Luis Antonio da Silva Braga é um homem cristalizado pela imagem tranquila de seu rosto branco, com sobrancelhas arqueadas nas pontas, nariz estreito e um cabelo espetado à moda dos anos 1990. Ao pescoço, uma corrente de ouro entrega o estereótipo clássico do subúrbio carioca: Luiz ou Zinho, como é conhecido nas terras fluminenses, é um miliciano — uma tipologia para membros de grupos armados paramilitares que gerenciam mercados lícitos e ilícitos por meio da força.

Ele carrega um histórico de conquistas. É o último líder vivo da família Braga de milicianos e considerado possivelmente o miliciano mais poderoso de toda Grande Rio de Janeiro, o líder do Bonde do Zinho, que domina Santa Cruz, Campo Grande e Paciência, os bairros da Zona Oeste onde moram 1,2 milhão de pessoas, segundo dados recentes do IBGE de 2022, ou seja, a maior região eleitoral e populacional da capital fluminense. O Bonde do Zinho é a maior milícia do RJ. Além de eliminar quase completamente a concorrência miliciana da região, Zinho foi também o primeiro a firmar oficialmente um acordo com a facção Comando Vermelho (CV), a mais antiga do Brasil.

Tal aliança serviu, até meados de 2024, para tentar impedir os avanços de outras milícias e da facção Terceiro Comando Puro (TCP), único grupo de traficantes que ainda rivaliza com o CV no Rio de Janeiro e que está se expandindo. “Já há relatos do TCP atuando em Minas Gerais, na Bahia, em Pernambuco, na Paraíba, ou seja, é uma facção que está se nacionalizando também”, diz o coordenador do Grupo de Estudos de Novos Ilegalismos (GENI/UFF), Daniel Hirata.

Mas depois que Zinho se entregou na sede da Polícia Federal no Rio de Janeiro, na véspera do Natal de 2023, os grupos criminosos quebraram sua aliança. Ele estava fragilizado pelas inimizades que coletou ao longo de sua carreira como sucessor do seu irmão Ecko, alcunha de Wellington da Silva Braga, morto em 2021 e também pela morte de seu primo Matheus da Silva Rezende, o Teteu, em outubro de 2023. Teteu aparece em algumas notícias como o mediador entre o Comando Vermelho e o imperador da milícia.

De uma forma ou de outra, o fim da aliança entre o Bonde do Zinho e o CV iniciou uma guerra por poder nos bairros de Santa Cruz, Campo Grande e Paciência. As disputas entre os grupos criminosos, pelo controle dos territórios, explicam o aumento de tiroteios e homicídios na região, violências que os moradores sofrem diariamente, mas muitas vezes sem entender o que está em jogo na sua própria região.

A Agência Pública fez um levantamento na base de dados do Instituto Fogo Cruzado, que monitora violência armada na América Latina, com um recorte que começa em 2020, quando Wellington da Silva Braga, o Ecko, o irmão mais velho de Zinho, ainda era o chefe da milícia, e termina em 2024, já com Zinho preso e a facção com o Comando Vermelho tomando novas proporções no território. Em 2020 e 2021, esses bairros tiveram baixos índices de homicídios e tentativas de homicídio, com sete e cinco casos respectivamente.

Os números sobem entre janeiro de 2022 e dezembro de 2023, com 19 homicídios no total. É nessa mesma época que começam as disputas territoriais entre o CV e o Bonde do Zinho Em 2024, após a prisão de Zinho, foram registrados 21 casos de tentativa de homicídio e homicídio. No fim de 2024 também acontecem os primeiros atentados a civis na região: foram três casos naquele ano e mais seis já até março de 2025. Todos ocorreram em Santa Cruz, onde, no dia 4 de fevereiro, sete pessoas foram baleadas por um carro que passava próximo à estação de BRT.

“O assassinato de Wellington da Silva Braga, o Ecko, em junho de 2021, gerou um vácuo de poder que fragmentou significativamente a estrutura das milícias na Zona Oeste e Baixada Fluminense. A subsequente disputa entre Luiz Antônio da Silva Braga, o Zinho, irmão de Ecko, e Danilo Dias Lima, o Tandera, exemplifica como essas rupturas de liderança intensificaram a violência armada na região”, diz.

A diretora do Fogo Cruzado explica que esse racha evidencia algo importante: a captura ou eliminação de lideranças, embora gere manchetes, não desestabiliza estruturas de poder que se consolidaram ao longo de três décadas na região. “Cai uma liderança, mas permanece toda a estrutura política e econômica que sustenta as atividades criminosas e sua alta lucratividade, ao mesmo tempo permitindo e estimulando que outra liderança assuma a posição. O efeito final, é justamente o oposto daquele alardeado pelas autoridades: frequentemente provoca reorganizações violentas, como vemos na Zona Oeste, onde as disputas por territórios e a fragmentação das milícias aumentam a insegurança para a população local”.

