
Brasil na Mira: Como o governo brasileiro deve se preparar para um confronto estratégico com os EUA
por Reynaldo Aragon
Sob o pretexto de combater cartéis, Washington reativa em 2025 a engrenagem de coerção que marcou o Plan Colombia — agora em escala continental. Tarifas, sanções, controle tecnológico e guerra informacional se combinam para empurrar o Brasil ao rompimento diplomático, dando aos EUA o pretexto perfeito para isolar e enfraquecer o país.
Introdução
A decisão do governo Trump de classificar cartéis de drogas latino-americanos como organizações terroristas e autorizar o Pentágono a elaborar planos de ação militar direta não é um movimento isolado. Trata-se da peça mais visível de uma engrenagem de coerção já em marcha, que integra segurança, comércio, lawfare e guerra informacional. Assim como o Plan Colombia serviu de cavalo de Troia para o avanço do aparato militar e de inteligência dos Estados Unidos na região sob a bandeira do combate às drogas, o modelo de 2025 expande essa lógica em escala continental, agora reforçado por instrumentos como tarifas punitivas, sanções financeiras extraterritoriais, controles de exportação e manipulação narrativa de alta intensidade. O objetivo estratégico não é apenas neutralizar redes criminosas, mas provocar incidentes diplomáticos calculados que empurrem governos-alvo — e, no médio prazo, o Brasil — para um rompimento unilateral. Essa ruptura forneceria a Washington o pretexto jurídico e político para acionar seu arsenal de medidas coercitivas sem restrições impostas por convenções ou tratados internacionais. Essa “doutrina da provocação” combina três vetores complementares: a pressão econômica calibrada por meio de tarifas sobre setores sensíveis, inspeções alfandegárias e restrições financeiras que desgastam cadeias estratégicas; a escalada securitária seletiva com acusações públicas, inclusão de grupos locais em listas terroristas e exigências de cooperação humilhantes; e a campanha informacional desenhada para apresentar o país como conivente ou omisso diante do crime organizado transnacional.
A conjuntura atual amplia o risco. O Brasil enfrenta uma disputa tarifária crescente com os Estados Unidos, um ambiente regional de instabilidade marcado pelo agravamento das tensões entre Washington, Colômbia e Venezuela, e a expansão no território brasileiro de redes criminosas com alcance transnacional, como o Tren de Aragua e suas conexões com facções nacionais. Esses elementos oferecem aos Estados Unidos o pretexto perfeito para acoplar a agenda antidrogas à pressão comercial e à guerra híbrida. O precedente colombiano demonstra que a “cooperação” sob tutela estadunidense tende a evoluir para dependência operacional, erosão de soberania e alinhamento forçado da política externa. Se o Brasil for enquadrado nesse mesmo roteiro, a escalada provável seguirá a lógica de uma escada de coerção, partindo de sanções individuais e tarifas pontuais até bloqueios tecnológicos e financeiros, com impactos diretos sobre energia, agro, indústria e infraestrutura digital.
A melhor vitória dos Estados Unidos não será militar, mas psicológica e diplomática: fazer o Brasil reagir no calor do momento, rompendo canais de diálogo e entregando o pretexto para a aplicação irrestrita de seu poder econômico e normativo. A melhor defesa brasileira será negar esse estopim, manter a iniciativa e reduzir a superfície de coerção, fortalecendo simultaneamente sua autonomia material e informacional.
Doutrina da Provocação
A doutrina da provocação parte do princípio de que, em certos contextos geopolíticos, não é necessário recorrer a um conflito direto para alcançar objetivos estratégicos. Basta criar um ambiente em que a outra parte, pressionada por constrangimentos econômicos, acusações públicas e desgaste político interno, tome a decisão de se afastar voluntariamente da mesa de negociação. No caso da América Latina em 2025, e especificamente do Brasil, essa lógica está sendo operacionalizada por meio de uma combinação calibrada de medidas de coerção econômica, iniciativas securitárias assimétricas e manipulação informacional.
O primeiro vetor é a pressão econômica calibrada, aplicada de forma seletiva e gradual. Tarifas sobre produtos estratégicos como café, carne, aço e derivados de petróleo têm efeito direto sobre setores-chave da economia brasileira e, ao mesmo tempo, alimentam o debate interno sobre a viabilidade de manter uma relação comercial com um parceiro hostil. Essas medidas não visam apenas gerar prejuízos econômicos, mas provocar reações políticas inflamadas que possam ser exploradas como “evidência” de que o Brasil está se afastando voluntariamente da cooperação bilateral.
