O mundo está um lugar mais perigoso. É um sentimento que se ouve com fre­quência ultimamente, mas será mesmo verdade? As comparações históricas ajudam de forma limitada.

O 80º aniversário da libertação do campo de concentração de Auschwitz-Birkenau (Polônia), onde 1,1 milhão de seres humanos, na maioria judeus, foram assassinados pelos nazistas alemães entre 1940 e 1945, foi uma lembrança sombria de como a vida pode ser terrivelmente brutal quando a guerra reina sem controle. As coisas poderiam ser piores? As últimas leituras do “Relógio do Juízo Final”, que mede teoricamente a proximidade de uma catástrofe global, sugerem que sim. Um painel de cientistas internacionais diz que o relógio está agora a 89 segundos da meia-noite, o mais próximo do ponto teórico de aniquilação. As razões são bastante conhecidas: o risco de guerra nuclear, a mudança climática, as pandemias, a desinformação, as novas tecnologias… A questão é que essas amea­ças são mal abordadas – e crescem de modo inexorável.

A organização independente e sem fins lucrativos conhecida como Acled (Armed Conflict Location & Event Data) compila informações e análises para rastrear e reduzir os conflitos violentos. Os confrontos globais, avalia a ONG, duplicaram nos últimos cinco anos. Os incidentes de violência política em 2024 foram 25% mais frequentes que em 2023 e que um em cada oito seres humanos no mundo foi exposto a conflitos. Por essas medidas, a ideia de que o mundo está mais perigoso é totalmente justificada.

Embora algumas guerras, como ­Israel–Palestina e Rússia–Ucrânia, recebam, com razão, grande atenção da mídia, elas são exceções. A maioria dos conflitos atuais – quer envolvam guerras e invasões no Sudão e no Congo, abusos graves aos direitos humanos no Afeganistão e no Tibete, guerras entre grupos criminosos no Haiti e na Colômbia, fome generalizada no ­Iêmen e na ­Somália ou repressão política na Nicarágua, Bielorrússia e Sérvia – é subnotificada, esquecida ou ignorada. Vejamos:

Os confrontos no planeta duplicaram nos últimos cinco anos

 Congo–Ruanda

Conflito duradouro ao longo da fronteira leste da República Democrática do Congo ganhou manchetes globais depois de a cidade de Goma ser capturada por um grupo rebelde conhecido como M23. O presidente de Ruanda, Paul Kagame, é acusado pela ONU de armar e dirigir o M23 e enviar tropas pela fronteira, o que ele nega.

A área, embora geralmente pobre, é rica em minérios metálicos como o coltan, muito procurado no Ocidente. Milhares de habitantes foram deslocados nos combates, em meio à violência sexual e uma iminente emergência de saúde pública.

A crise repentina motivou uma reunião do Conselho de Segurança da ONU, na qual o Reino Unido e a França condenaram o comportamento de Ruanda. Os Estados Unidos dizem apoiar a soberania da RDC. A Alemanha suspendeu as negociações de apoio a Kigali. Mas isso pode ter pouco efeito. A União Europeia assinou um acordo estratégico de minerais com Ruanda no ano passado, embora saiba que algumas commodities são contrabandeadas do Congo. O conflito dentro e ao redor da RDC continua, de maneira intermitente, há décadas. Milhões já morreram.

Mianmar

No ano passado houve uma crescente resistência armada à junta militar que derrubou o governo eleito da ganhadora do Prêmio Nobel da Paz Aung San Suu Kyi, em 2021. Em resposta, os generais estão recorrendo ao que a Human Rights ­Watch chama de táticas de “terra arrasada”. Isso inclui ataques aéreos indiscriminados contra civis, assassinato, estupros, tortura e incêndios criminosos, “equivalentes a crimes de guerra e crimes contra a humanidade”.

