Transtornos como depressão, ansiedade, burnout e crises existenciais têm sido descritos por estudiosos não apenas como doenças do indivíduo, mas como sintomas de um mal coletivo. Para a psicóloga clínica e musicoterapeuta Susana Bustos, professora do Centro de Ciência Psicodélica da Universidade da Califórnia em Berkeley (EUA), essas chamadas “doenças da modernidade” estão enraizadas em um modelo de vida marcado pela separação entre o eu e o mundo, pela objetificação da natureza e pelo empobrecimento das relações humanas e espirituais.
Nesse contexto, o vegetalismo surge, segundo ela, como um possível caminho de reconexão. Trata-se de um sistema de medicina tradicional amazônica que combina o uso ritual de plantas consideradas professoras, capazes de transmitir conhecimento, com retiros de isolamento na selva e por meio de cantos curativos conhecidos como ícaros.
Para Susana, essa vivência pode despertar uma nova dimensão relacional com o mundo, que passa a ser percebido como um outro subjetivo: uma multiplicidade de seres inteligentes, com agência, capazes de se comunicar e criar intimidade. “A experiência com essas ‘plantas mestras’ desafia o paradigma dominante de isolamento do indivíduo, sem negar sua singularidade, mas reposicionando-o em uma rede viva de interdependência.”
Mais que o alívio de sintomas, esse encontro com um mundo animado e sagrado possibilita, segundo Susana, o acesso a um novo sentido vital. “Certos graus de mudança de paradigma são necessários para aliviar as doenças modernas, e as práticas do vegetalismo, ao facilitar a experiência direta com um mundo vivo, oferecem e enquadram essa possibilidade.”
Referência internacional no campo do vegetalismo, Susana Bustos investiga há décadas as conexões entre os saberes tradicionais e o universo terapêutico ocidental, com foco especial no potencial de cura dos estados ampliados de consciência.
No Brasil, atua como supervisora da equipe multidisciplinar de apoio do Lar e Integração do Ser, o LIS, centro pioneiro de vegetalismo sediado no Rio de Janeiro. Também conduz grupos de estudo e aprofundamento na floresta amazônica, além de ministrar oficinas e conferências em diversos países.
O impacto da lógica de mercado
Mas nem tudo se resume à reconexão e à transcendência. A crescente busca por experiências de cura com plantas amazônicas, impulsionada pelo renascimento psicodélico global, tem transformado não apenas os novos psiconautas urbanos, mas também os próprios contextos tradicionais que preservam esse conhecimento. Para Susana Bustos, é fundamental reconhecer como a lógica de mercado e a globalização influenciaram — e continuam impactando — as comunidades que mantêm vivas as práticas do vegetalismo.
“O nosso interesse em experimentar o vegetalismo em seu lugar de origem, seja pela suposta exoticidade ou pelo seu potencial curativo e espiritual, impacta diretamente os valores culturais, as dinâmicas sociais e as relações de poder dessas comunidades”, afirma. Isso vale tanto para os estrangeiros que viajam à floresta em busca de rituais quanto para os vegetalistas locais que levam seus saberes a outros países ou iniciam pessoas de fora nas artes de cura amazônicas.

Susana Bustos, professora do Centro de Ciência Psicodélica da Universidade da Califórnia em Berkeley (EUA). Foto: Arquivo Pessoal
Susana lembra que o vegetalismo, como sistema de conhecimento, já nasce de um contexto de transformação forjado pelas pressões colonizadoras e extrativistas de mentalidades externas. “E segue mudando com essa influência. Mas o interessante é que nós também estamos sendo transformados por essas práticas.”
Como exemplo, ela cita uma lembrança marcante de Pucallpa, cidade no Peru considerada um polo importante do vegetalismo. “Anos atrás, um artista local me mostrou uma reportagem com dados de uma pesquisa divulgada por um órgão nacional de turismo do Peru. Em apenas cinco anos, o número de curandeiros da região saltou de 50 para 500.” Para Susana, esse tipo de dado revela o quanto ainda há para ser explorado sobre os efeitos culturais, simbólicos e econômicos dessa expansão.