O segundo vetor é a escalada securitária seletiva. A designação de grupos criminosos transnacionais como organizações terroristas cria um instrumento jurídico que permite aos Estados Unidos projetar poder para além de suas fronteiras sob o pretexto de combater o terrorismo. Ao incluir, ou insinuar a possibilidade de incluir, facções brasileiras como o PCC ou o Comando Vermelho nessa lista, Washington coloca o governo brasileiro diante de um dilema: aceitar um aumento da presença e da influência de agências norte-americanas na segurança interna ou recusar e ser acusado de “proteger terroristas”.
O terceiro vetor é a guerra informacional. Narrativas cuidadosamente construídas e amplificadas por meios de comunicação alinhados, think tanks e organismos “independentes” reforçam a percepção de que o Brasil é leniente com o crime organizado e conivente com redes transnacionais. Esse enredo é sustentado por relatórios de ONGs, estudos acadêmicos patrocinados e declarações de parlamentares estrangeiros, criando um ambiente em que qualquer defesa brasileira é imediatamente enquadrada como desculpa ou obstrução.
A conjunção desses vetores tem um objetivo claro: induzir o Brasil a um ato político de ruptura — seja na forma de expulsão de diplomatas, suspensão de acordos, retirada de cooperação ou declaração pública de rompimento de canais de diálogo. Uma vez consumado esse gesto, Washington poderia alegar que esgotou todas as alternativas e que, portanto, está legitimado a impor sanções amplas, controles de exportação, bloqueios financeiros e até operações pontuais de segurança. O precedente histórico mais próximo é o Plan Colombia, que, embora tenha começado como um programa de “cooperação”, rapidamente se transformou em um mecanismo de alinhamento forçado e de condicionamento da soberania nacional ao projeto estratégico dos Estados Unidos.
O risco para o Brasil, em 2025, é que o mesmo roteiro esteja sendo adaptado em escala continental, mas com uma diferença crucial: a integração entre instrumentos econômicos e securitários, agora reforçada pela capacidade de guerra informacional e operações híbridas de alta precisão. Se a provocação for bem-sucedida, o Brasil não apenas enfrentará sanções e restrições, mas verá sua narrativa internacional capturada, transformando-se, aos olhos da opinião pública global, no “culpado” de um colapso diplomático cuidadosamente arquitetado por Washington.
O precedente do Plan Colômbia sem a romantização
O Plan Colombia nasceu no fim dos anos 1990 como um pacote de assistência militar, policial e econômica amarrado ao combate às drogas e à insurgência, rapidamente convertido em arquitetura de tutela: condicionalidades, assessoramento operacional, inteligência e financiamento massivo dos Estados Unidos. Em 2000, o Congresso norte-americano aprovou cerca de 1,3 bilhão de dólares em recursos iniciais, e a conta acumulada de assistência superou 10 bilhões de dólares nas quase duas décadas seguintes, entre fundos do Departamento de Estado e do Departamento de Defesa. O objetivo declarado era cortar pela metade a produção e o tráfico em seis anos; o desenho real combinou contrainsurgência, fumigação aérea, interdição e reengenharia institucional na segurança colombiana.
Os resultados foram ambíguos. Houve ganhos estatais mensuráveis em controle territorial, redução de homicídios e capacidade militar, mas as metas centrais de redução sustentada do cultivo e da oferta oscilaram no tempo e não se consolidaram, como apontaram sucessivos relatórios e revisões independentes. A curva do cultivo caiu em determinados períodos e voltou a subir em outros, revelando a elasticidade do mercado e o deslocamento geográfico da produção.
O instrumento mais controverso foi a fumigação aérea com glifosato, aplicada por mais de uma década, com impactos sociais e ambientais sensíveis e disputa técnico-regulatória internacional. Em 2015, a agência de câncer da OMS classificou o glifosato como “provavelmente carcinogênico”, decisão que tensionou o programa e impulsionou o recuo de Bogotá nas pulverizações, apesar de posições divergentes na Europa e da pressão norte-americana. O episódio ilustra a assimetria: quando a ferramenta operacional entra em choque com salvaguardas sanitárias e direitos, o ônus recai sobre o país receptor.
