Os números das eleições parlamentares da Alemanha confirmam o cenário antevisto pela unanimidade dos analistas, tão claras eram as evidências do crescimento da extrema-direita e do neonazismo, que lá floresceu para incendiar o mundo e construir uma era de horror. Agora, com matizes tirados da modernidade, ressurge ameaçador, empolgando majoritariamente a Europa Ocidental, em crise econômica, política e mesmo de identidade. O neonazismo é uma doença que nem a guerra, nem a fome, nem a barbárie dos campos de concentração conseguiram erradicar. Nascida com a crise de 1929-1930, recrudesce com o esgotamento capitalista e a falência das alternativas até aqui cogitadas.
Lá e cá, sempre que a esquerda, na busca do voto conservador (ou da governança, governabilidade, composição, conciliação, ou disso ou daquilo), abandona seu leito natural e se alia à direita – muitas vezes subsumindo seu discurso –, é esta quem avança eleitoralmente e, principalmente, vence politicamente. Hoje, a direita dirige o discurso planetário e é vitoriosa do ponto de vista ideológico, pois seus valores se fazem presentes em todo o mundo, instalando-se no pensar, no formular e no fazer dos adversários históricos, que assim se transformam em reprodutores inconscientes dessa ideologia.
O capitalismo, além de dominar o aparato militar, avança sobre corações e mentes: o Estado de bem-estar social, promessa da social-democracia do pós-guerra, foi substituído pelo neoliberalismo. O indivíduo toma o lugar da sociedade. Os EUA, em declínio, reivindicam a unipolaridade, e o trumpismo vitorioso é a voz da “nova” ordem mundial: belicismo, intolerância, expansionismo, avanço do sionismo, nacionalismo excludente, racismo desabrido.
A ascensão de Hitler em 1933 foi alimentada pela crise econômica que chegara ao seu clímax em 1930, mas foi facilitada pelo recuo da social-democracia. Doutrinariamente oportunista, essa corrente viu na ascensão do futuro Führer um meio de derrotar seus inimigos figadais: os comunistas. Hitler esmagou a ambos.
O fracasso do governo de centro-esquerda (SPD) semeou o crescimento dos neonazistas nas eleições deste ano, assegurando à AfD seu resultado mais expressivo desde sua fundação, em 2013, e garantindo o retorno da direita (CDU/CSU) ao posto que Angela Merkel controlou durante dezesseis anos.
A direita capitaliza as frustrações populares.
As eleições alemãs expuseram, mais uma vez, o avanço das forças reacionárias caminhando pelo terreno deixado livre pela esquerda tradicional.
Quando um lado recua incondicionalmente e não como condição preparatória para o ataque, esse movimento deixa de ser tático: cada recuo torna-se condicionante do próximo. O outro lado, em contraste, negocia cada recuo seu; recua quando é necessário, taticamente, para evitar ou minimizar perdas – ou ainda para tomar impulso e voltar a avançar.
Quando as tropas russas de Kutouzov, na campanha de 1812, abriram caminho para o ingresso do exército napoleônico, não estavam de fato recuando, mas se preparando para uma ofensiva: a Batalha de Borodino. Derrotados no front de Stalingrado, em 1943, os exércitos nazistas recuavam sob o peso da grande derrota. Não era um recuo tático, desejado como artimanha, mas o fim da linha.
Em 1938, no regresso a Londres após o Acordo de Munique, Neville Chamberlain, primeiro-ministro britânico, declarava que a Europa havia conquistado a paz. Mas os fatos mostrariam que a capitulação do Reino Unido simplesmente oferecia mais tempo ao nazismo para preparar-se para a guerra. Já no ano seguinte, a Alemanha avançava sobre os Sudetos, na então Tchecoslováquia. O que se seguiu é conhecido.
Nossa história também registra uma sucessão de recuos aparentemente táticos que se converteram em derrotas estratégicas. Na contemporaneidade, é exemplar o recuo das forças progressistas em 1961, ao concordarem com a reforma constitucional negociada entre Tancredo Neves e os militares sediciosos, que esvaziava os poderes do presidente da República, quando a nação, de pé e nas ruas, clamava por avanço. Ali, com nosso recuo, começava a construção do golpe de 1964 e o avanço da direita comandado pelas baionetas.
