Gaza vs. Ucrânia: um retrato da cobertura da imprensa
Gaza vs. Ucrânia: um retrato da cobertura da imprensa
por Eduardo Vasco
Vou analisar rapidamente dois episódios que ocorreram na semana passada e que simbolizam muito bem o que tem sido a cobertura da imprensa brasileira dos conflitos na Ucrânia e em Gaza.
Na segunda-feira (08), um míssil atingiu o hospital infantil Okhmatdyt, em Kiev, causando grande destruição e deixando dezenas de mortos. O governo ucraniano acusou a Rússia de ter feito o ataque, enquanto os russos disseram que a explosão se deu após a queda de um míssil terra-ar do próprio sistema antiaéreo NASAMS fornecido pela Noruega à Ucrânia.
A TV Globo noticiou o caso por 2 minutos e 42 segundos na edição do mesmo dia do Jornal Hoje, cravando que foi um “ataque russo”, nas palavras da reportagem. Abrindo o tema, o âncora César Tralli afirmou que a Rússia havia lançado dezenas de mísseis contra a Ucrânia naquele dia e que, em Kiev, o ataque atingiu um hospital infantil. Em seguida, uma reportagem de Leonardo Monteiro, correspondente em Lisboa, exibiu imagens do míssil caindo sobre o local, da destruição causada, de pessoas desesperadas e de crianças pacientes que haviam sobrevivido, deixando o local destruído.
Enquanto exibia as imagens, na reportagem foram apresentadas as declarações de um civil e de uma moradora sobreviventes, do ministro da Saúde da Ucrânia e do presidente ucraniano, Vladimir Zelensky, acusando os russos. “A Rússia vem negando que atinge civis”, informa, depois, o repórter, que também cita o ministro da Defesa da Rússia, dizendo que não foi a autora do ataque.
O Jornal Nacional do mesmo dia também noticiou o ocorrido, durante 2 minutos e 4 segundos. Na escalada do início do programa, quando são apresentados os principais assuntos da edição, a âncora Renata Vasconcellos anunciou: “um ataque russo atinge um hospital pediátrico na capital da Ucrânia”. O tema foi anunciado novamente quando o programa entraria no intervalo: “um bombardeio russo atinge um hospital pediátrico na Ucrânia”, anunciou o âncora William Bonner, para o próximo bloco.
Então, na chamada para a reportagem, já no bloco seguinte, Bonner falou: “a Rússia disparou mísseis contra a Ucrânia e atingiu um hospital infantil na capital, Kiev. O governo ucraniano anunciou que houve 36 mortes, inclusive de crianças”. A reportagem de Ilze Scamparini, correspondente em Roma, mostrou o depoimento de uma enfermeira do hospital, as mesmas imagens dos escombros e da confusão que haviam sido mostradas no Jornal Hoje e apresentou o barulho do impacto dos projéteis, dando dramaticidade à notícia. Crianças também foram mostradas sendo resgatadas. Foram citados ainda o ministro da Defesa da Itália e o primeiro-ministro recém-eleito do Reino Unido, Keir Starmer, para exemplificar a afirmação da repórter de que “a condenação internacional foi unânime”. Por fim, também foi citado o Ministério da Defesa da Rússia, apresentando rapidamente a sua versão.
No dia seguinte, o noticiário da TV Globo continuou cobrindo o tema. O Jornal Hoje falou por 3 minutos e 10 segundos do “ataque russo”, incluindo uma reportagem de 2 minutos e 28 segundos de Leonardo Monteiro. A reportagem mostrou o depoimento do diretor do hospital infantil, que disse que 600 crianças estavam no local e dando detalhes da explosão, ao mesmo tempo que voltava a mostrar as imagens que já haviam sido expostas na edição anterior. A chefe da missão de monitoramento de direitos humanos da ONU na Ucrânia foi apresentada como fonte especializada para embasar o entendimento de que o míssil que atingiu a escola havia sido disparado pelas forças russas. O repórter, por sua vez, apresentou também a afirmação do governo russo de que o míssil era ucraniano, mas destaca: “sem apresentar provas”. O correspondente em Nova Iorque, Felipe Santana, também informou sobre o ocorrido e sua discussão em meio a uma cerimônia da OTAN, citando ainda as posições na ONU do embaixador russo e do embaixador ucraniano. Ademais, foram apresentadas as declarações do presidente Zelensky e do Itamaraty. O que chamou mais a atenção, contudo, foi a distorção do contexto da fala do primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, que, em visita ao presidente russo, Vladimir Putin, em Moscou, disse que “a morte de crianças inocentes na guerra é dolorosa e aterrorizante” – a reportagem apresenta essa declaração deixando a entender que foi uma crítica de Modi a Putin, o que não parece corresponder com o verdadeiro tom da mensagem, uma vez que o encontro dos dois líderes foi extremamente amigável e caloroso.