No plano político, o Plan Colombia funcionou como cavalo de Troia de uma contrainsurgência de largo espectro: a pauta antidrogas deu cobertura para redesenho doutrinário, expansão de missões militares e blindagem de reformas em defesa e segurança, inclusive sob o argumento de condicionalidades anticorrupção e de direitos humanos. Organismos e auditorias reconhecem que a priorização de erradicação e interdição, em detrimento de segurança cidadã e desenvolvimento alternativo, produziu ganhos táticos e custos estratégicos, ao mesmo tempo, em que consolidou dependências tecnológicas e operacionais.
A lição dura para 2025 é que o precedente colombiano inaugurou um padrão exportável: quando Washington acopla guerra às drogas, contrainsurgência e cooperação militar, cria uma alavanca multifuncional de influência que sobrevive às oscilações dos indicadores de coca. Aplicado ao presente, o risco para o Brasil não está numa cópia literal do Plan Colombia, mas na sua atualização: designações de terrorismo para redes criminosas, acoplamento com tarifas e sanções financeiras, controles de exportação e campanhas informacionais capazes de apresentar qualquer resistência brasileira como leniência ou conivência. Em outras palavras, a matriz de 2000 fornece a gramática de 2025, agora com poder normativo e financeiro mais sofisticado.
Arsenal jurídico e econômico disponível para Washington
O poder coercitivo dos Estados Unidos contra países e empresas opera como um tabuleiro interligado de leis domésticas com alcance extraterritorial, sanções financeiras, tarifas, controles de exportação e instrumentos de reputação e compliance. No centro estão dispositivos como o IEEPA, que permite declarar “emergências nacionais” e bloquear ativos e transações, e o Kingpin Act, que congela bens e proíbe qualquer americano ou instituição sujeita à jurisdição dos EUA de negociar com indivíduos e entidades ligados ao narcotráfico. Magnitsky abre a porta para sanções contra pessoas por corrupção e violações de direitos humanos, criando um vetor político para atingir autoridades, empresários e intermediários financeiros. A Seção 311 do Patriot Act eleva o risco bancário ao rotular jurisdições, setores ou instituições como de “preocupação primária” em lavagem de dinheiro, acionando medidas que vão de due diligence reforçada até a exclusão prática do sistema em dólar. As Seções 232 e 301 do comércio permitem tarifas por “segurança nacional” e por “práticas desleais”, úteis para calibrar custos setoriais e provocar fissuras políticas internas. Controles de exportação e listas de entidades, por sua vez, cortam o acesso a hardware, software, serviços em nuvem, chips e know-how, enquanto a OFAC integra e executa o ecossistema sancionador com impacto imediato em bancos correspondentes, seguros, frete e contratos.
Aplicado ao Brasil, esse arsenal se organiza em camadas. Na camada financeira, o risco central reside na dependência de dólar, correspondentes internacionais e redes de mensageria: uma simples ampliação de due diligence exigida por reguladores e a ameaça de penalidades já encarecem crédito, atrasam pagamentos e desorganizam cadeias de exportação e importação. Em paralelo, listas direcionadas sob Kingpin e Magnitsky podem mirar indivíduos de logística, segurança privada, transporte, portos e zonas cinzentas entre economia formal e informal, criando “zonas de contaminação reputacional” que levam bancos e seguradoras a sobre-reagir e cortar relações por prudência. Na camada comercial, 232 e 301 permitem tarifas moduladas sobre aço, alumínio, agro e combustíveis, reprecificando margens e pressionando governadores, prefeitos e bancadas regionais. Na camada tecnológica, controles de exportação e listas de entidades podem segmentar data centers em nuvem, serviços críticos de cibersegurança, EDA para semicondutores, sensores, satélites e componentes dual use, elevando a vulnerabilidade de setores de energia, defesa, mineração, agricultura de precisão e logística portuária.
O ponto de estrangulamento mais sensível é a infraestrutura invisível: seguros marítimos e P&I clubs, certificações e auditorias de compliance, clearing em dólar, gateways de pagamento, roteamento de tráfego e serviços de confiança digital. Nenhuma dessas alavancas precisa de “invasão” para produzir dano material imediato; basta uma comunicação regulatória, um comunicado da OFAC, um alerta de risco ou a abertura de uma investigação para que instituições privadas globais se alinhem ao risco jurídico percebido. A narrativa de “combate a organizações terroristas” funciona como lubrificante legal para acionar IEEPA, Kingpin e controles tecnológicos, enquanto a pressão tarifária cria o custo político doméstico que induz Brasília a uma reação emocional. O objetivo, portanto, não é apenas punir, mas provocar uma decisão brasileira de romper procedimentos de cooperação, expulsar adidos, suspender canais ou denunciar acordos, entregando o casus belli normativo para a escalada subsequente.