O crescimento da direita, onda que percorre o mundo, é fruto da crise do capitalismo (como nos anos 1920-1940) somada ao desencanto das grandes massas com governos de esquerda e centro-esquerda que falham em resolver seus problemas. O quadro se agrava quando a esquerda abdica da luta concreta.
Nas últimas eleições alemãs, confirmando todos os prognósticos, o fracasso do governo da social-democracia de Scholz foi o outro lado do assustador crescimento da direita, que agora chega também à América do Sul e se instala confortavelmente entre nós, alimentada pelos primeiros passos do trumpismo arrogante no governo do mais poderoso e belicoso império moderno. A direita de Friedrich Merz (CDU/CSU) e Merkel (que governou entre 2005 e 2021) sagrou-se majoritária, com 28,6% dos votos, os quais, somados aos 20,8% conquistados pela direita fascista (AfD), totalizam 49% dos votos e das cadeiras no Parlamento. O nome do novo primeiro-ministro já foi anunciado: Friedrich Merz, líder da CDU.
Se a grande vitória sorriu para a direita, o grande perdedor foi o SPD, partido da social-democracia, até aqui liderado por Olaf Scholz, que obteve apenas 16,4%, uma queda vertiginosa de 50% em relação à última eleição. Outro partido que perdeu substância eleitoral foi o Grüne (Verdes), que mais definha quanto mais se aproxima da direita. Obteve 8,8% dos votos, uma queda de 38% em comparação com os números de 2021. Se somarmos os votos da direita tradicional (CDU/CSU), liderada por Friedrich Merz (28,6%), aos votos dados à extrema-direita neonazista da AfD, liderada por Alice Weidel (20,8%), vemos que 49,2% do eleitorado alemão se alinhou com a direita e extrema-direita nesta eleição. A direita nazista obteve seus maiores ganhos na antiga RDA, e no Oeste da RFA, sua área mais pobre.
Seria bom que a esquerda brasileira se pusesse a pensar sobre esses números.
Entretanto, é preciso registrar que a extrema-direita teve um grande salto: cresceu nada menos que 79,5% no apoio do eleitorado, dobrando sua bancada no Bundestag. E a esquerda? O Die Linke, apesar de possuir, ainda, uma pequena bancada, cresceu 41%. Aliás, nesta eleição, cresceram apenas a extrema-direita (AfD) e a esquerda socialista (o citado Die Linke), ou seja, as forças que não tomaram emprestado ao adversário seus programas.
Entre nós, o crescimento da direita – e, consequentemente, a crise das esquerdas – é uma constante desde julho de 2013. Desde então, a perplexidade domina as reflexões. Em 2022, um grande arco de alianças permitiu, com dificuldade, deter o avanço do neofascismo com a eleição de Lula, mas não ofereceu meios para a construção de uma maioria política. E a intentona de janeiro de 2023 (ainda não totalmente desvelada) demonstra o nível de infiltração do extremismo de direita nas estruturas do Estado, a começar pelas forças armadas.
Nas eleições que garantiram o retorno de Lula à Presidência, o candidato da direita obteve, no segundo turno, 49,1% dos votos. A esquerda foi derrotada na maioria dos governos estaduais que disputou, perdeu nas eleições para a Câmara dos Deputados (80 cadeiras num coletivo de 513) e no Senado conquistou apenas seis das 27 em disputa.
Assim, o governo nasce minoritário e refém de uma aliança parlamentar conservadora, na qual fisiologismo é mato. Esse arranjo instala, sem reforma constitucional e sem consulta à soberania popular, um estranho “presidencialismo”, mais que mitigado, no qual o Congresso controla a governança por meio do controle da elaboração do orçamento da União e da aplicação das verbas públicas (pela qual não tem, contudo, qualquer responsabilidade) por um sistema esdrúxulo de emendas.
Limitado politicamente e condicionado pela maioria conservadora tanto do ponto de vista político quanto programático, o nosso é um governo ainda – ainda! – indefinido. Não podendo ser um projeto de centro-esquerda, trata-se de um governo por ser – e cada vez mais próximo de um pleito decisivo para os rumos do país.
As pesquisas de opinião pública registram a desaprovação do governo, a queda da popularidade de Lula e a ascendência do pensamento de direita, que já se fazia sentir desde as eleições de 2018. Essas mesmas pesquisas (vide 163ª Pesquisa CNT de Opinião, 24/02/2025) mostram que 31,8% do eleitorado se declara de direita, 18,8% de esquerda e 16,3% “de centro, centro-direita e centro-esquerda”. Agora, são os números que expõem a disputa que não conseguimos enfrentar: a batalha ideológica, a construção de um pensamento próprio e a defesa de nossas teses.
