Conscientização Estratégica, por Nadejda Marques

Conscientização Estratégica

por Nadejda Marques

Este ano, pela primeira vez desde 1988, os Estados Unidos não comemorou oficialmente o Dia Mundial de Luta contra a AIDS celebrado anualmente no dia 1º. de dezembro. O Departamento de Estado instruiu seus funcionários a não utilizarem fundos públicos e não promoverem o dia, seja em palestras, discursos ou em qualquer meio de comunicação, inclusive nas mídias sociais. Autoridades da atual administração declararam que o “cancelamento” seria justificado porque, supostamente, a conscientização não seria uma estratégia de saúde pública.

Como assim? A conscientização é um dos principais pilares das políticas e estratégias de combate à AIDS e, como muitos ativistas alertavam no início dos anos 80, o silêncio resulta em morte, o preconceito e a discriminação. Os avanços e conquistas na área do Direito à Saúde não seriam possíveis sem o ativismo e os movimentos sociais ligados à crise do HIV/AIDS. Foi a partir da conscientização dos direitos das pessoas com AIDS que o direito à saúde passou a ser amplamente compreendido como um direito humano e assim declarava Nelson Mandela em 2003, “a AIDS não é mais apenas uma doença, é uma questão de direitos humanos.”

Negar a importância de um dia de conscientização (e também memória) ou reduzir significativamente as contribuições ao Fundo Mundial para Combater a AIDS, Tuberculose e Malária com desculpas financeiras ou econômicas tampouco faz sentido. Não se pode falar apenas no custo-benefício de um Fundo responsável pelo fornecimento de terapia antirretroviral para cerca de 25.6 milhões de pessoas vivendo com HIV. Um Fundo que disponibiliza tratamento para tuberculose para cerca de 7.4 milhões de pessoas e que distribui milhares de telas anti-mosquito e medicamentos para a prevenção e tratamento da malária. Desde a sua criação, estima-se que o Fundo tenha salvo 70 milhões de vidas e ajudado a elevar a expectativa de vida mundial contribuindo dentre outras coisas (e talvez mais importantes) para o crescimento das economias. Em um mundo onde 40.8 milhões de pessoas vivem com o HIV, um estudo recente sobre o impacto das políticas e investimento para o controle do HIV, malária e tuberculose, estima que 23 milhões de vidas podem ser salvas e 400 milhões de novas infecções podem ser evitadas entre 2027 e 2029. Além disso, os autores calculam que para cada $1 dólar investido, as economias teriam um retorno de $3·50 em benefícios diretos. O não investimento gera muito mais do que um “não-ganho” econômico porque grandes números de pessoas teriam que interromper seu tratamento, gerando um rápido aumento dessas doenças, sobrecarregando os sistemas de saúde, as famílias, as comunidades, a sociedade. Aqui, a inação ou o não investimento também resulta em morte.

O mundo está mudando, é verdade. O futuro é incerto. Mas, como entendem os Aymara, o passado conhecido está bem na nossa frente. O Brasil sabe o que foi a luta contra a AIDS e quanto Betinho, Henfil, Cazuza, Renato Russo, Cláudia Magno, Lauro Corona e tantos e tantos brasileiros e brasileiras fazem falta. Em muitos aspectos, o Brasil afirmou sua capacidade de liderança mundial posicionando-se em um momento de crise. Firmou-se um compromisso com a sociedade brasileira. São cerca de 920 mil pessoas vivendo com o vírus do HIV no Brasil. 95% delas não vão desenvolver a doença graças às políticas de saúde pública. Graças ao SUS. Graças ao acesso a programas de prevenção, testagem e tratamento gratuitos. Graças também à conscientização. Seguimos.

Nadejda Marques é escritora e autora de vários livros dentre eles Nevertheless, They Persist: how women survive, resist and engage to succeed in Silicon Valley sobre a história do sexismo e a dinâmica de gênero atual no Vale do Silício e a autobiografia Nasci Subversiva.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

“Democracia é coisa frágil. Defendê-la requer um jornalismo corajoso e contundente. Junte-se a nós: https://www.catarse.me/JORNALGGN

Artigo Anterior

Com Selic a 15%, economia desacelera e PIB tem alta de apenas 0,1%

Próximo Artigo

Ex-presidente do Paraguai tem sanção pela Lei Magnitsky revogada por Trump

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter por e-mail para receber as últimas publicações diretamente na sua caixa de entrada.
Não enviaremos spam!