Comissão debate repressão política no campo durante a ditadura e cobra revisão de números oficiais de vítimas

Deputados Reimont e Airton Faleiro, com representantes das entidades camponesas durante reunião na CDHMIR. Foto: Gabriel Paiva

A Comissão de Direitos Humanos, Minorias e Igualdade Racial da Câmara dos Deputados promoveu, nesta terça-feira (1º/7), uma audiência pública sobre a repressão a camponeses durante a ditadura militar (1964–1985). O debate, solicitado pelo deputado Reimont (PT-RJ), presidente da Comissão, criticou a subnotificação de mortes e desaparecimentos pela Comissão Nacional da Verdade (CNV) e pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos.

A reunião contou ainda com emocionantes e fortes relatos dos filhos dos desaparecidos e mortos pela ditadura militar. Parlamentares também criticaram a continuidade da violência rural e a falta de reconhecimento estatal das vítimas, defendendo memória, justiça e reparação.

Reimont destacou a responsabilidade do Estado nas violências sofridas pelos camponeses: “Nós sabemos que a atrocidade no campo tem a responsabilidade estatal. É um crime de Estado. A reparação é impossível de se dar, mas a justiça precisa ser feita. Se o Estado não deu condições de cuidar das pessoas para que elas não fossem assassinadas, tem a obrigação de fazer a reparação possível, inclusive financeira”, afirmou.

Subnotificação

A deputada Natália Bonavides (PT-RN) denunciou os critérios restritivos que limitaram o reconhecimento oficial das vítimas. “O dado oficial diz que o Brasil só teve 439 vítimas, mas estima-se que tenham sido mais de 10 mil. Esse apagamento veio de critérios conservadores que excluíram indígenas, camponeses e lutadores populares”. Ela citou levantamentos extraoficiais que apontam cerca de 8 mil indígenas e 1,6 mil camponeses assassinados.

Bonavides anunciou que a Comissão de Mortos e Desaparecidos lançará editais para contratação de consultores especializados em vítimas do campo. “É uma janela histórica para corrigir essa invisibilidade. Se hoje há essa oportunidade, é pela luta das famílias, que nunca deixaram o tema cair no esquecimento”. A iniciativa busca revisar os números oficiais e ampliar o acesso a direitos como memória, verdade e reparação.

Violência sem fim

O deputado Airton Faleiro (PT-PA) observou que a violência no campo não cessou com o fim da ditadura. “Não houve diferença entre o período da ditadura e a Nova República em relação aos assassinatos. Muitos companheiros foram mortos por quem tinha ganância pela terra e pelo Estado, que dava suporte a essas ações. O Brasil não resolveu seu principal problema: a concentração de terras”.

Faleiro lembrou que as mortes eram planejadas para intimidar a organização sindical. “Eles matavam para criar medo e dizer: ‘Não se metam a se organizar’. Mas os pais dessas famílias não foram bandidos – foram heróis. Alguém precisou doar a vida para que hoje a gente possa gritar: ‘Estamos aqui’”.

Assassinatos continuam

O deputado Tadeu Veneri (PT-PR) alertou que a violência rural persiste, inclusive com discursos que a justificam. “Mesmo sob um regime democrático, os assassinatos no campo continuam. E pior: há deputados que fazem apologia ao extermínio de quem luta por terra. Esquecer é punir as vítimas duas vezes: pelo crime e pelo apagamento”.

Veneri propôs memoriais públicos, inspirados em iniciativas na Argentina e no Chile. “Precisamos plantar árvores com os nomes dos mortos, como ‘árvores da vida’, para que não caiam no esquecimento”. Ao citar Gonzaguinha, lembrou: “Lutar por direitos era um ‘defeito’ que matava. Mas essas histórias um dia a História contará”.

Estado precisa reparar

A deputada Erika Kokay (PT-DF) vinculou a repressão no campo à lógica latifundiária e ao racismo estrutural. “A disputa por terra gerou um genocídio indígena e a morte de camponeses. Enquanto alguns veem a terra como patrimônio privado, nós pertencemos a ela. Essa mentalidade alimenta a violência até hoje”.

Kokay defendeu uma Comissão da Verdade específica para o campo. “Muitas mortes foram invisibilizadas. O Estado, por ação ou cumplicidade, é responsável. Precisamos de verdade, justiça e reparação – inclusive financeira – para essas famílias”.

Exclusão

O professor, médico e ex-deputado Gilney Viana criticou a exclusão de camponeses, indígenas e lideranças rurais nos registros oficiais da Comissão Nacional da Verdade (CNV) e da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos.

Viana apresentou dados que mostram 2.068 camponeses e aliados mortos entre 1964 e 1988, período abrangido pela CNV. Desses, apenas 45 tiveram suas mortes reconhecidas como crimes de Estado. “Se a Comissão Nacional da Verdade observou esse período, por que só incluiu 45 camponeses? Reconheceram 28 presidentes de sindicatos? Não. Só quatro. É uma exclusão histórica”.

Ele destacou a desproporção no tratamento de vítimas urbanas e rurais. “Na cidade, organizávamos greves e protestos; no campo, era uma guerra. Enquanto Lamarca e Marighela foram reconhecidos, líderes como Canuto e Expedito foram ignorados. Por que os filhos de Lamarca têm direito à reparação, e os do Gringo [camponês assassinado], não?”

Viana exibiu gráficos mostrando que a violência no campo aumentou nos anos 1980, durante o governo Figueiredo e a chamada “Nova República”. “O auge dos assassinatos foi entre 1979 e 1988, justamente quando a ditadura fingia abrandar. O Pará e a Amazônia concentraram os crimes, fruto de uma política deliberada de colonização e grilagem”.

Justiça e reparação

O ex-deputado exigiu revisão dos critérios das comissões e reparação material às famílias. “A exclusão tem que ser reparada na memória e financeiramente. Queremos que a Comissão de Mortos e Desaparecidos examine casos como o do Canuto e do Gringo. Se fizeram exceção para JK, por que não para camponeses?”

Ele também criticou a Comissão de Anistia. “Aceitaram o filho do Lamarca, mas negaram direitos aos filhos de líderes rurais. Isso é discriminação. Não podemos aceitar que 434 vítimas [número oficial da ditadura] sejam consideradas ‘suficientes’”.

Viana pediu apoio para pressionar o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. “Não estamos aqui para condenar pessoas, mas para exigir justiça. A verdade histórica não está sendo contada – é muito pior do que dizem”.

Segundo dados apresentados por Gilney Viana são 23,5 mil camponeses e aliados assassinados até hoje (incluindo pós-ditadura).

 

Lorena Vale

 

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