A leitura estratégica exige antecipar a sequência provável de acionamento. Primeiro sinais fracos: pedidos atípicos de informações por bancos correspondentes, atrasos persistentes em cartas de crédito, recusas súbitas de seguradoras marítimas, aumento anômalo de inspeções alfandegárias no destino, questionamentos sobre beneficiários finais e due diligence de clientes ligados a logística portuária, armazenagem e transporte terrestre. Em seguida, medidas “de precisão” contra pessoas e empresas em listas, que criam efeito de paralisia pela incerteza. Na terceira etapa, tarifas setoriais e controles de exportação calibrados para maximizar atrito político interno no Brasil. Por fim, ameaças de secondary sanctions, quando terceiros países e empresas passam a ser punidos por transacionar com alvos brasileiros, ampliando o isolamento. Cada degrau aumenta o custo de reversão e estreita as opções diplomáticas.
A resposta brasileira precisa partir da negação do estopim e de uma engenharia de redundância: preparar rotas financeiras alternativas e buffers de liquidez em moedas diversas, blindar seguros e certificações por consórcios não expostos aos EUA, auditar cadeias críticas para reduzir pontos únicos de falha, negociar waivers preventivos com parceiros tecnológicos, e separar de forma cirúrgica compliance doméstico de tutela externa. Em paralelo, é crucial construir uma defesa jurídica e narrativa que diferencie cooperação legítima de tutela extraterritorial, exponha custos e contradições das medidas americanas e impeça a captura reputacional que transforma prudência soberana em “conivência”. Sem essa preparação, o arsenal de Washington não precisa ser plenamente acionado para produzir o efeito desejado: bastam anúncios e insinuações para que o mercado faça o trabalho.
Escada de escalada contra o Brasil
A progressão de coerção que Washington pode acionar contra o Brasil segue uma lógica de degraus calibrados, cada um construído para aumentar o custo político interno e reduzir as opções de recuo. Nos primeiros 90 dias, o cenário mais provável é a adoção de medidas de baixo impacto formal, mas alto potencial de desgaste: pronunciamentos públicos de autoridades americanas insinuando conivência brasileira com redes criminosas, inclusão de indivíduos em listas secundárias, aumento de inspeções alfandegárias nos portos de entrada dos Estados Unidos, exigências atípicas de documentação para exportadores e importadores brasileiros e atrasos deliberados na liberação de cargas. Esses movimentos têm baixo custo político para Washington, mas pressionam setores econômicos sensíveis e alimentam narrativas de fragilidade institucional.
No horizonte de 180 dias, a escalada passa a incorporar instrumentos mais visíveis e de maior peso: imposição de tarifas setoriais sobre aço, alumínio, agro e combustíveis; inclusão de empresas brasileiras de logística, energia e transporte em listas de sanções direcionadas; revogação de licenças de exportação para equipamentos e softwares críticos; e endurecimento nas condições de financiamento via bancos e seguradoras internacionais. Essa etapa visa aumentar o atrito entre o governo federal e setores econômicos domésticos, incentivando pressão política interna por uma resposta mais dura a Washington — exatamente o gatilho que a doutrina da provocação busca acionar.
No prazo de 360 dias, no cenário mais agressivo, entram em jogo ferramentas de isolamento sistêmico: ameaças ou aplicação de secondary sanctions contra empresas e países que mantenham negócios com alvos brasileiros; restrição de acesso a tecnologias dual use e serviços em nuvem essenciais; cortes no fornecimento de peças e componentes críticos; bloqueio de ativos e transações em dólar; e campanhas coordenadas em foros multilaterais para rotular o Brasil como risco de segurança internacional. Nessa etapa, o efeito econômico é multiplicado por um cerco narrativo que dificulta a mobilização de aliados e aumenta o custo reputacional de qualquer aproximação.
A escalada, em qualquer de seus estágios, é desenhada para induzir o Brasil a reagir de forma emocional e romper canais diplomáticos, entregando aos Estados Unidos a justificativa política e jurídica para manter ou ampliar o cerco. A única forma de quebrar essa lógica é negar o estopim, diversificar rotas econômicas e tecnológicas, e sustentar uma contra narrativa que exponha a natureza estratégica — e não altruísta — das ações americanas, preservando a iniciativa e a capacidade de manobra.
