
Comparação entre o processo penal da ditadura militar e o processo penal referente aos terroristas do 8 de janeiro.
por Carlos Frederico Alverga
Tem sido assunto frequente e recorrente na mídia brasileira a veiculação de opiniões de que os terroristas do 8 de janeiro têm sido submetidos a um processo penal de exceção e que seus direitos humanos têm sido violados pela Suprema Corte. Com o propósito de demonstrar cabalmente o absurdo e o disparate dessa percepção, é interessante fazer um cotejamento comparativo entre o verdadeiro processo penal de exceção que vigorava durante a ditadura militar tão exaltada pelos aludidos terroristas, e o processo penal balizado pelos ditames da Constituição de 88 ao qual estão sendo submetidos os citados golpistas.
Na ditadura militar de 1964 a 1985, principalmente no período de vigência do Ato Institucional número 5 (AI5), de 13/12/1968, vigorou no Brasil o verdadeiro direito penal do inimigo. A tortura era institucionalizada, não havia habeas corpus para acusados de crimes contra a segurança nacional, as pessoas eram detidas, mesmo as que não eram participantes da luta armada das organizações da extrema esquerda da época, e torturadas e assassinadas como se fossem, a Justiça Militar julgava os civis que fossem acusados por crimes contra a segurança nacional, o acesso dos advogados aos acusados era praticamente impossível, era inexistente o direito à ampla defesa e ao contraditório, as sentenças eram exaradas com base em depoimentos e confissões obtidos sob tortura. Muitos dos detidos nessa época, quer tivessem vínculo efetivo com a luta armada ou não, foram assassinados ou desaparecidos em virtude dos suplícios a que foram submetidos nas masmorras dos cárceres da OBAN, do DOI-CODI e dos serviços secretos das três armas.
Outra característica desses processos é que os réus eram processados e condenados com base nos antes mencionados depoimentos e confissões obtidos sob tortura ainda na fase do inquérito policial, procedimento de caráter inquisitorial, no âmbito do qual não há direito de defesa nem contraditório, antes mesmo de se tornarem réus nas ações penais. Da mesma forma, as denúncias elaboradas pelo Ministério Público na época eram embasadas nos mesmos depoimentos e confissões obtidos sob tortura.
O AI 5 foi um instrumento tão autoritário e ilegítimo que determinava que atos do Presidente da República (PR) não poderiam ser objeto de apreciação judicial, o PR também tinha o poder de confiscar bens, demitir sumariamente servidores públicos, isto é, demitir sem dar o direito de defesa, cassar os direitos políticos de cidadãos por 10 anos, poder para intervir nos Estados e Municípios de forma discricionária, violando o pacto federativo e a autonomia política dos entes subnacionais, alegando ameaça à segurança nacional, entre outras barbaridades. Ou seja, era um regime cuja institucionalidade era totalmente antidemocrática, autocrática, no qual a separação de poderes, a federação, os direitos e garantias individuais eram letra morta, e o governo militar ilegítimo da época praticava o terrorismo de Estado.
Já os terroristas do 8 de janeiro estão sendo julgados por um processo penal democrático fundamentado nas garantias processuais penais estabelecidas pela Constituição Federal de 1988, que foi promulgada por uma assembleia Nacional Constituinte eleita diretamente pelo povo, ao contrário do AI5, imposto e outorgado à sociedade brasileira de forma totalmente autoritária e ilegítima pelo Conselho de Segurança Nacional naquele famigerado 13/12/1968.
Aos acusados de tentar instituir novamente o regime do AI5 no Brasil em 08/01/2023, estão sendo assegurados a esses réus as garantias processuais penais constitucionais do promotor natural, do juiz natural, da ampla defesa, do contraditório, do devido processo legal entre outras. Inclusive merece destaque a transparência da realização do julgamento, em que pode se constatar que os advogados dos réus tiveram todas as condições de realizar seu trabalho exercendo a ampla defesa dos seus clientes.
O resultado do trabalho meticuloso de investigação da Polícia Federal, que demorou 2 anos e meio para ser concluído, serviu de subsídio para a formulação da denúncia minuciosa e judiciosa elaborada pelo Procurador Geral da República (PGR), a qual individualizou apropriadamente a conduta de cada acusado, tendo sido aceita pela 1ª turma do Supremo Tribunal Federal (STF), foro apropriado para a realização do processo e julgamento da causa.
A respeito da competência de o STF julgar as causas do 8 de janeiro houve também certa controvérsia. Entretanto, efetivamente a competência é do Supremo, tendo em vista que o artigo 43 do seu Regimento Interno (RISTF) atribui ao Presidente do Tribunal, quando a infração à lei penal ocorrer na sede ou dependência do Tribunal, a competência de instaurar inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição.
