” de pensamento.

Sem dúvidas, esta é hoje uma das principais questões públicas do nosso tempo, reenquadrando antigos debates que se instituíram no campo ambiental. A prevalência desta questão pública incide sobre vários aspectos da vida social, ganhando centralidade nos meios de comunicação, no comportamento das pessoas, nas práticas cotidianas, em transformações no Estado e nas instituições de um modo geral – um processo similar ao que se passou há cerca de quatro décadas com as preocupações “ecológicas” e “ambientais”.

O antropólogo José Sérgio Leite Lopes chamou esse tipo de predominância da questão ambiental em diversos domínios da vida ocidental moderna de “ambientalização”, enfocando sobretudo nas formas de mobilização associadas à ocorrência de conflitos sociais e de concertação e participação públicas, no livro “A Ambientalização dos Conflitos Sociais”, publicado em 2014.

Renzo Taddei, outro antropólogo com extenso trabalho nessa área, integrante do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Mudanças Climáticas (INCT-MC), nos lembra que o clima é um elemento tradicional de constituição do campo político em praticamente todas as sociedades de que se tem registro etnográfico, histórico e arqueológico, no livro “Metereologistas e Profetas da Chuva”, publicado em 2017.

Uma etnografia clássica do antropólogo inglês Evans-Pritchard chamada “Os Nuer”, publicada no ano de 1940, bibliografia básica dos bons cursos de Antropologia, apresenta o exemplo de um povo africano nilota, cujas práticas são reguladas pelas temporalidades ecológicas e os sistemas de organização social e política variam a partir da forma como organizam e distribuem as atividades de seus integrantes durante as estações de ano. Marcel Mauss, antropólogo francês, em 1904, também retratou as variações sazonais de povos indígenas à época identificados, pelos regimes coloniais, como povos “esquimós”.

Thomas Hylland Eriksen, antropólogo, professor na Universidade de Oslo, Noruega, se dedica a esta questão desde 2015, reunindo cientistas sociais em torno de um projeto de pesquisa sob sua coordenação, intitulado “Superaquecimento: As três crises da globalização” (em inglês, “Overheating: The Three Crises of Globalisation“). Para ele, a questão climática é uma nova forma de abordar o problema da globalização, considerando que a “vida social” do clima – suas práticas, discursos, representações – está relacionada a processos ao mesmo tempo locais e transnacionais, situando a desigualdade e a centralidade do capitalismo como força motriz deste problema.

Segundo Eriksen, o mundo está “superaquecido”, tanto literalmente pelo aumento da temperatura global quanto metaforicamente pela velocidade acelerada dos movimentos e transações globais. A metáfora do superaquecimento não se aplica apenas ao aquecimento físico do planeta, mas também à velocidade em que as mudanças econômicas, ambientais e sociais ocorrem e à experiência generalizada de que essas mudanças estão saindo do controle humano. As suas consequências não intencionais de longo prazo geram efeitos imprevisíveis e frequentemente prejudiciais para a vida na Terra.

Diante do problema postulado, observamos a emergência de um conjunto de teorias críticas às velhas/nem tão velhas visões de desenvolvimento das sociedades capitalistas. O antropólogo Gustavo Lins Ribeiro, no início dos anos 1990, publicou um artigo sobre a emergência da ideia de sustentabilidade ambiental como uma nova utopia/ideologia do desenvolvimento, elaborando uma crítica contundente à forma como o ambientalismo foi capturado pelos agentes deste campo de poder, passando a habitar seu universo semântico.

Poderíamos voltar ao artigo de Ribeiro e retomá-lo à luz da centralidade que assumiu a questão climática, sobretudo do ponto de vista das formas de organização e ação política que se desdobram em transformações no campo do desenvolvimento, que vão da construção de infraestruturas à implementação de políticas transnacionais e maquinarias políticas. Os usos e abusos da noção de Antropoceno certamente teriam um papel central nessa releitura do artigo, sendo considerada em certos contextos um discurso plástico, maleável, ou uma forma de alguns escaparem de suas responsabilidades, ao atribuírem o problema a toda Humanidade. “É culpa do Clima”, dizem.

Um desastre e seus regimes de (des)conhecimento

O desastre vivenciado no Rio Grande do Sul, por conta das enchentes iniciadas no final de abril de 2024, é mais um caso, dentre tantos outros, de desastres decorrentes de um macabro cruzamento entre práticas políticas ineficazes e a intensificação de episódios climáticos. Mais do que isso, é um caso que ilustra muito bem uma certa capacidade de atores com poder de decisão de ignorarem problemas, ainda que seus discursos digam o contrário, ainda que drenem muito dinheiro para produzir conhecimento e subsidiar think thanks a criarem metodologias de Governo aplicadas muito precariamente.