A ONU diz que Mianmar está em “queda livre”:  20 milhões de moradores precisarão de ajuda em 2025, mas a atividade humanitária muitas vezes é barrada. O recrutamento involuntário de jovens adultos e crianças é imposto por meio de sequestros e detenções. Aung San Suu Kyi segue presa, um dos 21 mil prisioneiros políticos. Civis da minoria muçulmana rohingya continuam sendo visados no estado de Rakhine.

Terror. No Haiti, as gangues tomam conta das ruas e achacam a população – Imagem: Antoni Lallican/Hans Lucas/AFP

Haiti

Descrito como o país mais pobre do hemisfério ocidental, o Haiti tem uma reputação de ingovernabilidade. Uma série de intervenções internacionais apoiadas pelos Estados Unidos não conseguiu gerar estabilidade duradoura.

A última descida do Haiti ao caos seguiu-se ao assassinato, em 2021, de seu último presidente eleito, Jovenel Moïse. Bandos armados por toda parte, vivendo de violência, extorsão e sequestros, dominam a situação. Analistas dizem que o Haiti é hoje um Estado falido. Mais de 5,3 mil civis foram mortos no ano passado, enquanto 700 mil estão deslocados. Quase 5 milhões, metade da população, enfrentam insegurança alimentar. Os cortes de ajuda externa ameaçados por Trump terão efeito muito duro.

Etiópia–Somália

A posição da Etiópia como exemplo de ajuda internacional e esforços de ­desenvolvimento passou por uma reavaliação drástica nos últimos anos, coincidindo com a ascensão ao poder do primeiro-ministro Abiy Ahmed, em 2018. Ainda não houve uma responsabilização pública completa da devastadora campanha militar de Ahmed na província de Tigray, no norte, que terminou com uma trégua em novembro de 2022. O conflito ficou notório pelas graves violações de direitos humanos por todos os lados, mas principalmente pelo governo etíope e pelas forças aliadas da Eritreia.

A preocupação agora envolve a região de Amhara, na Etiópia, onde a repressão crescente e as prisões em grande escala de opositores do governo ocorrem em meio a conflitos contínuos com grupos armados. A Anistia Internacional diz que o mundo faz vista grossa: “O silêncio internacional sobre a detenção em massa e arbitrária de milhares de pessoas na região de Amhara é mais que vergonhoso”. A preocupação é que, como ocorreu em Tigray em 2020, Amhara possa explodir numa rebelião secessionista total em 2025.

Irã

Nos últimos 15 anos, o Irã passou por três grandes levantes, em 2009, 2019 e 2022. Analistas do Oriente Médio perguntam-se quando será o próximo. Ou a guerra total com Israel virá primeiro?

A repressão irracional, particularmente de mulheres, é uma marca registrada do regime que pode causar sua ruí­na. A imposição da sentença de morte a Pakhshan Azizi, ativista cívica curda-iraniana, sob acusações forjadas de “rebelião armada contra o Estado” provocou uma campanha internacional para salvá-la. O caso de Azizi se segue à morte sob custódia, em 2022, de Mahsa Amini, acusada de violar os códigos de vestimenta islâmicos.

Ao todo, o Irã executou mais de 900 presos no ano passado, segundo a ONU.

Síria–Turquia

Com um terno de passeio em estilo ocidental, em vez de uniforme de combate, Ahmed al-Sharaa, líder do grupo rebelde islâmico que derrubou Bashar ­al-Assad em dezembro, foi nomeado presidente de transição. Em uma série de mudanças radicais, um conselho legislativo nomeado substituiu o antigo Parlamento e todos os grupos armados foram instruídos a se dissolver e se juntar a um novo exército nacional. Para os que esperam que a Síria se torne um país “normal”, soou positivo. Mas as eleições democráticas estão a três ou quatro anos de distância, diz Sharaa, e muita coisa pode dar errado.

Embora tenham aprovado a queda de Assad, os Estados Unidos, a União Europeia e os países do Golfo Pérsico têm demorado a tomar medidas concretas para ajudar, como suspender sanções e liberar fundos. Cerca de 6,7 milhões de vulneráveis precisam de assistência urgente, diz a ONU. Os serviços de saúde, escolas e moradia são inadequados. Grande parte do interior está semeada de minas terrestres.