Neste último caso, a causa jurídica em questão, além de ter se constituído na destruição das dependências do Supremo Tribunal, abrange também deputados federais, como é o caso do Sr. Ramagem, e outros membros do Congresso implicados nos atos de 8 de janeiro. Devido a isso, e considerando os princípios da conexão e continência previstos nos artigos 76 e 77 do Código de Processo Penal, os réus pessoas comuns foram atraídos para serem julgados pelo STF juntamente com os parlamentares citados cujo julgamento nas infrações penais comuns é competência constitucional originária do Pretório Excelso, evitando a dispersão do processo por instâncias judiciais diferentes.
Cabe também lembrar, como bem registra Patrick Luiz Martins Freitas Silva no artigo “A competência do STF para julgar atos do 8 de janeiro alcança cidadãos comuns?”, publicado no Conjur em 17 de setembro de 2023, que a “a Súmula 704 da corte buscou pacificar a questão, afirmando que não viola as garantias do juiz natural, da ampla defesa e do devido processo legal a atração por continência ou conexão do processo do corréu ao foro por prerrogativa de função de um dos denunciados. (…) — Inq 2.688, relatora ministra Cármen Lúcia, red.p/ o ac. ministro Gilmar Mendes, 2ª T, j. 2-12-2014, DJE 29 de 12-2-2015.”
Além disso, o RISTF atribui ao seu Presidente a autoridade para escolher o relator do inquérito. A propósito, o STF, como guardião da Constituição, e instância máxima do controle de constitucionalidade brasileiro, declarou constitucional o referido artigo 43 do RISTF no âmbito da ADPF 572.
Lembrando, como complemento, que o STF decidiu em março de 2025, por 7×4 no Plenário Físico, que as autoridades mantêm a prerrogativa de foro mesmo após deixarem os altos cargos públicos que ocupavam. Outro detalhe é que no final de 2023 houve modificação no Regimento Interno do Pretório Excelso no sentido de que as ações penais voltariam a ser competência das turmas. Logo, o que fica caracterizada é a total, completa, absoluta, integral idoneidade e licitude de todo o processo de julgamento dos terroristas/golpistas do 8 de janeiro pela Corte Suprema brasileira.
Inclusive o tratamento concedido pelo relator do caso, o Ministro Moraes, ao principal réu, o ex-Presidente entre 2019 e 2022, foi extremamente condescendente e benevolente, tendo em vista que o ex mandatário não foi preso preventivamente em algumas ocasiões em que tal decretação da prisão cautelar teria sido pertinente. Entre essas ocasiões, destaca-se quando, em pleno Carnaval de 2024, o ex-Presidente se refugiou na embaixada da Hungria, caracterizando uma situação em que, acintosamente, estava procurando se evadir para evitar as consequências da aplicação da lei penal, o que constitui motivo idôneo para a decretação da prisão cautelar.
Outra ocasião foi quando o réu confessou abertamente em entrevista que estava financiando as atividades ilegais de seu filho deputado nos Estados Unidos, atividades essas que constituíam ações de coação no curso do processo e de obstrução à justiça, ambas as ações ensejadoras de decretação da prisão preventiva respectiva pela autoridade judicial competente àquele que estava financiando tais atividades ilegais.
Além das justas causas para a decretação da prisão cautelar do referido réu relatadas precedentemente, há também a necessidade de proteger a ordem econômica do país quando esta for objeto de sabotagem por parte do réu (outra hipótese legal para justificar a determinação da prisão preventiva), ordem econômica essa atingida pelo estabelecimento pelo Governo americano de tarifas elevadíssimas sobre os produtos brasileiros exportados para os Estados Unidos como represália, retaliação pelo julgamento justo a que está sendo submetido aquele que quase instituiu uma nova ditadura fascista no Brasil.
Para esse fato contribuiu decisivamente a ação do deputado federal filho do réu, para a qual o referido réu declarou expressamente que está financiando essa ação do filho nos Estados Unidos visando promover a sabotagem ao Brasil. No entanto, a prisão cautelar deste réu só foi decretada recentemente, devido ao fato de que transgrediu as cautelares que haviam sido a ele determinadas pelo relator do processo, ao participar remotamente de comício cujo motivo de realização era, exatamente, pedir a anistia para aqueles que desejaram implantar no Brasil novamente a maldita ditadura militar fascista da extrema direita das Forças Armadas que, desgraçadamente, durou a eternidade de 21 anos no Brasil.