Cenários preditivos
A análise prospectiva da relação Brasil–Estados Unidos diante da atual doutrina da provocação permite identificar três horizontes plausíveis, cada um com gatilhos específicos, probabilidades distintas e impactos graduais sobre a soberania brasileira. No cenário conservador, com horizonte de até 90 dias, Washington mantém a pressão em nível moderado, explorando instrumentos de baixo custo e alta reversibilidade: inspeções alfandegárias seletivas, pronunciamentos insinuando leniência com o crime organizado, inclusão pontual de indivíduos ou empresas em listas de observação e exigências adicionais em procedimentos de compliance. O objetivo aqui é testar limites e medir a resiliência política e diplomática do Brasil sem gerar ruptura imediata, enquanto se constrói uma narrativa pública para uso futuro.
No cenário base, projetado para até 180 dias, a pressão se intensifica e se torna mais visível. Medidas tarifárias atingem setores estratégicos como aço, alumínio, agronegócio e derivados de petróleo; licenças de exportação para tecnologias críticas começam a ser suspensas; e empresas brasileiras ligadas a logística, energia e infraestrutura portuária passam a enfrentar restrições financeiras e reputacionais. A ofensiva informacional se expande, com relatórios e declarações públicas que vinculam o Brasil a redes criminosas transnacionais, aumentando o desgaste interno e incentivando atores domésticos a exigir respostas mais duras de Brasília — exatamente a reação desejada por Washington para escalar a disputa.
O cenário agressivo, em um horizonte de até 360 dias, configura uma crise de alta intensidade. Aqui entram em cena ameaças ou aplicação efetiva de secondary sanctions, restrições severas de acesso a serviços em nuvem, tecnologias dual use e componentes industriais críticos, bem como bloqueio de transações em dólar para alvos específicos ou setores inteiros. Paralelamente, o Brasil seria alvo de campanhas coordenadas em organismos multilaterais, buscando consolidar a percepção internacional de que representa um risco à segurança regional. Essa etapa teria como meta não apenas fragilizar a economia e a infraestrutura brasileiras, mas também isolar politicamente o país, tornando-o mais vulnerável a imposições externas.
Em todos os cenários, o elemento central permanece o mesmo: criar um ambiente de provocação capaz de induzir o Brasil a tomar uma decisão de rompimento diplomático, transferindo aos Estados Unidos o capital político e jurídico necessário para sustentar e ampliar o cerco. A previsibilidade dessa lógica permite ao Brasil preparar respostas calibradas, negando o estopim e fortalecendo simultaneamente sua autonomia econômica, tecnológica e informacional, de modo a manter a capacidade de manobra estratégica mesmo sob pressão contínua.
Indicadores antecedentes e sinais fracos
A antecipação é a chave para neutralizar a doutrina da provocação antes que ela produza o estopim desejado. O mapeamento de indicadores antecedentes e sinais fracos permite identificar, em tempo quase real, quando Washington começa a calibrar a escalada contra o Brasil. No plano financeiro, um dos primeiros alerta é o aumento repentino de pedidos de informações detalhadas por bancos correspondentes nos Estados Unidos ou em jurisdições alinhadas, especialmente sobre transações de empresas de logística, energia, agroexportação e mineração. Atrasos incomuns na liquidação de cartas de crédito, elevação abrupta nos custos de seguro marítimo e recusa ou encarecimento de apólices P&I também funcionam como sinais de que canais de pressão financeira estão sendo testados.
No comércio exterior, inspeções alfandegárias sistematicamente mais rigorosas para cargas brasileiras em portos norte-americanos, exigências adicionais de certificações sanitárias e técnicas, e mudanças súbitas nos padrões de aceitação de documentação indicam preparação para criar gargalos e aumentar custos operacionais. Movimentos semelhantes em mercados secundários, como União Europeia ou parceiros asiáticos fortemente dependentes dos Estados Unidos, podem sinalizar que a pressão está sendo multilateralizada de forma informal.
No campo jurídico e regulatório, a inclusão de empresas ou indivíduos brasileiros em listas de observação preliminares — mesmo sem sanções formais — serve como teste para medir a reação do governo e do mercado. Projetos de lei ou audiências no Congresso norte-americano que mencionem o Brasil em contexto de narcotráfico, corrupção ou segurança internacional devem ser monitorados com atenção, pois funcionam como preparação narrativa para justificar ações executivas.