Para mim, que conheço pouco a realidade do Rio Grande do Sul, a história e as narrativas sobre o desastre chegaram pelo Whatsapp, assim como para milhares de pessoas. Entre estas mensagens, dois fatos me chamaram muita atenção:

  1. a notícia sobre um estudo da Presidência da República (“Brasil 2040: cenários e alternativas de adaptação à mudança do clima”, encomendado em 2014 pela gestão de Dilma Rousseff, do PT) realizado há pelo menos dez anos, sobre os efeitos das mudanças climáticas no regime de chuvas e enchentes, que mencionava diretamente a situação calamitosa do RS em função da ocorrência de chuvas acentuadas;
  2. um áudio de uma arquiteta urbanista, que relatava em detalhes os aspectos que não podiam ser desconsiderados no planejamento urbano da cidade de Porto Alegre, em função de sua geografia e das formas de ocupação que ali se desenvolveram historicamente.

Estes fatos, aparentemente isolados, quando olhados pelo avesso, demarcam claramente a costura frágil que sustenta nossos modelos contemporâneos de governança. Uma conjuntura sinistra levou à morte centenas de pessoas. Um relatório foi deixado esquecido. Conhecimentos empíricos de moradores locais e técnicos especializados foram ignorados. 

Estes dois “lapsos” foram combinados a um conjunto de ações coordenadas ao contexto político que se arrastou no Brasil desde 2016 e que levou ao desmonte ambiental, ou seja, ao desmantelamento de nossa Política Nacional de Meio Ambiente. Cabe lembrar, que essa Política era até então considerada um marco no avanço da regulação socioambiental em todo mundo, e o Brasil, um exemplo para outros países.

Na imprensa, não faltam notícias informando sobre o conjunto de projetos de leis, decretos, normativas e demais atos legislativos que promoveram o desmantelamento das políticas ambientais no estado do Rio Grande do Sul, sob a batuta do governador Eduardo Leite. Ele acompanha uma tendência geral de governos liberais rumo à “flexibilização” das leis e normas – o que podemos considerar um eufemismo utilizado pelas agências para a desregulação e para diminuição do controle do Estado sobre a gestão de territórios de interesse para a produção de commodities.

Tanto se investe em Clima, tanto se fala, e tanto se desfaz. Como questionou Ilan Kelman (cientista especializado em desastres da University College London), no prefácio do livro editado por Virgínia Acosta sobre a Antropologia dos desastres na América Latina: quais os sistemas de crenças, valores, interesses, que guiam nossas ações, escolhas e comportamentos para reduzir, criar ou ignorar o risco de desastres?

Governança e desregulação do Clima

Como vimos até aqui, o Clima se tornou um novo fator decisivo para o discurso do desenvolvimento. Do ponto de vista das instituições de Estado e dos sistemas de governança global contemporâneo, a questão climática roubou a cena de outras questões que antes organizavam as agendas globais, a exemplo de temáticas como: “crescimento populacional acelerado”, “o problema da fome”, a “desigualdade social” e o “lixo”, para citar apenas alguns exemplos. 

Uma das maiores instituições intergovernamentais criada para tratar dos assuntos do Clima é o IPCC – Intergovernamental Panel on Climate Change (Painel Intergovernamental da Mudança Climática). O IPCC reúne um painel de especialistas de diversas áreas de conhecimento, para produzir informações e subsidiar as políticas de Estado a nível internacional.

No Brasil, no ano de 2023, logo no início do Governo Lula, Marina Silva, como ministra de Meio Ambiente, propôs mudar o nome do Ministério para Meio Ambiente e Mudança do Clima. Criou a Secretaria Nacional de Mudança do Clima, para fazer valer a Política Nacional de Mudanças Climáticas (instituída pela Lei 12.187/2009), e seus mecanismos de governança, sendo compostos por um Conselho Nacional de Mudança do Clima, um Comitê Interministerial sobre Mudança do Clima e um Fórum brasileiro de mudanças climáticas.

Não faltam hoje novos dispositivos e métodos de governança sendo lançados para regular o Clima. Ao mesmo tempo, acompanhamos inúmeras leis de proteção ambiental sendo vertiginosamente desfeitas.  Essa aparente contradição, nos leva a indagar como o Clima pode, ao mesmo tempo, estar tão presente e tão ausente no balizamento das ações dos sujeitos com poder de decisão na atualidade?