Antes do Bonde do Zinho

Antes de ser uma região de intensa disputa Santa Cruz, Campo Grande e Paciência estavam na mão de um único grupo de milicianos: a Liga da Justiça. Estruturada na virada de 1990 para 2000, o grupo tinha como fundadores os irmãos Natalino Guimarães e Jerônimo Guimarães Filho, policiais civis da década de 1970, que começaram prometendo segurança para favelas e áreas empobrecidas desses bairros, mas acabaram rapidamente consolidando um grupo armado que controlava os mercados de transporte automotivo, venda de gás e internet etc.

Com curral eleitoral formado nas regiões que dominavam, os irmãos conseguiram se eleger para cargos públicos. Jerônimo se tornou vereador pelo PMDB em 2000, com 20.560 votos, se reelegendo com 33.737 votos em 2004; já o irmão alçou a deputado estadual pelo DEM em 2006, com 49.505 votos, “dos quais 27.474 votos vieram de apenas cinco Zonas Eleitorais”, como consta na CPI das Milícias, presidida pelo então deputado do PSOL Marcelo Freixo, em 2008.

Deputado Marcelo Freixo presidiu a CPI que apurou a atuação das milícias no Rio de Janeiro

Nessa época, as milícias cariocas tinham um padrão de funcionamento similar. A professora de sociologia e pesquisadora da UFF Carolina Grillo explica que era conhecida a ligação de agentes públicos com esses grupos que praticavam a extorsão por meio de cobrança de taxas de proteção aos moradores e comerciantes, e a questão do controle dos mercados e serviços essenciais básicos nessas regiões. “O fato de que esses grupos passam a controlar o acesso à TV a cabo, o chamado Gatonet na época, acesso a gás de cozinha, água, luz, cobrando taxas de todos os serviços essenciais e regulando o transporte alternativo também.”

Até os anos 2010, segundo relatos na CPI, a Liga da Justiça era a milícia com maior lucro mensal, cerca de R$2 milhões, (aproximadamente 6 milhões de reais em valores atualizados). Tamanha era a relevância do grupo, que eles foram alvo da primeira denúncia da história do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado do Ministério Público do Rio de Janeiro (GAECO/MPRJ), datada de 2008. Nela, consta que milicianos da Liga da Justiça vinham tentando forçar um revendedor de gás a parar de trabalhar com a tradicional Liquigás para distribuir o material da companhia deles, a Adegás de Inhoaíba Comércio de Gás Ltda, que ficava na Estrada de Inhoaíba, na Zona Oeste da capital.

Depois de assistir a uma notícia sobre a prisão de alguns membros da milícia, o trabalhador voltou atrás e informou que se manteria no serviço de sempre. Essa notícia não foi bem recebida. Os milicianos pararam o revendedor nos arredores do Viaduto de Paciência, em Campo Grande, e o constrangeram, prometendo que sofreria na mão de um policial militar do Batalhão de Operações Especiais (BOPE), caso não voltasse a distribuir o gás deles.

Jerominho e Natalino dividiam a chefia da Liga da Justiça com Ricardo Teixeira Cruz, o Batman, um ex-policial militar expulso em 1992, quando atuava no Batalhão de Choque. Em 2007, o primeiro dos irmãos foi preso; em 2008, Natalino também; e em 2009, o policial com apelido de herói foi o último da tríade a ser detido. Novas lideranças se faziam necessárias no grupo; e assim os ex -policiais militares Toni Ângelo e Marcos José de Lima, o Gão, saíram do segundo escalão de comando e se firmaram como os líderes da Liga da Justiça, naquela que seria a última fase da milícia com agentes públicos no comando.

Com Toni à frente, a milícia seguia igualmente violenta. Em janeiro de 2011, soldados da Liga da Justiça mataram Flávio Luiz Machareth Cardoso, vulgo “Binho”, a mando de Toni, segundo denúncia do GAECO. O motivo seria que a vítima, outrora membro da milícia, comprara um carro que teria sido roubado de Toni, sem tempo hábil de devolvê-lo como ordenado.

A história de como a família de Zinho entrou para a milícia muda a depender da fonte. Normalmente, a imprensa cita o irmão mais velho, Carlos da Silva Braga, o Carlinhos Três Pontes, como um traficante de Santa Cruz que teria pulado para a milícia em meados de 2010 e galgado ao topo da estrutura por cair nas graças de Toni.