Na esfera informacional, relatórios de think tanks, estudos de ONGs internacionais e matérias na imprensa alinhada que conectem o Brasil a redes criminosas transnacionais são indicativos que uma campanha coordenada está em curso. A repetição de termos-chave, a sincronização de publicações e o uso de fontes anônimas vinculadas a agências de inteligência norte-americanas fazem parte do padrão de construção de consenso que precede medidas coercitivas.
A leitura integrada desses sinais permite ao Brasil não apenas antecipar movimentos, mas também agir para desmontar narrativas, reforçar parcerias estratégicas e criar redundâncias econômicas e tecnológicas antes que a escalada atinja pontos de difícil reversão. Quanto mais cedo esses indicadores forem reconhecidos e tratados como parte de um roteiro de provocação, maior será a capacidade de manter a iniciativa e evitar que a crise seja conduzida nos termos de Washington.
Guerra informacional e metaintermediação
A dimensão informacional da doutrina da provocação não é acessória: ela é o eixo que conecta a pressão econômica, o enquadramento jurídico e a escalada securitária. Washington não precisa apenas aplicar medidas; precisa construir consenso interno e externo de que essas medidas são legítimas, necessárias e inevitáveis. Esse trabalho é realizado por meio de um ecossistema de metaintermediários — think tanks, ONGs, empresas de consultoria, veículos de imprensa, universidades e especialistas independentes — que funcionam como multiplicadores da narrativa oficial, mas com aparência de neutralidade.
A operação começa com a escolha de um enquadramento linguístico que condense o Brasil em um problema global. Termos como “paraíso de organizações criminosas transnacionais”, “ponto cego da segurança hemisférica” ou “elo vulnerável no combate ao narcotráfico” são repetidos em relatórios, entrevistas e painéis internacionais, criando uma base semântica que associa automaticamente o país a risco e omissão. Em seguida, entram os “estudos de caso” e “investigações” que apresentam dados parciais ou extrapolados, muitas vezes produzidos em colaboração com agências de inteligência ou órgãos de segurança dos EUA, mas publicados por entidades que se declaram independentes.
Essa narrativa é amplificada por redes sociais e pela mídia tradicional. Influenciadores, comentaristas e veículos alinhados difundem conteúdos que reforçam a percepção de falha sistêmica no Brasil, enquanto bots e contas coordenadas ajudam a criar a sensação de que essa visão é majoritária e inevitável. O papel das big techs, nesse ponto, é crucial: algoritmos priorizam determinados conteúdos e moldam o alcance de mensagens, garantindo que a narrativa pró-escalada circule com mais intensidade que qualquer contraponto brasileiro.
A guerra informacional também se manifesta na diplomacia pública. Em discursos na ONU, OEA e outros foros multilaterais, autoridades norte-americanas citam o Brasil indiretamente, mas de forma suficientemente clara para associar o país a ameaças regionais. Paralelamente, vazamentos seletivos para a imprensa sobre supostos relatórios de inteligência ou operações frustradas reforçam a imagem de que o Brasil está no epicentro de um problema que exige resposta internacional.
O objetivo não é convencer todos, mas saturar o espaço informacional a ponto de transformar a narrativa adversa em pano de fundo inquestionado. Quando esse estágio é atingido, qualquer resposta brasileira que questione as medidas passa a ser interpretada não como legítima defesa da soberania, mas como prova adicional de resistência a “cooperar” contra um inimigo comum. Essa inversão da lógica — onde a defesa é usada como prova de culpa — é a essência da metaintermediação informacional no contexto da doutrina da provocação.
Negar esse terreno à narrativa de Washington exige ação preventiva: monitorar metaintermediários, identificar redes de difusão, preparar contra-narrativas factuais e, sobretudo, construir canais diretos de comunicação internacional que não dependam dos filtros das plataformas e da mídia alinhada. Sem isso, o Brasil entra no jogo já sob o peso de uma reputação moldada para justificar a escalada.
Rebatendo narrativas de Washington
Neutralizar a doutrina da provocação exige mais do que respostas técnicas; demanda a construção de um arcabouço argumentativo capaz de desmontar, ponto a ponto, as justificativas que Washington apresenta para sustentar suas ações. A primeira linha de defesa é separar cooperação legítima de tutela extraterritorial. O Brasil deve evidenciar, com dados e exemplos verificáveis, que colabora ativamente no combate ao crime organizado transnacional, mas que essa colaboração se dá em termos soberanos, definidos por acordos formais e dentro das balizas do direito internacional. Essa distinção é vital para expor que as exigências norte-americanas não visam apenas segurança, mas também poder político e econômico.
