Mariana Schreiber, BBC
Um vazamento de conversas privadas entre assessores do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) e ex-presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) Alexandre de Moraes levantou questionamentos sobre a legalidade e a imparcialidade de sua atuação em inquéritos criminais envolvendo políticos e aliados do campo bolsonarista.
As mensagens mostram que o ministro teria determinado a produção de relatórios pelo TSE contra os investigados, fora dos ritos processuais, e orientado o conteúdo dos mesmos.
Após as reportagens, Moraes disse, por meio de nota, que a solicitação de informações a outros órgãos, inclusive o TSE, é normal, e que a Corte eleitoral tem “poder de polícia” e “competência para a realização de relatórios sobre atividades ilícitas”.
O caso, revelado pelo jornal Folha de S.Paulo na terça-feira (14), provocou comparações com o episódio da Vaza Jato, em que a divulgação de mensagens privadas trocadas entre o então juiz Sergio Moro e o então procurador e chefe da força tarefa da operação Lava Jato Deltan Dallagnol mostrou uma suposta comunicação ilegal entre magistrado e Ministério Público.
Essas conversas, reveladas pelo portal The Intercept Brasil em 2019, contribuíram para minar a legitimidade da Lava Jato e anular processos da operação, inclusive as condenações contra o hoje presidente Luiz Inácio Lula da Silva, após o STF considerar Moro parcial para julgá-lo.
Teria o novo vazamento o potencial de criar reviravolta semelhante nos rumorosos inquéritos que tramitam, ao menos desde 2019, no gabinete de Moraes?
Acadêmicos do direito ouvidos pela BBC têm diferentes visões sobre as condutas reveladas até o momento – e as possíveis consequências desses atos.
Enquanto alguns não veem ilegalidades na atuação de Moraes e pontuam que as mensagens não revelam conluio com o Ministério Público, como na Vaza Jato, outros avaliam que ambos os juízes agiram fora dos limites legais e pareciam atuar de forma parcial, buscando um resultado previamente definido. Entenda melhor essas visões ao longo da reportagem.
O que mostram as mensagens sobre Moraes?
Segundo o jornal Folha de S.Paulo, mensagens de WhatsApp entre assessores de Moraes em seu gabinete no STF e em um órgão do TSE, na época presidido por ele, indicam que o ministro solicitou informalmente relatórios sobre investigados nos inquéritos das fake news e das milícias digitais.
A maior parte das mensagens foi trocada por Airton Vieira, juiz instrutor dos inquéritos no STF, e Eduardo Tagliaferro, então chefe da Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação do TSE (AEED). Tagliaferro foi exonerado em maio de 2023 após ser preso e acusado por violência doméstica contra a esposa.
As conversas teriam ocorrido entre agosto de 2022 e maio de 2023 — ou seja, durante e depois da campanha eleitoral que levou à vitória de Lula e à derrota do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
O jornal diz ter em mãos 6 gigabytes de mensagens e arquivos trocados por meio do WhatsApp e garante que não obteve o material por meio de hackers ou interceptação ilegal.
Algumas mensagens reveladas mostram, por exemplo, que Moraes e assessores pediram a produção de um relatório sobre o economista Rodrigo Constantino, apoiador de Bolsonaro, a partir de publicações dele nas redes sociais.
Em novembro de 2022, Airton Vieira encaminhou para Eduardo Tagliaferro uma captura de tela de conversa com Moraes na qual o ministro pediria: “Peça para o Eduardo analisar as mensagens desse [Constantino] para vermos se dá para bloquear e prever multa”.
Vieira pede para Tagliaferro “caprichar” no relatório.
Segundo o jornal, em nenhum dos casos havia a formalização de que os relatórios do TSE teriam sido produzidos a pedido de Moraes ou do STF.
No caso de Constantino, uma decisão do início de janeiro de 2023 ordenou a quebra de sigilo bancário do investigado, bem como o cancelamento de seus passaportes, bloqueio de suas redes sociais e intimações para que fosse ouvido pela Polícia Federal.
Essa decisão mencionava “ofício encaminhado pela Assessoria Especial de Desinformação Núcleo de Inteligência do Tribunal Superior Eleitoral”, sem esclarecer que o pedido partira do gabinete do ministro no STF.
Comunicação entre TSE e STF seria ilegal?
Os especialistas ouvidos pela BBC pontuam uma diferença clara entre a Vaza Jato e o vazamento envolvendo Moraes. No primeiro caso, foi revelada uma suposta relação ilegal entre juiz e Ministério Público, órgãos que devem atuar de forma independente, segundo as leis brasileiras.
As conversas sugeriam que Moro dava orientações à força-tarefa da Lava Jato, buscando produzir provas contra os investigados que ele depois julgaria — algo que ambos sempre negaram.
Já no caso de Moraes a comunicação ocorreu entre órgãos de duas Cortes judiciais. Os especialistas, porém, divergem sobre se essa conduta também seria ilegal.
Para Fernando Neisser, professor da FGV e membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep), não há qualquer ilegalidade na atuação de Moraes porque ele teria solicitado a produção de relatórios a partir de conteúdos públicos, divulgados nas redes sociais.
Para João Pedro Pádua, professor de Direito Processual Penal da Universidade Federal Fluminense (UFF), a atuação revelada nas conversas seria ilegal por ter ocorrido informalmente, fora do rito processual, e também devido ao conteúdo dos pedidos.
Para Horácio Neiva, professor do Instituto de Ensino Superior (iCEV), o uso do poder de polícia do TSE gera questionamento e a concentração controversa de muitas investigações na vara de Moraes é um dos fatores que gerou desgaste à Lava Jato.
Para Neiva, é preciso que o Supremo remeta para a primeira instância as investigações contra pessoas sem foro por prerrogativa de função. E, nos demais casos, a PGR deveria concluir os inquéritos e decidir os que devem gerar denúncias criminais e os que devem ser arquivados.
O que não pode acontecer é que esses inquéritos sejam mantidos, com objeto de investigação tão amplo, indefinidamente.