Não parece igualmente contraditório que um “chefão” do petróleo, o sultão Al Jaber, CEO da Empresa Nacional de Petróleo de Abu Dhabi, possa, ou melhor, deva ser o presidente designado de uma conferência climática como a COP28? . No momento, tenho mais perguntas abertas do que possíveis respostas.

Se olharmos de perto, veremos como os desastres acontecem sob responsabilidade daqueles “setores” que mais aludem aos discursos sobre mudanças climáticas e exibem suas ferramentas de modernização tecnológica e “adequação ambiental” como forma de mitigar os seus impactos e garantir seus mercados (sobre isso ver Andréa Zhouri, “Justiça ambiental, diversidade cultural e accountability: desafios para a governança ambiental“). Esses discursos têm a propriedade de produzir ilusões e difundir verdades como armas de convencimento na promoção do desenvolvimento a todo custo, ofuscando seus riscos, naturalizando diversas formas de violência, valorizando seus “benefícios”, que nunca chegam para aqueles que de fato sofrem os efeitos das grandes obras e dos desastres (trato detalhadamente destes tipos de operações em meu livro intitulado “Nos Bastidores do Licenciamento Ambiental”, publicado em 2016).

É preciso seguir analisando as formas contemporâneas de governança climática, destrinchar suas contradições, examinar suas consequências. Quem define os planos de ação? Que arranjos de poder se alinham nessas definições? Como esses arranjos constituem formas de ação sobre a ação de terceiros, caracterizando aquilo que Michel Foucault chamou de governabilidade? E, por fim, quais os saberes e conhecimentos que prevalecem nessas formas de governança?

Um dos livros da trilogia sobre o superaquecimento (editado por Thomas Hylland Eriksen e Elisabeth Schober) se concentra justamente no estudo das formas como diferentes tipos de conhecimento estão sendo articulados entre si neste contexto de transformações sociais e culturais aceleradas ( em inglês, “Knowledge and Power in an Overheated World“, 2017). As abordagens tecnológicas e humanitárias para tratar desse problema frequentemente negligenciam os processos históricos que expõem certos grupos sociais a maiores riscos e condições de vulnerabilidade socioambiental. Nesta direção, os autores se perguntam: como uma forma de conhecimento se torna hegemônica e politicamente decisiva, e quais são as condições para que modos alternativos de conhecimento possam figurar como base para uma resistência direta ou como cursos de ação alternativos?

O problema do Clima traz a desigualdade novamente para o centro do debate. Os moradores das cidades do RS atingidos pelas enchentes sentiram de modo diferencial os efeitos desse desastre. Alguns chegaram a insinuar nas redes sociais que as chuvas foram “bem democráticas”, porque atingiram áreas nobres das cidades. Certamente não poderiam seguir repetindo isso, dois meses após o desastre, quando a elite já está de volta em suas casas enquanto milhares de pessoas seguem desabrigadas. Essas pessoas têm classe, raça, gênero etc. Os efeitos da mudança climática, além de serem diferencialmente interpretados, atingem desigualmente os grupos sociais.

Neste pequeno texto, mencionei um conjunto de antropólogos de diferentes tempos e correntes, destacando como essa ciência, em diálogo com outros campos de conhecimento, tem bastante a contribuir para o debate. As abordagens e perspectivas podem variar imensamente, mas todas compartilham a proposta comum de analisar as diferentes formas que existem de olhar para esse problema.

Por ocasião da 34a Reunião Brasileira de Antropologia, a se realizar entre os dias 23 e 26 de julho de 2024, na UFMG-BH, eu e a professora Raquel Oliveira (GESTA/UFMG) organizamos um Simpósio que reunirá pesquisadores e especialistas de diferentes áreas de conhecimento para refletir sobre os cenários descritos neste breve ensaio e os arranjos de governança ambiental destinados a enfrentá-lo no contexto brasileiro (34ª RBA – Reunião Brasileira de Antropologia – SE 17 – Mudanças climáticas e desigualdade ambiental no Brasil).

O tema da justiça climática também será tratado a partir da perspectiva de movimentos sociais, pessoas afetadas por desastres e conflitos socioambientais, além de representantes de organizações voltadas à redução das desigualdades ambientais no país. Por meio delas, podemos seguir os rastros dos efeitos diferenciados do superaquecimento, aceitando o desafio proposto por Eriksen de produzir uma Antropologia das respostas locais às mudanças globais.

Deborah Bronz é professora de Antropologia da Universidade Federal Fluminense (UFF). Pesquisa políticas ambientais há mais de 20 anos. Possui livros e artigos publicados sobre o tema, disponíveis em: https://uff.academia.edu/deborahbronz

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Última Atualização: 22/07/2024