Uma das formas de ajudar o governo a sair das cordas é a esquerda retomar o proselitismo e assumir a ação política. Uma das formas de o governo ajudar a esquerda e o movimento democrático-progressista de um modo geral é abandonar o taticismo estéril, o enredamento numa governabilidade duvidosa, e construir um projeto estratégico claro. A experiência mostra que jamais avançamos – e jamais avançaremos – governados no pensamento e na ação por um projeto de conciliação. Este tem sido o principal instrumento ideológico da classe dominante para a conservação do statu quo, do qual depende sua sobrevivência. Mas a esquerda deve ser, sempre, movimento, ação e mudança.
Há sempre uma esperança. Desta vez, precisamos olhar para o fracasso da centro-esquerda alemã, considerar a ascensão (embora severina) da esquerda socialista (buscando entendê-la), arregaçar as mangas e focar no enfrentamento à direita, com discurso e organização adequados.
Temporão tem razão
De tão anunciada, a demissão da ministra Nísia Trindade chegou sem surpresa. É lamentável, porém, que o governo, em meio a uma crise política que acentua dificuldades funcionais de origem – tanto mais graves quanto mais nos aproximamos de um ano eleitoral crucial –, resolva se desfazer de uma profissional honrada e competente, e o faça da forma a mais deselegante: a velha “fritura”, nada republicana e nada leal.
A fritura de Nísia durou o tempo de sua gestão à frente da Pasta, iniciada pelo chamado “Centrão”, que vê os recursos públicos como presa, e o Ministério como uma mina de ouro. É de lamentar mais esse equívoco, pois torcemos e trabalhamos para que o governo – necessidade urgente da democracia – se reencontre com seus objetivos e descubra, a tempo de se salvar, o destino que precisa perseguir.
Com essa demissão, agravada em seu aspecto negativo pela forma como foi levada a cabo, o governo inicia mal a reforma ministerial anunciada para dar mais eficiência à administração e facilitar as negociações com o Congresso – seu consórcio nada republicano, onde é minoria mínima, conformada com seus limites.
A forma engendrada pelo Planalto para despachar a honrada pesquisadora não é apenas cruel, pois é, antes de tudo – repito – antirrepublicana. Ademais, representa mais um recuo do governo, e deve estar sendo festejada pelo Centrão, que sempre desejou ver a ministra pelas costas. Ainda assim, o cargo retorna ao guarda-chuva do PT e passa a ser operado por um quadro experiente, inclusive no relacionamento com a pequena política: um ex-parlamentar e ex-ministro da Saúde que, até ontem, era o responsável pelas difíceis (para dizer o mínimo) relações do governo com o Congresso e os partidos.
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Horror cotidiano – Igor Melo, estudante de jornalismo e funcionário de uma boate, voltava para casa de Moto Uber, no bairro da Penha (Rio de Janeiro), quando foi alvejado nas costas por um policial militar que o tomou por um ladrão – e julgou poder abatê-lo à queima-roupa, prendendo o condutor. O leitor já adivinhou a cor da pele de Igor, que segue internado, tendo perdido um rim. Enquanto a democracia não valer para todos, continuará tendo bases fragilíssimas.
Mordidas do atraso – Recentemente, os gigantes do agro – nem todos adimplentes com a União – chiaram, e, como seu chiado se faz ouvir, em Brasília, mais alto que o de grande parte da cidadania, rapidamente obtiveram do governo federal a bagatela de R$ 4 bilhões, a título de “adiantamento” do generosíssimo Plano Safra 2024/25. Não é pouca coisa: o agrado equivale à quase totalidade do valor alocado para o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), uma das políticas públicas mais importantes do país; supera o destinado ao Farmácia Popular e equivale a 8 vezes o que o SUS teve de desembolsar em demandas judiciais em 2023.
Que país queremos? – “Gastos com PPPs viram prioritários em Orçamento do governo federal – Dispositivo na LDO dá preferência a despesas dos ministérios com parcerias, que ficam menos sujeitas a contingenciamentos” (Folha de S. Paulo, 27/02/2025). A pergunta que não pode calar é: por quê? A que projeto de país atende a decomposição do Estado, levada a cabo por FHC, Temer e Bolsonaro?
(Com a colaboração de Pedro Amaral)