A escolha do substituto do papa Francisco – morto nesta segunda-feira 21, aos 88 anos, no Vaticano, em decorrência de uma pneumonia bilateral – terá peso importante no rumo dos conflitos armados em andamento e nos que podem emergir ao longo dos próximos 20 anos. Além disso, deve influenciar o debate sobre transição energética e mudanças climáticas; migrações e racismo, e diálogo inter-religioso e multilateralismo, contribuindo para o acirramento ou a distensão das crises que estão na origem de muitos dos conflitos que vão moldar o futuro da humanidade.
O pontificado que se encerra agora teve como marca a tolerância. A palavra não é boa, pois quem tolera apenas aceita, sem, com isso, comprometer-se de fato. O papa que se despede se mostrou tolerante em relação ao divórcio e a questões de gênero, por exemplo, sem, no entanto, alterar a fundo a doutrina da Igreja Católica Romana. Pregou contra o antissemitismo e defendeu os imigrantes. Falou, obviamente, contra as guerras e a pobreza, sem condenar com a mesma ênfase as causas de ambos os fenômenos.
Qualquer expectativa de que Francisco pudesse ter ido muito além disso é delirante. Um papa pode até ser reformista, mas dificilmente será revolucionário. Ele empurrou as linhas desse reformismo até o limite do possível, de um ponto de vista pragmático e realista. Fez o que podia ser feito.
Se bem é certo que nada disso muda, por si só, o rumo de guerras, massacres, genocídios e outras graves crises políticas e humanitárias, não se pode ignorar também o quanto disso contribui para a formação do discurso e da postura moral que revestem as posições políticas – mais ou menos tolerantes – em voga no mundo. Do Vaticano, emanam sinais sobre o tolerável e o intolerável ao longo dos séculos.
No passado, o genocídio protagonizado pelo cristianismo no Novo Mundo, contra indígenas americanos e negros escravizados na África, teve benção papal. Toda expansão ultramarina da Espanha e de Portugal entre os séculos XV e XVI foi feita às custas de guerras tidas como justas pelo Vaticano, e conduzidas por combatentes europeus e cristãos que levavam sob o braço a bula papal Dum Diversas, lavrada pelo papa Nicolau V.
Mais recentemente, já nos anos 1970 e 1980, o papa João Paulo II atuou de modo inverso, exercendo papel crucial para desescalar uma crise militar entre as ditaduras do Chile e da Argentina que, a partir de 1978, se aproximaram perigosamente de um conflito armado causado por divergências entre demarcações fronteiriças no extremo sul do continente. Foi João Paulo II quem deu a benção ao laudo arbitral que dirimiu a questão.
Hoje, a escolha de um papa reacionário e conservador reforçaria as posições de uma extrema-direita cuja principal característica tem sido a de estabelecer círculos cada vez menores e mais restritos de dignidade; como se dissessem: “só são dignos os adeptos da minha fé, os que têm a minha nacionalidade, os que possuem a cor da minha pele e compartilham de minhas origens e visões políticas.” Não é outro o ânimo que move Vladimir Putin a buscar na Ucrânia porções de território e de população que remontam à ideia soviética mais abrangente sobre a região, da mesma forma que Donald Trump expurga aqueles que não se assemelham ao que ele idealiza como os habitantes originários de uma América idealizada, ligada a um passado que nunca existiu.
Essa espécie de “aldeismo político” da extrema-direita não é nada estranho à doutrina da igreja católica que pariu a Dum Diversas. Mas, como mostraram João Paulo e Francisco, há espaço para reformas.
Dois dos maiores teólogos da Igreja Católica, Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, determinaram há muitos séculos o que é uma guerra justa aos olhos de Deus. Só parece contraditório que a Igreja do Deus do amor se dedique a versar sobre a guerra para aqueles que não leram Deuteronômio. Ali há muito de um Deus criminoso de guerra, inclusive.
Aquino e Agostinho falam numa guerra justa aos olhos de Deus quando movida por uma ideia do bem contra o mal. O que se espera do chefe da Igreja é a indicação do que venha a ser o bem em cada era – ainda que esse bem possa incluir a escravização e o genocídio indígena. A moral é relativa, por definição. Se o próximo papa continuar a moralizar a discriminação contra as mulheres na Igreja, então o espaço para a igualdade de gênero estará em perigo.
Da mesma forma, se enaltecer ideias puristas e pouco tolerantes, então o aldeísmo triunfará na forma de governos nacionalistas e identitaristas, que não hesitarão em construir alianças transnacionais entre si, movendo guerras como as que estamos vendo.
A próxima fronteira dos grandes conflitos pode ser a Ásia, provável palco entre um projetado choque entre China e EUA. O papado só desbravou essa fronteira em 1924, com o Concílio de Xangai. Foi uma entrada tímida. A partir de 1949, com a Revolução Chinesa, tornou-se difícil promover uma Igreja intrinsecamente onipotente, mas que não rivalizasse com o nacionalismo. No centenário do Concílio, o papado encontrou uma saída, ao dizer que “o amor pela própria nação é legítimo e deve ser protegido”.
Quando quer, a Igreja encontra formas. Como a moral é relativa, os papados basculam na busca por essas formas. Agostinho e Aquino versaram sobre o bem e o mal na guerra, como se o bem e mal não mudassem de lado e de direção através dos séculos, e como se a guerra já não fosse o mal em si. Caberá agora ao novo papa dar o tom do que é tolerável ou não aos olhos da Igreja. O novo papa não muda sozinho os rumos do mundo, mas reveste de novas moralidades os rumos que as guerras tomam.