Na noite de 9 de julho, o Jornal Nacional apresentou apenas uma nota coberta de 37 segundos sobre o tema, destacando que “o Kremlin declarou, sem apresentar provas”, que não foi o responsável pela tragédia, mas sim o próprio sistema antimísseis ucraniano.
O Jornal Hoje do dia 10 de julho não abordou mais o tema, mas o Jornal Nacional daquela noite ainda citou rapidamente o acontecido, mostrando as imagens da destruição enquanto falava sobre a reunião dos membros da OTAN, com falas de Joe Biden, presidente dos EUA, e de Zelensky, contra a Rússia, mas sem citar verbalmente o episódio do hospital infantil.
Nos jornais, o tema mereceu uma matéria do Estadão, duas da Folha de S.Paulo e quatro de O Globo.
Enquanto a explosão no hospital infantil de Kiev ocorria e merecia, como vimos, considerável destaque na imprensa brasileira, uma tragédia semelhante ocorria em Gaza. Na terça-feira (09), um bombardeio matou ao menos 31 pessoas, incluindo 8 crianças na Escola al-Awda, em Abasan al-Kabira, no leste de Khan Younis. As autoridades palestinas acusaram Israel pelo ataque, enquanto Tel Aviv admitiu a responsabilidade, mas disse que iria investigar os danos causados e justificou a ação afirmando que o alvo era um militante do Hamas.
O Jornal Nacional do dia anterior havia veiculado uma nota de 23 segundos sobre uma “ofensiva de Israel em Gaza” em que o “grupo terrorista Hamas” havia acusado Tel Aviv de causar cerca de 40 mortes. Como o jornal não deu nenhum detalhe sobre a notícia, não é possível saber se já estava falando do ataque à escola (uma vez que, naquele momento, o dia 9 já começava a amanhecer em Gaza) ou se estava se referindo a outro ataque.
O Jornal Hoje do dia 9 não citou o ataque, bem como o Jornal Nacional. No dia 10, o Jornal Hoje voltou a silenciar sobre o bombardeio, e o Jornal Nacional também.
Por sua vez, os três principais jornais impressos noticiaram o ocorrido em Gaza. A Folha publicou uma matéria em seu site no dia 9, mas sem se referir a Israel no título (“Ataque aéreo atinge campo de deslocados no sul da Faixa de Gaza”) e citou o ataque somente nos dois primeiros parágrafos da reportagem de 21 parágrafos. O Globo e Estadão deram a notícia apenas no dia 10. O jornal fluminense veiculou duas matérias sobre o caso, citando o responsável (Israel) em ambos os títulos. Mas o jornal paulista apenas mencionou o ataque em um intertítulo com três parágrafos, dentro de uma matéria de 19 parágrafos que informava sobre outros eventos. Nem título nem linha fina citavam Israel (título: “Ataques aéreos atingem centro de Gaza e campo de refugiados”; linha fina: “Bombardeios ocorrem enquanto mediadores se reúnem em Doha para avançar em um acordo de cessar-fogo e liberação de reféns do conflito”).
Em resumo, o ataque em Kiev mereceu mais de 8 minutos e meio de cobertura no Jornal Hoje e no Jornal Nacional, os dois principais telejornais da TV Globo, emissora mais assistida da televisão brasileira, com milhões de telespectadores. A Rússia foi veementemente responsabilizada pelo ataque e as imagens da destruição e do sofrimento causados por ele foram exibidas e reexibidas. Além disso, os três principais jornais impressos do país veicularam 7 matérias sobre o incidente.
Por outro lado, o ataque em Khan Younis, na Faixa de Gaza, ocorrido no dia seguinte, não foi veiculado pelos dois jornais da Globo. O máximo que ocorreu foi uma nota de 23 segundos que não fornece nem mesmo elementos básicos para se saber onde foi o evento narrado por ela. Os jornais veicularam 4 matérias sobre esse ataque, mas apenas as duas matérias do jornal O Globo citam o responsável (Israel) no título, enquanto as duas matérias de Folha e Estadão não citam Israel no título e mencionam o ocorrido em apenas 5 parágrafos de um total de 40 parágrafos.
Esses dois eventos, ocorridos quase simultaneamente, são pequenos episódios que retratam a absoluta desproporcionalidade na cobertura da imprensa brasileira (e ocidental). Enquanto a destruição e as vítimas na Ucrânia são expostas com grande destaque todos os dias (mesmo após dois anos e meio e uma estagnação do conflito), as de Gaza são ignoradas. Os ataques russos são sempre noticiados e ressaltados, mas os ucranianos – que ocorrem contra a população do leste da Ucrânia, há dez anos, e do oeste da Rússia – quase nunca o são. Já as (poucas) notícias sobre os ataques israelenses frequentemente omitem que Israel é o agente responsável e sempre lembram o público que os guerreiros do outro lado são “terroristas”.
Eduardo Vasco é jornalista especializado em política internacional, foi correspondente na guerra da Ucrânia e escreveu os livros-reportagem “O povo esquecido: uma história de genocídio e resistência no Donbass” e “Bloqueio: a guerra silenciosa contra Cuba”.
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