Conferência da Pessoa Idosa: a virada é o acesso universal aos cuidados
por Ion de Andrade
Cronicamente insuficiente, a Rede de Cuidado Integral da Pessoa Idosa é, num Brasil que envelhece rapidamente, um dos exemplos mais completos da falta de prioridade do Poder Público e da invisibilidade de uma população que cresceu 54% desde o último censo e representa hoje 16% da população brasileira.
A Rede a que nos referimos, oferta serviços por meio de uma série de instituições e políticas públicas que têm o propósito de assegurar o protagonismo e de cuidar da pessoa idosa no Brasil.
Poderíamos citar para exemplificar algumas delas:
- Os Centros-Dia, que são unidades públicas destinadas ao atendimento especializado a pessoas idosas e a pessoas com deficiência que tenham algum grau de dependência de cuidados. Elas buscam evitar o isolamento social, o abandono e a necessidade de acolhimento;
- As Instituições de Longa Permanência de Idosos ou ILPI, que se propõem a acolher o idoso em situação de risco e vulnerabilidade social, que não têm ou que até podem ter famílias incapazes, ou impossibilitadas pela miséria ou outras vulnerabilidades sociais de oferecer o cuidado;
- Os cuidados domiciliares e o acompanhamento terapêutico das pessoas idosas nos seus domicílios, serviço muito pouco implantado considerando a magnitude das necessidades reais, além dos
- Diversos equipamentos sociais e de saúde necessários a essa faixa etária.
Como está essa rede?
A oferta de serviços sociais para o Cuidado Integral à Pessoa Idosa é no Brasil um dos elos mais frágeis das políticas sociais. Não somente a oferta desses serviços é insuficiente para a demanda como não há horizonte de cobertura universal das necessidades.
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, IBGE, os “abrigos ou outras instituições de longa permanência para idosos”, abrigavam 161 mil pessoas para uma população de 32 milhões de idosos segundo o censo de 2022. Isso representa 0,5% da população idosa do Brasil.
Ora, segundo o próprio IBGE, 27,4% desses idosos eram portadores de deficiência (que não é sinônimo de “risco e vulnerabilidade”, mas pode compor o conceito), em 2022, o que significa quase nove milhões de idosos.
Entretanto a vulnerabilidade na velhice transcende a dependência para a realização das atividades da vida diária. Ela é um fenômeno multidimensional que engloba a pobreza e a insegurança de renda, o isolamento social e a solidão, a violência física e psicológica, a ausência de redes de apoio familiar e comunitário, e as barreiras de acesso a serviços de saúde mental.
Um idoso pode ser fisicamente autônomo, mas estar em situação de extrema vulnerabilidade devido à depressão ou ao abandono. Portanto, o dimensionamento das necessidades de cuidado deve incorporar indicadores que capturem essa complexidade, permitindo que a política pública seja desenhada não apenas para responder à dependência funcional, mas para promover o bem-estar, a inclusão social e a dignidade em todas as suas dimensões.
Em Portugal que tem uma densa rede de cuidados domiciliares que evita a institucionalização de grande número de idosos, cerca de 5% da sua população idosa está institucionalizada, ou seja, cerca de dez vezes mais do que institucionalizamos no Brasil sem qualquer rede de cuidados domiciliares.
Muitos “especialistas” no Brasil, inclusive, entendem que a institucionalização é um luxo e se dá por abandono das famílias, quando, obviamente, muitos idosos vulneráveis não têm vínculos familiares e vivem nas ruas ou em situações extremas sem o recurso a qualquer política que lhes garanta dignidade.
Quantos profissionais no front do cuidado domiciliar, Centros -Dia ou ILPI seriam necessários ao Brasil considerando esses e outros critérios de vulnerabilidade? Ninguém sabe ou calculou.
Incrivelmente, a política de cuidado integral à pessoa idosa ainda não definiu um horizonte de necessidade, por exemplo em relação aos Centros-Dia como faz a rede SUS com as suas Unidades Básicas de Saúde nas quais cada equipe da Estratégia Saúde da Família pode acompanhar, no máximo um contingente situado entre 3.200 e 4.000 pessoas.
Sem parâmetros a política opera às cegas, abrindo novos serviços por uma análise superficial de carência, mas sem qualquer horizonte demográfico estratégico de cobertura universal.
Esta lacuna de planejamento não é acidental, mas sim o reflexo de uma construção histórica e política que relegou a assistência social a um papel secundário em comparação com a saúde.
Enquanto o SUS foi fruto de um robusto movimento social sanitarista que inscreveu a saúde como um direito universal na Constituição, a política de cuidados permaneceu fragmentada e associada a uma visão assistencialista e familiar.
A desvalorização do trabalho de cuidado contribuiu para que a assistência ao idoso não desenvolvesse a mesma maturidade institucional e capacidade de planejamento do sistema de saúde. Mas é hora de mudarmos isso.