Outra narrativa recorrente a ser desmontada é a de que o Brasil seria “leniente” com o narcotráfico por não aceitar presença militar ou operações diretas dos EUA. A resposta estratégica aqui é apresentar indicadores concretos de apreensões, prisões e desmantelamento de redes criminosas, incluindo cooperações bilaterais e multilaterais já existentes, para demonstrar que a rejeição a tutelas estrangeiras não significa passividade ou omissão. Ao mesmo tempo, é preciso apontar os riscos e precedentes negativos de intervenções extraterritoriais — como no caso colombiano — para ilustrar que, longe de solucionar o problema, tais medidas frequentemente criam dependência e instabilidade.
A acusação de que o Brasil seria “elo vulnerável” na segurança hemisférica pode ser revertida destacando o papel do país como provedor de estabilidade regional. Isso envolve evidenciar acordos com países vizinhos, investimentos em tecnologia de fronteira, operações conjuntas com forças policiais e militares da região e participação ativa em fóruns multilaterais de segurança. Mostrar que o Brasil atua como integrador e não como obstáculo cria uma contra narrativa que dificulta a legitimação de medidas punitivas.
Por fim, é fundamental antecipar e rebater a narrativa de que qualquer resistência às demandas norte-americanas representa “alinhamento” com o crime ou com governos hostis aos EUA. Esse enquadramento binário — “com nós ou contra nós” — deve ser desconstruído com argumentos jurídicos, políticos e econômicos, reforçando que a política externa brasileira é guiada por interesses nacionais e compromissos internacionais legítimos, não por alinhamentos ideológicos ou concessões forçadas.
A eficácia dessa contra-argumentação depende de consistência e repetição. Ela deve estar presente em discursos oficiais, entrevistas, documentos técnicos, relatórios internacionais e articulações diplomáticas, de modo a saturar o espaço informacional com uma versão factual e coerente dos fatos. Só assim o Brasil pode impedir que a narrativa de Washington se consolide como pano de fundo incontestável para medidas coercitivas.
Estratégia brasileira de contenção e dissuasão
A defesa contra a doutrina da provocação deve ser simultaneamente diplomática, econômica, tecnológica e informacional, concebida para negar aos Estados Unidos o estopim que justificaria a escalada e, ao mesmo tempo, aumentar o custo de qualquer medida coercitiva. No campo diplomático, a prioridade é ampliar e diversificar alianças, fortalecendo mecanismos regionais e fóruns multilaterais capazes de atuar como amortecedores políticos. Relações estratégicas com parceiros não alinhados a Washington — no BRICS, na União Africana, na ASEAN e em países do Oriente Médio — precisam ser cultivadas para oferecer rotas alternativas de comércio, financiamento e cooperação tecnológica, reduzindo a vulnerabilidade a sanções e tarifas.
Na frente econômica, a estratégia exige a diversificação de mercados de exportação e importação, a criação de reservas estratégicas de insumos críticos e a construção de redundâncias logísticas que mitiguem gargalos em portos e cadeias de suprimentos. É igualmente essencial ampliar o uso de moedas locais e sistemas de pagamentos alternativos ao dólar, minimizando a dependência de correspondentes bancários expostos à jurisdição norte-americana.
No campo tecnológico, a dissuasão passa pela soberania digital: desenvolvimento e hospedagem nacional de serviços críticos, participação em consórcios de satélites e cabos submarinos com parceiros estratégicos, incentivo à produção local de semicondutores e fortalecimento da ciberdefesa. A proteção de infraestrutura essencial deve incluir mecanismos de redundância para data centers, energia e comunicações, garantindo operação contínua mesmo diante de bloqueios ou restrições impostas por fornecedores estrangeiros.
A dimensão informacional é o elo integrador dessa estratégia. É preciso investir em inteligência estratégica para monitorar metaintermediários, identificar campanhas coordenadas e desativar narrativas adversas antes que se consolidem. Isso implica em criar um sistema permanente de análise de sinais fracos, operar canais internacionais de comunicação direta e articular campanhas que apresentem o Brasil como um ator confiável, eficiente no combate ao crime e comprometido com a estabilidade regional.
Por fim, a dissuasão exige que todas essas frentes atuem de forma coordenada e com protocolos pré-definidos. A fragmentação de respostas — cada ministério, agência ou setor econômico agindo isoladamente — só facilita a aplicação da doutrina da provocação. Ao contrário, uma resposta unificada e calibrada, com mensagens consistentes e ações tangíveis, aumenta exponencialmente o custo político e econômico de qualquer tentativa de coerção por parte de Washington.