O planeta ignora a luta sangrenta pelo poder entre o exército e rebeldes no Sudão

Sudão

Comentaristas da mídia gostam de referir-se à catástrofe humanitária e de segurança no Sudão atual como um conflito “esquecido”. A verdade é pior. Não é esquecido. É ignorado, e principalmente desde a irrupção do caos irrompeu em 2023.

Milhões de sudaneses foram deslocados e centenas de milhares enfrentam condições de fome em consequência da luta pelo controle entre o exército do Sudão e forças paramilitares renegadas, conhecidas como RSF. Estas últimas são acusadas de genocídio na região de Darfur Ocidental, por meio do ataque a comunidades não árabes, onde assassinatos e violência sexual são frequentes.

A negligência internacional com o Sudão pode estar lentamente perto do fim em 2025. Karim Khan, promotor-chefe do Tribunal Penal Internacional, disse que buscará prender os suspeitos de cometer crimes de guerra e outras atrocidades em Darfur, supondo que eles possam ser capturados. Em certo sentido, a história se repete. Em 2003, Darfur tornou-se sinônimo de genocídio e crimes de guerra perpetrados pela milícia ­Janjaweed, precursora da RSF. Interromper a guerra mais ampla em todo o Sudão é ainda mais desafiador. Por enquanto, essa perspectiva parece distante.

Afeganistão–Paquistão

O abandono do Afeganistão pelos Estados Unidos aos extremistas do Talibã em 2021 foi vergonhoso – e politicamente c­ustoso. Os índices de aprovação doméstica do ex-presidente Joe Biden despencaram e nunca mais se recuperaram. Mas as maiores perdedoras foram as mulheres e as meninas afegãs, novamente submetidas a regras islâmicas rigidamente interpretadas, que lhes negam liberdades pessoais, o direito à educação e carreiras profissionais.

O Tribunal Penal Internacional tomou recentemente medidas para remediar esse abuso, anunciando que buscaria a prisão dos principais líderes do Talibã, Haibatullah Akhundzada e Abdul Hakim Haqqani, pelo crime contra a humanidade de perseguição baseada em gênero, novidade global.

Impasse. A derrubada do ditador Bashar al-Assad não pacificou a Síria – Imagem: Aaref Watad/AFP

A estabilidade geral do Afeganistão está em dúvida no início de 2025, com o país mal governado, atolado na pobreza e vítima de facções extremistas externas, como o Estado Islâmico da Província de Khorasan.

O vizinho Paquistão também parece profundamente instável após um ano de agitação política que deixou o popular ex-primeiro-ministro Imran Khan na prisão e um político apoiado pelo exército, Shehbaz Sharif, no comando. Analistas dizem que 2024 trouxe níveis crescentes de militância violenta entre separatistas balúchis e o Tehreek-e-Taliban Pakistan. “A contenciosa situação política doméstica provavelmente criará mais oportunidades para os militantes obterem ganhos explorando a raiva local em 2025”, alerta o Acled.

Iêmen

O país foi chamado de a pior emergência humanitária do mundo, e talvez ainda o seja, apesar dos horrores crescentes no Sudão. Desde o ataque do Hamas a ­Israel, em 7 de outubro de 2023, entretanto, a atenção global desviou-se da crise doméstica para seus rebeldes houthis.

Após o cessar-fogo em Gaza, os ataques marítimos dos houthis pararam em grande parte. Mas a guerra civil mais ampla continua a causar enormes problemas, com cerca de 150 mil mortos e 18 milhões a enfrentar escassez de alimentos.

Dois terços dos alimentos do Iêmen e 90% dos suprimentos médicos são importados. A necessidade é grande. Mas, como no passado, talvez falte vontade política. •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

Publicado na edição n° 1349 de CartaCapital, em 19 de fevereiro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Conflitos esquecidos’

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Last Update: 13/02/2025