No SUS, o dimensionamento da capacidade de cobertura do serviço permite o cálculo mais largo e preciso da necessidade populacional. Essa abordagem inexiste para o Cuidado Integral à Pessoa Idosa, tanto no mundo real como no planejamento.
Isso significa que as políticas públicas não estão guiadas pela necessidade populacional de Centros-Dia, ILPI ou Cuidados Domiciliares para um dado município, estado ou para o país inexistindo o quantitativo conhecido pelos gestores de quantas unidades ou profissionais seriam necessários para as tarefas ou de onde territorialmente deveriam ser implantadas as unidades da Rede ainda que no futuro.
As demandas pelo incremento da Rede, por falta do que já é repertório no SUS, não conseguem estabelecer nenhum horizonte de completude para essa Rede de Cuidados que por mais que esteja distante poderia ir sendo alcançado ano a ano.
Ao mesmo tempo, as reivindicações dos que fazem parte da Sociedade Civil interessada e operando na área (onde eu me incluo) só conseguem exprimir, ante a percepção dessa insuficiência brutal de serviços, ideias quantitativas elementares como a necessidade de mais Centros-Dia, ou de mais ILPI, sem poder dizer quantas mais, onde mais e quais pois a política é ininteligível e desorganiza a demanda.
Se o horizonte territorial e populacional existisse, a Rede, limitada por insuficiências orçamentárias indiscutíveis, poderia, como ocorre no SUS definir estratégias e horizontes prioritários e os movimentos sociais poderiam também reivindicar com mais clareza os quantitativos que a própria política reconhecesse como necessários para cobrir os territórios.
Com o envelhecimento populacional acelerado vivido pelo Brasil, muitos podem estar imaginando que esse cenário, que faz a política pública parecer caridade ou esmola, decorre somente da falta de recursos orçamentários, que seriam insuficientes para alcançar a cobertura universal do Cuidado Integral.
Isso, entretanto, não é verdade pois enxergar com clareza a necessidade não obrigaria o Poder Público a investir mais do que pode ou a investir agora e desde já. Enxergar com clareza as necessidades agregaria à gestão do sistema apenas a possibilidade de planejar no curto, médio e longo prazos e de conhecer o alcance e limites da cobertura existente.
A Rede SUS, por exemplo, em diversas áreas, é cronicamente insuficiente, mas gestores, profissionais e população sabem e muito bem o que seria necessário para completá-la do ponto de vista dos quantitativos de dispositivos a instalar e dos territórios a atender, o que produz consenso para que o problema possa vir a ser resolvido.
Acrescente-se a isso o fato de que não houve repasses para o pagamento da suplementação do piso da enfermagem trabalhando na rede SUAS às instituições filantrópicas e sem fins lucrativos que atuam como podem nessa rede de cuidados onde o Poder Público é comumente omisso…
Paralelamente à insuficiência da oferta pública, floresce um heterogêneo e crescente mercado privado de cuidados, que abrange desde Instituições de Longa Permanência de alto padrão até a contratação de cuidadores domiciliares com diferentes níveis de formalização.
Este setor, no entanto, opera frequentemente em uma zona de baixa regulação e fiscalização, o que pode expor os idosos a riscos de negligência e má qualidade dos serviços. Além disso, o alto custo desses serviços privados os torna inacessíveis para a grande maioria da população, aprofundando as desigualdades sociais e criando um sistema de cuidado dual, onde a qualidade da atenção na velhice torna-se um privilégio de quem pode pagar, e não um direito universal.
Estamos, portanto, com uma legislação moderna, e é, agregada a uma prática de cuidados que poderia ser assimilada à das Santas Casas de Misericórdia no século XVIII o que realimenta a exclusão social.
O que fazer?
A Conferência Nacional está desafiada a propor a universalidade do acesso ao Cuidado Integral à Pessoa Idosa e a exigir do governo o dimensionamento populacional e territorial das necessidades dos equipamentos e políticas que já fazem parte da Rede de Cuidados, como os Centros-Dia, os Cuidados Domiciliares, as ILPI, para que possam efetivamente alcançar os que delas mais precisam.
É preciso que todo o Brasil saiba qual é o critério populacional para a implantação de um Centro-Dia, ou de uma ILPI. Vinte mil habitantes, trinta mil habitantes, cem mil? Quem os financia? A União sozinha? Estados e municípios? Qual a contrapartida de cada ente no contexto da construção de uma política nacional que pretenda ser universal?
A Conferência, portanto, deve exigir:
- Universalidade do acesso da pessoa idosa ao Cuidado Integral
- Dimensionamento populacional das necessidades e
- Territorialização
Sem isso não passaremos do século XVIII.
Ion de Andrade é médico epidemiologista e professor e pesquisador da Escolas de Saúde Pública do RN, é membro da coordenação nacional do Br Cidades e da executiva nacional da Associação Brasileira de Médicas e Médicos pela democracia
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