Um ex-miliciano de Santa Cruz que topou falar com a Pública sob anonimato afirma que “Carlinhos e seus irmãos não eram envolvidos com o tráfico, apesar da passagem pela polícia”. Segundo ele, o rapaz teria entrado para a milícia após cansar da influência de traficantes em Três Pontes, em Paciência, na Zona Oeste. Filho de um representante da associação de moradores local, Carlinhos se tornou um miliciano para ‘limpar o bairro’”. Rapidamente, ele subiu ao cargo de chefe do operacional da Liga da Justiça, cuidando dos soldados do grupo.

“Quando o Tony Ângelo ainda estava à frente da milícia e a base era em Cosmos [bairro contíguo a Santa Cruz], mais especificamente na Vila do Céu, 90% dos integrantes eram das forças de segurança e os outros 10% não eram. E quem ficava encarregado das missões de confrontos eram os 10% que não eram policiais ou ex-policiais. E o Carlinhos Três Pontes era quem comandava esses 10%”, explica.

Toni Angelo, preso em 2014, foi substituído por Gão, que usou de Carlinhos, Mão de Seda e outros milicianos como Ricardinho Dentuço como gerentes e possíveis sucessores. Gão também foi preso em 2014, abrindo espaço para uma possível disputa interna pela chefia da milícia entre Dentuço e Carlinhos. Os subalternos da Liga da Justiça desconfiavam de Dentuço, achando que ele teria entregado Gão à polícia em nome de Batman e Carlinhos alimentava essa indigestão por acreditar que Dentuço fazia um investimento insuficiente das finanças do grupo em armamento e força bélica — as áreas de comando de Carlinhos.

Dentuço foi sequestrado e morto ainda naquele ano, em um caso ainda não elucidado, mas todos os indícios apontam que o crime tenha sido de autoria do grupo de Carlinhos, como consta em reportagens da época. O ex-miliciano conta que “todos [insatisfeitos com Dentuço] concordaram em fazer algo. Então, nesse momento todos começaram a ficar juntos. Conseguiram uma informação de que Ricardinho Dentuço estava em um salão de festas com poucos seguranças na comunidade do Barbante, em Campo Grande, e foram lá e o executaram e levaram seu corpo”, explica o ex-miliciano. Com isso Carlinhos Três Pontes, apoiado por Toni, conseguiu se estabelecer de vez como chefe da milícia que foi deixando o nome de Liga da Justiça como marca do passado.

“A partir desse dia nasce a milícia da família Braga que você vai ver hoje”, conclui. Segundo a fonte, Carlinhos era considerado o mais mão de ferro dos três irmãos Braga. Rígido com gastos e violência, equilibrava o temperamento paternal com uma mão mais solta para as finanças de diferentes setores da milícia e para os bolsos de seus subalternos. Ecko e Zinho, sempre próximos ao mais velho, dividiram funções diferentes. O primeiro, tentando chamar a atenção de Carlinhos a qualquer custo, tomava a frente das guerras contra outros grupos armados; já Zinho cuidava da aquisição de terrenos e investimento do dinheiro da família. “Zinho era aficionado por dinheiro e por isso Carlinhos não botava ele na discussão da sucessão em caso de sua morte”, conta o ex-miliciano.

De acordo com ele, quando Carlinhos foi assassinado num confronto com a Polícia Civil em abril de 2017, pensou-se inicialmente que o sucessor seria o miliciano Sombra, nome do ex-policial militar Wenderson de Oliveira Rocha, braço direito do miliciano. Mas ele morreu dois meses após o ex-chefe. Foi nesse contexto que Ecko assumiu o papel de dono da milícia. Ele se mostrava uma liderança “tranquila” e que dava autonomia aos líderes locais, diz o ex-miliciano.

A família Braga organizava a milícia a partir de um dono, que é o responsável por tudo, abaixo dele estavam os chefes de morros, aqueles que gerenciam um bairro ou uma favela inteira, e abaixo destes os gerentes de setores (finanças, armamento etc.) e seus subalternos. Isso construía um esquema mais sustentável do que a maioria das milícias, que costumam operar por meio de uma hierarquia de funções, na qual a cúpula da milícia tem uma pessoa responsável pelas armas, outra pela agiotagem, outra pelo financeiro e assim segue, mantendo os territórios com um único chefe.

Esse modelo ultrapassado de gestão miliciana propiciava maiores chances de golpes internos, pois havia mais concentração de funções chave na mão de líderes que poderiam trair uns aos outros. A forma atual distribui o poder de modo a dificultar golpes O MP já chamou isso de franquias do crime.

