O falecimento recente do Papa Francisco produziu inúmeros comentários nos canais de esquerda. Entre eles, o óbvio: os analistas não se contiveram e, logo após a morte do pontífice, começaram a falar de Conclave (2024), produção americana dirigida por Edward Berger e estrelada por Ralph Fiennes, provando que o debate, sempre que possível, é tão raso quanto um pires.

O filme foi nomeado a oito Oscars em 2025, vencendo na categoria de melhor roteiro adaptado. Também recebeu prêmios no BAFTA (inglês) e no Globo de Ouro. Esse reconhecimento apenas comprova o quanto esses prêmios são completamente enviesados em nome da propaganda burguesa dominante. Vence quem mais está adaptado ao sistema como ele é. De concreto, o fato é que a película não vale nada. É uma propaganda identitária que tem, como pano de fundo, a Igreja Católica. 

O motivo para que o filme seja citado pelos jornalistas progressistas está em seu enredo: após a morte do papa, o colégio de cardeais se reúne para eleger seu sucessor. O Cardeal Thomas Lawrence (Ralph Fiennes), decano do colégio, lidera o processo. Entre os principais candidatos estão os cardeais Aldo Bellini (Stanley Tucci), Joshua Adeyemi (Lucian Msamati), Joseph Tremblay (John Lithgow) e Goffredo Tedesco (Sergio Castellitto). Cada um representa uma figura ora mais progressista ou mais conservadora, conceitos superficiais apresentados para satisfazer o senso comum da pequena burguesia a quem esse filme se destina.

No meio das especulações, surge então a figura de um misterioso arcebispo chamado Vincent Benitez, chegado direto do Afeganistão, revelando ter sido nomeado cardeal pelo papa falecido. É interessante notar que o país da Eurásia é citado no filme apenas como uma palavra: Afeganistão e nada mais. Nenhum contexto, o que ele fazia lá, quando esteve lá, por que saiu, nada. Devemos, como audiência, inferir que se trata de uma palavra carregada de significado e que mostra imediatamente a capacidade de sacrifício e generosidade do misterioso arcebispo. “Ele veio do Afeganistão”. Imediatamente, devemos assumir, baseados em horas e horas de telejornalismo de massa duvidoso e tendencioso, que ele é extremamente corajoso. Ao longo de todo o filme, truques como esse são revelados e usados para compor o personagem.

O principal adversário de Benitez é o Cardeal Tedesco, um conservador inflexível, frio, defensor da repressão. Ele é o vilão ideal para um roteiro previsível: duro o suficiente para assustar, mas caricato o bastante para não ser levado a sério. Tedesco serve como contraste dramático. Ele permite que qualquer gesto de Benitez pareça revolucionário. Mas, na prática, ambos operam dentro do mesmo sistema.

Ao final, depois de muito suspense e disputas de poder desnecessárias, Benitez é eventualmente eleito e adota o nome “Inocêncio”. Então, mais uma reviravolta: o arcebispo, agora papa, revela que é do sexo feminino (biológico) para o Cardeal Thomas, o que desafia as tradições da Igreja e simboliza que, agora, sim, o catolicismo entrou definitivamente para o Partido Democrata americano e o Vaticano na pós-modernidade neoliberal, ideologia dos criadores desse filme que é mais um a revelar a decadência da cinematografia norte-americana.

Com a morte do Papa Francisco, o filme passou a ser tratado como uma espécie de espelho da realidade: o retrato sensível de um Vaticano em transição, dividido entre tradição e modernidade. Os jornalistas da imprensa progressista juram com a mão direita em cima de uma Bíblia que esse é o objetivo do filme. Mas será que é isso mesmo?

Sob a superfície solene e reflexiva de Conclave se esconde um filme conservador em sua forma e profundamente reacionário em seu conteúdo. Ele não rompe com nada. Ao contrário, reafirma as estruturas de poder da Igreja sob o disfarce de inclusão simbólica que satisfaz a sede de representação que só existe nas cabeças intelectualmente vazias do progressismo contemporâneo. A união entre Igreja Católica e padre identitário provoca quase um êxtase místico nessa gente. Dessa forma, o filme torna-se um produto perfeito da indústria cultural que vende muitos ingressos com sua pretensa aura de seriedade.

Ao mesmo tempo, reafirma a sandice identitária como a única possibilidade de ativismo político, quando está mais do que provado que ela é um produto de propaganda costurado nos laboratórios de agências de inteligência poderosas e entregue a ONGs que pagam muito bem para quem quiser vendê-la. O identitarismo é apenas o filho pródigo do sionismo.

A forma do filme também ajuda a entender a armadilha ideológica burguesa, a propaganda, que somos obrigados a consumir. Conclave se estrutura como um suspense político no estilo “drama de bastidores”: cardeais divididos que se enfrentam em votações sucessivas até que a figura inesperada de Vincent Benitez ultrapassa todos porque assim a audiência, totalmente manipulada em sua capacidade analítica, deseja como final feliz. É uma receita de bolo.

A encenação tenta sugerir complexidade, introspecção e dilemas morais profundos. Por trás da superfície elegante, está um filme vazio, que simula conflito onde não há nenhum. O identitarismo é a única tábua de salvação de um enredo frágil. E isso é o suficiente para jogar esse filme na lata de lixo da história do cinema.

A figura de Benítez é construída para emocionar. Ele aparece como o forasteiro gentil, o rosto da tolerância, o pastor que viveu entre os pobres. Seu discurso do “amor venceu o ódio” é decisivo após um atentado, que surge do nada, em Roma, só para nos lembrar dos malvados terroristas que andam soltos pelo mundo e que eles são árabes, da Palestina a Cabul.

As causas concretas das guerras, o sofrimento real dos povos, os interesses das classes dominantes, a conivência da santa madre igreja, o parasitismo colonial e assassino ao qual Afeganistão foi submetido durante duas décadas, a perseguição a adversários políticos, a guerra diária contra à liberdade de expressão, a miséria resultante da política econômica neoliberal enfiada goela abaixo de bilhões de seres humanos dia e noite no mundo todo: nada disso existe nesse filme. O humanismo de Benítez é uma performance que cai nas graças dos “democratas” que defendem “causas” em algum edifício da Faria Lima.

O progressismo superficial e o conforto da ilusão

Com a morte do Papa Francisco, muitos progressistas buscam em Conclave um símbolo de continuidade esperançosa. Um papa nascido biologicamente mulher, pacifista e globalizado? Isso, sim, seria um futuro disruptivo. Só que é justamente aí que mora o perigo. Essa recepção mostra o quanto parte da esquerda abandonou a crítica real às estruturas em troca de sinais de empatia. A diversidade virou sinônimo de justiça. E a representação simbólica passou a valer mais do que a transformação concreta. Mais do que a luta de classes.

Conclave funciona como catarse. Ele limpa a consciência do espectador pequeno-burguês, oferecendo um produto que parece ousado, mas é perfeitamente inofensivo. Um filme para manter tudo no lugar. Dessa forma, não é uma crítica à Igreja, mas sua instrumentalização em prol de uma ideologia decadente. Seu objetivo é convencer o público de que a mudança pode vir de dentro das instituições, que basta incluir os diferentes, que a paz virá pelo diálogo suave e pela diplomacia. Linda Thomas-Greenfield, a embaixadora americana de Joe Biden na ONU, é a perfeita tradução dessa hipocrisia.

Nesse tipo de enredo não existe luta de classes. Talvez esse seja, de fato, o único regozijo dos progressistas contemporâneos.

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Last Update: 02/05/2025