O Conselho Federal de Medicina (CFM) realizará uma eleição atípica nos próximos dias 6 e 7, com cerca de 600 mil médicos aptos a votar. Será a disputa dos defensores da ciência e da ética profissional contra os negacionistas que controlam a entidade.
A vitória contra os negacionistas é considerada pelos defensores da ciência como fundamental para a garantia do direito à saúde, previsto na Constituição, mas alvo de violações por parte do CFM.
O negacionismo que tomou conta da autarquia é uma das heranças nefastas do bolsonarismo, que contaminou também grande parte da população, entidades representativas e instituições do Estado.
A conversão do CFM ao bolsonarismo ficou clara durante a pandemia, com o respaldo do colegiado à decisão do governo passado de indicar medicamentos ineficazes contra a covid-19.
“PL do estupro”
Mais recentemente, o CFM esteve em sintonia com os bolsonaristas do Congresso Nacional que fracassaram na tentativa de aprovar o Projeto de Lei 1.904 de 2024, que equipara a interrupção da gestação com mais de 22 semanas ao crime de homicídio, mesmo em casos de violência sexual.
O CFM tinha baixado uma resolução que também pretendia reprimir o direito das mulheres. O ato normativo proíbe a utilização de uma técnica clínica (assistolia fetal) para a interrupção de gestações acima de 22 semanas decorrentes de estupro.
Durante uma audiência no Senado para discutir o assunto, o presidente do CFM, José Hiran da Silva Gallo, afirmou que a “autonomia da mulher” deve ser limitada quando se fala em aborto legal após a 22ª semana.
“A autonomia da mulher esbarra, sem dúvida, no dever constitucional imposto a todos nós, de proteger a vida de qualquer um, mesmo o ser humano formado por 22 semanas”, disse.
A audiência foi liderada pelo senador bolsonarista Eduardo Girão. O debate foi marcado por performances e só reuniu defensores do chamado “PL do estupro”.
A resolução do CFM foi suspensa pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes em maio. O magistrado concedeu a liminar em uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) de autoria do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL).
Segundo comunicado do STF, “na avaliação do ministro, há, na hipótese, indícios de abuso do poder regulamentar por parte do CFM ao limitar a realização de procedimento médico reconhecido e recomendado pela Organização Mundial de Saúde e previsto em lei”.
Expectativa de mudança
Após tantos retrocessos, o domínio dos negacionistas sobre o CFM pode estar perto do fim, segundo o afirmou ao Site do PT, nesta sexta-feira (2), o senador Humberto Costa (PT-PE), que é médico e foi ministro da Saúde durante o primeiro governo Lula.
“As eleições para o Conselho Federal de Medicina este ano são importantíssimas para a saúde no nosso país, importantíssimas para a própria população, porque, lamentavelmente, já há alguns anos, um grupo ultraconservador, privatista, negacionista do ponto de vista científico, tem estado à frente não somente do Conselho Federal de Medicina, mas de muitos conselhos estaduais e, até mesmo, de sindicatos de médicos”, disse o senador.
“Nós acreditamos que, nesse período todo, pela primeira vez, há a possibilidade de que médicos realmente comprometidos com o juramento de Hipócrates, comprometidos com a medicina como uma profissão que tem o ser humano como centro da sua atividade, possa vencer essa eleição e dar um outro rumo às ações do Conselho Federal de Medicina”, acrescentou.
Humberto também ressaltou o fato de, nos últimos anos, o CFM ter descumprido a legislação brasileira: “Veja-se o caso do aborto previsto em lei, em que eles têm tentado, de todas as maneiras possíveis, criar mecanismos para desrespeitar a legislação e impedir que a garantia do aborto previsto em lei seja feita, inclusive, no caso de crianças que foram estupradas. Então eu acredito que essa eleição será crucial, absolutamente crucial, para que nós possamos ter a nossa profissão, a profissão de médicos, atuando dentro daquilo que historicamente sempre a caracterizou: uma profissão que tem o ser humano em primeiro lugar”.
Convocação
A mobilização pela derrota do negacionismo na eleição do CFM conta também com a participação do deputado federal Jorge Solla (PT-BA), que foi secretário de Atenção à Saúde do Ministério da Saúde durante o primeiro governo Lula e tem ampla carreira pública na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS).
“Dias 6 e 7, toda a categoria médica tem uma grande oportunidade de renovar os quadros da direção do Conselho Federal de Medicina, fazendo com que tenhamos representantes que defendam a ciência, que defendam a democracia, que defendam o Sistema Único de Saúde”, disse Solla ao Site do PT, nesta sexta-feira (2).
“Infelizmente, nos últimos anos, a direção do CFM esteve com as posições mais retrógradas, mais atrasadas, mais conservadoras. Eu diria até que foram parte decisiva do processo que culminou com o genocídio que levou a mais de 700 mil mortes na pandemia, graças à tragédia da atuação do governo passado. E o impacto até hoje está sendo enfrentado”.
Ele prosseguiu: “Nós estamos conseguindo virar o jogo, estamos conseguindo reconstruir o país, estamos conseguindo retomar a cobertura vacinal que foi perdida graças a atuações extremamente prejudiciais e com infeliz participação das direções que fazem parte do Conselho Federal de Medicina. Mas agora viramos o jogo em 2022, trazendo de volta o presidente Lula, e vamos virar o jogo agora também, na nossa representação da categoria médica”.
Solla disse ainda ter certeza de que médicos em todos os estados estão comprometidos em resgatar o CFM como parceiro fundamental na construção do SUS. “Na luta pela saúde da nossa população, por salvar vidas, por usar as ferramentas que a ciência nos disponibiliza para melhorar a qualidade de vida da nossa população. Todos nós vamos às urnas virtualmente. Vamos pela internet escolher os nossos representantes, em cada estado. Temos representantes que com certeza vão ajudar a reconstruir o país”.
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Repercussão nacional
A eleição no CFM é um tema que tem sido destaque nos meios de comunicação e nas redes sociais. Durante uma live do Diário do Centro do Mundo (DCM), o médico sanitarista José Gomes Temporão, que foi ministro da Saúde no segundo governo Lula, falou sobre o assunto.
Ele foi perguntado sobre a médica Beatriz MacDowell, que desistiu de disputar a eleição por conta de uma regra eleitoral do CFM que proíbe candidatos de concederem entrevista à imprensa.
“É uma coisa curiosa. Na verdade, essa eleição talvez seja uma das primeiras eleições do CFM que transbordou para fora da corporação médica. Virou um tema da sociedade. Está todo mundo discutindo isso. Essa politização negativa, nesse sentido negativo, esse posicionamento onde médicos negacionistas, pelo YouTube e pelas redes sociais, o tempo todo atacando as vacinas, é um absurdo”.
“Estão impedindo que os pais levem seus filhos para se vacinarem contra a Covid-19. O vírus está circulando, continua circulando, vai voltar a matar, os casos continuam acontecendo. A gente sabe que, proporcionalmente, os menores correm mais riscos, os menores e os mais idosos, em relação à mortalidade”.
Sobre o caso da médica Beatriz MacDowell, Temporão evitou dizer que há um cerceamento da liberdade de expressão, mas afirmou que as normas eleitorais foram fixadas pelo grupo atualmente no comando do CFM.
“Eu diria o seguinte: tem muita gente muito cuidadosa em se expressar do ponto de vista político, partidário, ou de parecer muito progressista, muito de esquerda, tremendo perder votos de médicos que, potencialmente, poderiam votar. Está acontecendo muito isso”.
Da Redação