
O diretor iraniano Jafar Panahi voltou a ser premiado internacionalmente ao conquistar a Palma de Ouro no Festival de Cannes pelo filme “Foi Apenas um Acidente”. A vitória reforça seu destaque no cinema iraniano contemporâneo, que há décadas ocupa espaço de prestígio no circuito global. Mas junto ao reconhecimento reaparece uma pergunta incômoda: até que ponto esses filmes, celebrados no Ocidente, alimentam uma visão orientalista que confirma estereótipos esperados sobre o Irã.
O cinema iraniano ganhou projeção mundial e acumula prêmios importantes. Mesmo assim, o país — muçulmano e situado na Ásia Ocidental — continua retratado de forma simplificada e redutora, sobretudo nos meios ocidentais. Esse retrato unificado, quase sempre negativo, se repete em várias produções reconhecidas fora do Irã.
Diretores como Panahi, Asghar Farhadi — que ganhou o Oscar em 2017 por “O Apartamento” — e o falecido Abbas Kiarostami tornaram-se nomes consagrados internacionalmente. No entanto, muitos de seus filmes parecem seguir uma fórmula esperada: dramas sociais, opressão e conflitos culturais. Essa narrativa, embora impactante, tende a limitar o olhar sobre a realidade iraniana, adequando-a às preferências de quem assiste do lado de fora.
Independentemente da intenção de cada cineasta, o resultado é uma representação parcial, que encobre a diversidade de vozes existentes no país. Isso levanta uma discussão sobre os limites da representação cultural em um mundo marcado por desigualdades na circulação de obras e na definição do que é visível.
O teórico cultural Stuart Hall apontou que a mídia produz sentido a partir de estruturas de poder e ideologia. As mensagens não carregam verdades fixas, mas são construídas e interpretadas dentro de condições políticas. Assim, os significados tendem a favorecer interesses dominantes, tanto na produção quanto no consumo.
Nesse quadro, o reconhecimento a Panahi e outros diretores iranianos no Ocidente revela uma contradição: suas obras, embora tecnicamente sofisticadas, ajudam a validar uma visão fragmentada e distorcida que favorece interesses políticos e culturais externos. Em vez de apresentar a complexidade do país, reforçam uma imagem simplificada de uma sociedade oprimida, em conflito e atrasada. O aplauso internacional, nesse caso, funciona como reforço de um exotismo problemático, distante de qualquer compreensão genuína sobre o Irã.

O legado do orientalismo
O intelectual Edward Said apontou, em seu livro “Orientalismo” (1978), que as representações do Oriente feitas pelo Ocidente servem a projetos de dominação. Ele destacou que essas imagens não são neutras, mas articuladas com interesses coloniais e políticos que opõem um Ocidente “avançado” a um Oriente “atrasado”.
Após os ataques de 11 de setembro de 2001, a tendência islamofóbica se intensificou, e a imagem dos povos muçulmanos passou a ser marcada por estereótipos. No Ocidente, a representação dessas sociedades ficou reduzida a clichês de hipocrisia, ameaça e irracionalidade. Esse processo também afetou a forma como o cinema passou a retratar países como o Irã.
Ali Behdad, estudioso do orientalismo moderno, introduziu o conceito de “auto-orientalização” para descrever como artistas e cineastas da região acabam incorporando estereótipos ocidentais em suas obras. Segundo ele, esse movimento busca reconhecimento e legitimidade dentro de um circuito global que define o que deve ser mostrado — e como.
Mostrar o que o Ocidente quer ver se torna condição para ser visto.
Essa lógica aparece em boa parte da obra de Panahi, Farhadi e Kiarostami. Embora defendam a autenticidade de seus filmes, eles frequentemente reforçam visões ocidentais sobre o Irã. Dois elementos centrais nessas produções são as mulheres e a sociedade iraniana. Ambos são retratados a partir de imagens que ecoam estereótipos: repressão, trauma e silêncio.
Um exemplo claro é “O Apartamento”, de Farhadi, em que a mulher surge como vítima passiva em meio à violência e à desigualdade. Essa construção repete o clichê de um Islã retrógrado diante de um Ocidente moderno e defensor dos direitos das mulheres. A divisão simplista entre civilização e barbárie serve para manter narrativas hegemônicas e descartar as contradições internas dos países retratados.

O custo do reconhecimento internacional
As mensagens veiculadas nos filmes de Panahi, Farhadi e outros diretores — seja pela aparência dos personagens, seja pelas imagens de uma sociedade sempre em crise — refletem um discurso colonial adaptado aos dias de hoje. A forma como o Irã aparece nas telas se aproxima mais da imagem criada pelo Ocidente do que de um retrato plural e complexo do país.
Esse processo reforça estereótipos que deveriam ser questionados. No fim, o cinema iraniano que mais conquista prêmios no exterior revela não só o talento técnico de seus realizadores, mas também a submissão a um mercado cultural global que limita a diversidade das narrativas. A auto-orientalização, presente em muitas dessas obras, expõe um paradoxo: para alcançar prestígio, os cineastas acabam cedendo à visão externa, repetindo uma caricatura do Irã em vez de enfrentar as versões dominantes sobre o país.