“O líder será eleito porque tentaram matá-lo.” Um comentário aparentemente banal como esse, registrado em um Café de Manhattan, carrega um emaranhado de reflexões sobre o poder e a morte. Quando Freud se propôs a compreender os motores do fenômeno das massas, comentando o livro de Le Bon (Psicologia das multidões, 1895), ele constatou que há entre as massas e o líder uma relação de identificação. A leitura de Psicologia massas e análise do eu, de 1921, sugeriria que um atentado mal sucedido despertaria nas massas os sentimentos de comiseração e culpa, de identificação com o líder-vítima-pai e seu sofrimento, e, numa etapa seguinte, o de empatia com a superação do líder, seu reerguer-se com vigor para dar continuidade ao seu projeto de poder; as massas estão sedentas por se submeterem.

Essa interpretação pode ser iluminadora, mas passa ao largo de um caráter central do fenômeno do poder: a sobrevivência. Elias Canetti, prêmio Nobel, dos grandes pensadores do século XX, viveu os fenômenos de massa das décadas 1910 a 1930 e recusou as interpretações de Freud, levando mais de trinta anos para escrever sua resposta, o livro Massa e Poder, publicado em 1960.

O líder é antes de tudo um sobrevivente. Sua força é sempre medida pela capacidade de matar ou acumular mortos à sua volta. A paranoia, doença do poder, cerca o poderoso, e um atentado frustrado reaviva o momento do poder, o momento da sobrevivência.

“A situação na qual o herói se encontra após ter vencido o perigo é aquela do sobrevivente. O inimigo queria-lhe a vida, assim como ele a do inimigo. Enfrentaram-se com esse objetivo declarado e inalterável. O inimigo foi morto. Já ao herói, nada aconteceu durante o combate. Impregnado do fato monstruoso da sua sobrevivência, ele se lança ao próximo combate. Nenhum mal se lhe pôde ou poderá fazer. De vitória em vitória, de um inimigo morto a outro, ele vai se sentindo mais seguro: sua invulnerabilidade aumenta – uma armadura cada vez melhor.” (Elias Canetti, Massa e Poder, p. 286)

As imagens dos tiros contra Trump são figurações do poder, provas definitivas de seu poder: mataram por ele (Thomas Crook foi imediatamente morto), deixaram-se matar por ele (enquanto Trump se levanta, os agentes cercam-no no púlpito) e morreram por ele (vítimas civis morreram com as balas que lhe eram destinadas). O fenômeno das massas foi e continua sendo a expressão de reações ante o medo da morte; e porque é o invulnerável Trump que tem a prerrogativa de decretá-la, por isso é venerado.

Se as imagens dessa expressão arcaica das organizações humanas são encenações ou não, é inegável que seu efeito é o de incremento de paranoia, de obediência e de devoção pela admirável sobrevivência do líder.

Tiago de Castilho Soares é Doutor em Sociologia Política/UFSC, autor de “Désceo Machado nas chanchadas do CBN Brasil” (2021) e “Flor de Mossa – Reflexões numismáticas e Coleção de citações” (2024).

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Última Atualização: 15/07/2024