Xadrez miliciano

A atual cisão e tensão na região de Santa Cruz e adjacências não pode ser explicada sem outro elemento desse xadrez miliciano: Tandera, apelido de Danilo Dias Lima. Apesar da sua área de controle ser majoritariamente a Baixada Fluminense, existem pontos de intersecção entre municípios da Baixada e os bairros da Zona Oeste do Rio. Um deles é Santa Cruz, no sub-bairro de Jesuítas, que fica próximo ao KM 32, em Nova Iguaçu, na Baixada.

Danilo Tandera é cria desse local (tanto que já foi conhecido como Danilo do Jesuítas) e, após uma rápida passagem pelo tráfico, iniciou sua carreira na milícia do Vaguinho, no Guandu, que orbitava a milícia de Carlinhos e depois do Ecko. Após Milicianos do KM32 (Nova Iguaçu) matarem um policial do BOPE em Campo Grande, Danilo aproveitou a fuga e entrou, com aval de Carlinhos, na Baixada. Tandera foi preso pela primeira vez em setembro de 2013, sendo liberado alguns meses depois. Nesse meio tempo, porém, um amigo de infância, Bibi, apelido de Vladimir Melgaço, começou a galgar fama no vácuo deixado por Tandera.

Em 2017, porém, Bibi foi preso e, dentro da cadeia, teria se sentido desassistido pelo colega e começou a se aproximar de Carlinhos Três Pontes, então chefe da milícia. Enquanto isso, Tandera começou a se unir com milicianos da baixada como Batata e Varão, iniciando o processo de desavenças que levariam ao racha e a cisão definitiva do xadrez miliciano na Zona Oeste e baixada.

Após a morte de Carlos e a ascensão de Ecko o ânimos entre Tandera e o resto do grupo continuaram altos, chegando ao ápice após uma série de operações da polícia civil, em outubro de 2020 mataram cerca de 17 milicianos. O irmão de Tandera, também miliciano, acusou Ecko de ter armado uma emboscada para ambos. A situação veio a se resolver sem necessidade de mais troca de tiros e atritos fratricidas.

Porém, a morte de Ecko em 2021 trouxe à tona uma tensão indigesta: Danilo, que gerenciava os negócios da Baixada para a milícia dos Braga, queria agora ser o número um de todo o grupo, querendo tomar inclusive a Zona Oeste para si. Sem aliados em Santa Cruz, porém, foi obrigado a aceitar que Zinho, o irmão ganancioso, tomaria o poder. Ultrajado com a ousadia de Tandera, Zinho oficializou uma guerra contra este.

A matança perdurou por quase dois anos na divisa entre a Zona Oeste e a Baixada Fluminense. Uma quase paz se fez quando Zinho, já tendo matado não apenas homens de Tandera, mas seus também, por paranoia e suspeita, pediu que o rival devolvesse os fuzis da época de Ecko. O acordo não foi fechado e o conflito perdurou até meados de 2023, arrefecendo já em 2022, após a morte de Dilsinho, o irmão de Tandera.

Um parente de Tandera que preferiu não se identificar, revela que nem mesmo os familiares sabem onde Danilo foi parar. “Alguns acham que ele morreu, outros só que fugiu, mas nunca mais ouvimos falar dele”, diz. A saída de Tandera do caminho de Zinho significou abrandou a guerra. A milícia de Tandera passou ao seu braço direito, o Juninho Varão, apelido de Warley Paul Mansur de Souza, e ela manteve em parte os conflitos contra o sucessor de Ecko, sem, contudo, persistir no mesmo ritmo de matança. Warley foi preso no início de março.

O maior problema de Zinho, portanto, vinha a se tornar o Comando Vermelho após a cisão da aliança. A paranoia constante de alguém que nutriu muitos inimigos dentro e fora do círculo íntimo faz com que a atual gestão da milícia dos Braga invista na política da bala a qualquer suspeita sobre qualquer um, inclusive civis que nada tem a ver com tráfico, milícia e polícia. Mesmo preso, Zinho segue sendo o líder do grupo criminoso, embora tenha designado Paulo David Guimarães Ferraz Silva, conhecido como Naval, para atuar na gerência geral do grupo durante sua atual ausência.

Para quem estuda segurança pública, o desafio que esse tipo de dinâmica do crime cria é estrutural e demanda um enfrentamento que vá além de operações policiais espetaculares e mal planejadas. “Requer a desarticulação efetiva das redes econômicas que sustentam esses grupos e um enfrentamento à corrupção de agentes públicos”, comenta Maria Isabel Couto, diretora de Dados e Transparência do Instituto Fogo Cruzado. “Enquanto o poder público privilegiar confrontos armados que ora afetam um grupo, ora afetam outro, continuaremos observando essa oscilação onde a violência apenas muda de forma, sem nunca diminuir de intensidade.”

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Last Update: 24/04/2025