Como é bom usar o filme como metáfora e gritar: “Ainda estou aqui!”
por Eduardo Ramos
Foi de lavar a alma! E não falo só pelo filme, extraordinário por sua capacidade quase inacreditável de equilibrar em sua narrativa, quadro a quadro, eventos que nos apaixonam com a torrente inevitável de emoções que nos perpassam, com as contenções – propositais, tenho certeza! – que percebemos no roteiro e nas interpretações – magníficas – dos atores. Waltinho conseguiu esse feito como um mestre, evitando assim a armadilha mais fácil e mais perigosa dessa modalidade de filme: cair no “dramalhão”, ou, uma outra armadilha, a “panfletagem política”.
Ora, o filme não deixa de ser um drama, e nem um filme com um pano de fundo político óbvio – como poderia ser diferente? – sem cair num fotograma sequer no pecado do excesso, da forçação de barra, sua força poderosa – e paradoxal – é trazer uma carga IMENSA de humanidades variadas ao filme, em minha opinião, na exata medida em que atinge esse equilíbrio de que falo, esse “andar no fio da navalha” à perfeição, as contenções do cineasta, liberando emoções, política, dramas pessoais, dor, esperança em medidas impecáveis, na verdade, com essa ação – que, repito, aparentemente proposital – “salvando a narrativa e o filme em si”, uma história quase impossível de ser contada sem escapar das armadilhas já citadas.
Tive o privilégio de assistir o filme com minha família há coisa de um mês. A alegria que senti quando Penélope Cruz anunciou o vencedor foi daquelas felicidades invasivas, explosivas, como o grito de “é campeão!” que solto em casa na frente da TV quando meu time vence um grande jogo, um título – daquelas coisas que não se esquece, que ficam registradas na memória para sempre. Ao pensar nesse texto, me deu vontade de “investigar” o motivo de tanta alegria, afora o orgulho por um filme brasileiro vencer pela primeira vez um oscar de melhor filme estrangeiro. Porque ESSE filme em especial, porque nesse momento especial?

Foi quando me dei conta que o título do filme, que se presta a tantas interpretações, uma forma de dizer que “Rubens Paiva ainda está entre nós, nas nossas memórias, que não será esquecido”, uma forma de Eunice ou cada um dos filhos dizer o mesmo grito, “ainda estamos aqui, cada um de nós, vocês mataram nosso marido e pai, mas nós resistimos, vivemos, ainda estamos aqui”, ou, além dessas formas, uma que me tomou pela emoção, confesso, não pela razão, essa metáfora, ela se apropriou de mim…
“Ainda estou aqui!”, posso dizer nos meus 65 anos de vida. O garoto de 19 anos que foi à UNE na Bahia, lutando pela redemocratização do Brasil, ou quando fui às manifestações contra o impeachment de Dilma ou a prisão de Lula, ou os centenas de artigos que escrevi nos últimos vinte e poucos anos, publicados nas redes sociais ou em blogas jornalísticos, sempre essa luta contra o fascismo, as farsas midiáticas, o horror da Lava Jato e depois de seu fruto mais perverso e exacerbado, o bolsonarismo. E haja dores, sofrimentos, lágrimas, decepções, perplexidades, o Brasil não é para amadores….
Me peguei comovido ao sair do cinema, e hoje, nesse início de madrugada com a vitória de “Ainda estou aqui!”, porque esse título, essa mensagem, essa narrativa, esses signos aí representados, no título e no filme, porque tudo isso me vestiu e me veste como uma metáfora, um discurso forte, sublime e humano de ESPERANÇA, de, “não desista, você ainda está aqui”.
Eunice Paiva e sua história são esse exemplo tocante e comovente. Temos um Brasil que se emociona com o filme e torceu por sua vitória, bem como da Fernandinha Torres, magistral em captar o tom perfeito entre a parte dramática da narrativa e as contenções NECESSÁRIAS a tornar sua interpretação e filme grandiosos como são.
“Ainda estou aqui!” – como é bom lembrar disso mais uma vez, como é bom ter esperança mais uma vez, através dessa coisa magnífica, a arte. Como é bom permitir que essa metáfora construída em mim de um modo tão natural, me domine, me abrace e, ciente de que “ainda estou aqui”, eu possa junto aos brasileiros não contaminados pela doença perversa e fanática de toda e qualquer distopia, de todo e qualquer movimento social fascista e desconstrutor de nossas humanidades, lutar contra os que não sentem vergonha de si mesmos ao apoiar o ser asqueroso, capaz de cuspir no busto de Rubens Paiva no dia de sua inauguração no Congresso, pior, na frente de seus familiares.
“Ainda estou aqui”, entre tantos outros méritos, portanto, também traz esse: o de nos lembrar quem somos, porque lutamos, e de como a arte é infinita em suas possibilidades de nos tocar a alma.
Por fim, Parabéns a Fernanda Torres e todo o elenco, pareciam uma orquestra afinada, dirigida por um excepcional maestro. E um parabéns muito especial à Fernanda Montenegro, capaz de, numa cena que mal dura um minuto, deixar claro porque é a nossa dama eterna na arte de representar. O que é aquela cena final, meu Deus???
Foi de lavar a alma!
Parabéns, Walter Salles Júnior e todos os que participaram dessa jornada.
“Ainda estou aqui” nos resgata, pela arte, de nossas humanidades todas, tão agredidas e espezinhadas nesses tempos distópicos de tantas perplexidades perversas.
Nosso muito obrigado!!!
(eduardo ramos)
O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.
“Democracia é coisa frágil. Defendê-la requer um jornalismo corajoso e contundente. Junte-se a nós: www.catarse.me/jornalggn “