Diante da expansão global das práticas com plantas amazônicas, Susana Bustos reconhece que é praticamente inevitável que muitos se aproximem dessas tradições dentro de uma lógica de autoajuda ou de busca por desempenho pessoal. No entanto, ela acredita que, em contextos mais cuidadosos, o encontro entre cosmologias distintas pode abrir espaço para um verdadeiro processo de reconexão.
“Numa escala menor, é a educação, a construção de pontes de comunicação e entendimento profundo entre os participantes desse encontro transcultural, com epistemologias e valores tão diferentes, que pode ajudar a compreender o vegetalismo como um caminho de reconexão”, afirma. Para que isso ocorra, segundo ela, valores como respeito, empatia e escuta são indispensáveis.
Susana defende que a experiência direta com um mundo interconectado e sagrado, tal como proposta nos rituais amazônicos, pode ser um passo essencial no processo de descolonização dos indivíduos e comunidades que participam dessas práticas. “A preparação adequada dos participantes de fora, os pilares cerimoniais sólidos e o acompanhamento cuidadoso da integração das experiências são fundamentais.”
O canto como instrumento de cura
Um dos focos centrais da pesquisa de Susana Bustos é o estudo dos ícaros, cantos xamânicos que ocupam um papel fundamental nos rituais de ayahuasca dentro da tradição vegetalista peruana. Ela reconhece que, nas últimas décadas, o cenário sonoro dessas cerimônias se diversificou, incorporando instrumentos modernos, influências de outras tradições e estilos musicais variados. Ainda assim, a psicóloga tem se dedicado a investigar o papel dos ícaros, especialmente em sua forma tradicional, como agentes de cura, analisando seu impacto direto na experiência dos participantes.
“Meu trabalho tem se centrado nesse tipo de expressão musical e no seu impacto experiencial sobre os participantes das cerimônias de ayahuasca”, explica. Ela ressalta que os ícaros não devem ser compreendidos apenas como cantos ritualísticos, mas como verdadeiras ferramentas de atuação xamânica, empregadas também fora do contexto cerimonial.
Ela explica que durante as cerimônias tradicionais, realizadas predominantemente à noite, o campo auditivo se torna o principal eixo perceptivo dos participantes. A própria medicina, combinada ao contexto do ritual, amplia a sensibilidade à escuta, atuando em múltiplos níveis: somático, cinestésico, relacional e psicoemocional.
Os cantos funcionam como guias que modulam e organizam os processos visionários e corporais provocados pela ayahuasca. “Em momentos de sobrecarga sensorial ou emocional, por exemplo, podem até estimular o vômito, parte comum e simbólica do processo de purgação promovido pela medicina.”
Segundo Susana, as experiências curativas mais intensas envolvem uma fusão entre o participante e o canto: uma sensação de “ser cantado” ou de “estar dentro do canto”. Trata-se de uma vivência predominantemente somática, mas com forte carga visionária e simbólica. Após essa etapa, geralmente se segue uma fase de insights pessoais ligados ao problema central do paciente. “Esse tipo de experiência é muitas vezes descrito como um ponto de virada na jornada de cura, com a sensação de estar sendo cuidado por uma presença espiritual ou força que guia o processo.”
Ponte entre mundos
Ao refletir sobre os desafios de construir pontes entre as práticas ancestrais e os saberes modernos, Susana Bustos destaca a necessidade de ir além de lógicas colonizadoras e autorreferenciais que ainda dominam muitas abordagens científicas e espirituais. “Precisamos abandonar crenças como a de que há métodos superiores ou inferiores de conhecer o mundo, de que o que percebemos consensualmente é sinônimo de realidade ou de que os seres humanos são os únicos dotados de inteligência em um planeta repleto de seres”, afirma.
Para ela, esse processo de abertura exige uma autorreflexão profunda, capaz de tornar conscientes os paradigmas culturais que moldam nossa forma de ver e agir no mundo. Exige também valores fundamentais como respeito à diversidade, curiosidade, humildade —“entendida como o reconhecimento do espaço que nos cabe” —, empatia e escuta mútua.
Aos olhos de Susana, os saberes locais, as formas de conhecer o mundo e as relações cultivadas por diferentes povos podem enriquecer de forma decisiva nossa capacidade de viver e sobreviver em um planeta em crise. Desde que estejamos dispostos, como ela diz, a permanecer abertos à reconexação com a natureza e a ouvir os ensinamentos das plantas professoras.
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