Plano operacional de 30–60–90 dias
A resposta brasileira à doutrina da provocação precisa de um roteiro de curto prazo que una ação preventiva e preparação para contingências. Nos primeiros 30 dias, a prioridade é estabelecer um gabinete interministerial de crise, com representação de Itamaraty, Defesa, Economia, Justiça, Agricultura, Minas e Energia, Comunicações e Banco Central. Esse núcleo deve mapear as vulnerabilidades críticas — cadeias logísticas, fluxos financeiros, infraestrutura digital, insumos estratégicos — e criar protocolos unificados de resposta. Paralelamente, é necessário ativar canais diplomáticos discretos com parceiros estratégicos para avaliar apoio em caso de sanções e iniciar consultas jurídicas para antecipar defesas em foros internacionais. Na mesma janela, deve-se intensificar o monitoramento de sinais fracos no comércio exterior, no sistema financeiro e na mídia internacional, produzindo relatórios diários de inteligência.
Entre 30 e 60 dias, a ação se desloca para o fortalecimento das defesas econômicas e tecnológicas. Isso inclui testar rotas alternativas de exportação e importação, negociar seguros marítimos e de carga com consórcios não expostos à jurisdição dos EUA, iniciar a migração de serviços críticos de nuvem para provedores nacionais ou parceiros confiáveis, e preparar estoques de insumos industriais e farmacêuticos. É também o momento de reforçar a presença diplomática em capitais-chave, especialmente em países que possam servir como canais indiretos para comércio e tecnologia. Na frente informacional, deve-se lançar uma campanha coordenada apresentando o Brasil como ator proativo e soberano no combate ao crime transnacional, usando dados concretos para desmontar narrativas adversas.
Dos 60 aos 90 dias, o foco passa à criação de redundâncias estruturais e à consolidação da contra narrativa. Devem ser realizados testes de estresse no sistema financeiro e nas redes de comunicação para simular bloqueios e identificar pontos de falha. A diplomacia deve promover encontros multilaterais voltados a reforçar a posição brasileira, inclusive com a apresentação de propostas de cooperação regional em segurança e combate ao crime que não impliquem em tutela externa. No campo interno, é fundamental manter a coesão entre governo, setor privado e sociedade civil, evitando que pressões econômicas sejam exploradas para criar divisões políticas. Ao final desse ciclo, o Brasil deve ter fortalecido sua resiliência, reduzido sua dependência de pontos de estrangulamento controlados por Washington e demonstrado capacidade de negar o estopim que a doutrina da provocação busca acionar.
Conclusão
A cruzada antidrogas de 2025 reativa, com instrumentos mais potentes, a gramática de coerção inaugurada pelo Plan Colombia e projeta uma arquitetura de pressão que dispensa invasões para obter efeitos estratégicos. O objetivo de Washington é provocar o Brasil ao erro calculado do rompimento, convertendo prudência soberana em prova de culpa e abrindo caminho para sanções, tarifas, controles tecnológicos e isolamento reputacional. A resposta brasileira mais eficaz não é simétrica, mas inteligente: negar o estopim, manter iniciativa diplomática, antecipar a escada de escalada e reduzir a superfície de coerção nos domínios financeiro, logístico, tecnológico e informacional. Preparar redundâncias críticas, diversificar parceiros e rotas, separar cooperação legítima de tutela extraterritorial e saturar o debate internacional com evidência factual de capacidade doméstica no combate ao crime compõem a dissuasão prática. Em paralelo, a guerra informacional deve ser enfrentada como teatro central, com monitoramento de metaintermediários e produção consistente de contranarrativas verificáveis. Se o Brasil sustentar coesão interna, ativar redes externas e operar com previsibilidade estratégica, a doutrina da provocação perde seu combustível: sem rompimento, não há casus belli; sem casus belli, a escalada emperra no custo político e econômico doméstico dos próprios Estados Unidos.
Artigo publicado originalmente em <código aberto>
Reynaldo Aragon é jornalista especializado em geopolítica da informação e da tecnologia, com foco nas relações entre tecnologia, cognição e comportamento. Editor do codigoaberto.net É pesquisador do Núcleo de Estudos Estratégicos em Comunicação, Cognição e Computação (NEECCC – INCT DSI) e integra o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Disputas e Soberania Informacional (INCT DSI), onde investiga os impactos da tecnopolítica sobre os processos cognitivos e as dinâmicas sociais no Sul Global.
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