Lembrando que todo o processo golpista teve início de forma mais intensa desde que a vitória do Presidente Lula em 30/10/2022 foi confirmada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), com os acampamentos nas portas dos quartéis pedindo a volta da ditadura militar e da tortura e o desrespeito à decisão popular expressa na eleição, o bloqueio das estradas pelo agronegócio simpatizante da extrema direita fascista, os atos terroristas executados em Brasília no dia da diplomação do Presidente Lula em 12/12/2022, com a invasão e depredação do prédio da Polícia Federal na Asa Norte, a tentativa de atentado a bomba no Aeroporto de Brasília na véspera do Natal de 2022, culminando com a tentativa frustrada de golpe de 8 de janeiro. Isto sem falar na utilização criminosa da Polícia Rodoviária Federal para impedir que os eleitores do Nordeste votassem no 2º turno, e a compra de votos despudorada com dinheiro público que ocorreu nos últimos 10 dias de outubro de 2022, com a utilização também criminosa da máquina administrativa almejando a reeleição do então incumbente.
Agora abordando a questão da dosimetria das penas infligidas aos réus, o que ocorre é que as elevadas penas cominadas àqueles que promoveram a tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, de realização de golpe de Estado e os outros graves delitos de que são acusados os réus, são de responsabilidade não dos julgadores que aplicam a lei, mas sim do Legislativo que instituiu essas penas, aprovando a Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito, bem como do próprio ex Presidente da República que sancionou a lei.
As penas são longas porque os crimes cometidos são muito graves, penas com duração alta mesmo se considerando as penas mínimas para os delitos de que se trata. Como os crimes foram cometidos em concurso de pessoas/autores, as penas vão se somando/acumulando resultando numa pena total bastante alta, tendo visto que são 5 os crimes de que os réus estão sendo acusados (Abolição violenta do Estado Democrático de Direito; Golpe de Estado; Dano qualificado; Deterioração de patrimônio tombado; Associação criminosa).
O que alguns advogados de defesa estão argumentando, de forma apropriada a meu juízo, é que o STF poderia promover a absorção de um crime menos grave por outro mais grave, sendo que a gravidade do crime seria mensurada pela severidade da pena atribuída a cada um dos delitos. Esse conceito jurídico penal da absorção ocorreria quando a prática de um crime menos grave fosse meio necessário ou fase de preparação para a execução de outro crime mais grave, tendo em vista serem esses tipos penais semelhantes. Por exemplo, seria a situação dos crimes de Abolição violenta do Estado Democrático de Direito e de Golpe de Estado. Como o primeiro está de certa forma contido no segundo, em vez de sancionar o réu pelos dois delitos, puni-lo apenas pelo mais grave, seria razoável, o que acarretaria um apenamento de menor duração. Isso, penso eu, seria admissível.
Não obstante, o Ministério Público ofereceu a centenas de envolvidos o acordo de não persecução penal, naqueles casos em que a pena determinada foi de até 4 anos de prisão, pelo qual os réus do 8 de janeiro, caso aceitassem frequentar um curso sobre democracia, não usassem redes sociais por 2 anos, e os que tivessem recursos, pagassem uma multa de R$ 5 mil, ficariam livres da condenação criminal. Cerca de metade aceitou cumprir esse acordo, a outra metade optou por continuar encarcerada. Ou seja, ficaram presos porque quiseram. Na época da ditadura militar, principalmente depois da decretação do AI 5, não eram oferecidos acordos como esses aos acusados que, ao contrário de agora, eram assassinados e trucidados nos porões da ditadura militar tão exaltada pelos fascistas.
O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Luís Roberto Barroso, afirmou que um acordo foi oferecido a dois terços dos golpistas de 8 de janeiro para que não precisassem cumprir a pena na prisão. Segundo o ministro, entretanto, mais da metade recusou ou não respondeu à proposta oferecida pela Procuradoria-Geral da República (PGR).
A conclusão a que se chega é que os atuais terroristas tiveram um julgamento bem mais justo e civilizado sob as regras da Constituição cidadã de 1988 do que os “terroristas” do passado tiveram quando o que vigorava era o Estado de exceção do AI5. A eles não eram oferecidos acordos de não persecução penal, e sim era oferecida a possibilidade de morrer depois de muita tortura, ou no pau de arara ou na cadeira do dragão. Enquanto isso, aos golpistas de 8 de janeiro foi assegurada a rigorosa observância do mandamento constitucional contido no artigo 5º, inciso III, que reza que “ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante”.
Carlos Frederico Alverga – Economista graduado na UFRJ, especialista em administração pública pelo Cipad/FGV e em Direito do Trabalho e Crise Econômica pela Universidade de Castilla La Mancha (Espanha) e mestre em Ciência Política pela UnB.
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