Em 3 de julho, o presidente Lula anunciou 400 bilhões de reais para o Plano Safra, maior pacote de apoio aos produtores rurais da história do País, e declarou: “Vou ficar feliz se eu puder comprar carne sem imposto. Eu, que prometi durante a campanha que o povo ia voltar a comer picanha e a tomar cerveja”. Era véspera da apresentação, na Câmara dos Deputados, da proposta de regulamentação da reforma tributária aprovada em dezembro de 2023 e que alterou a cobrança de impostos sobre o consumo. Mais tarde, naquele dia, o comandante da Casa, Arthur Lira, defendia o contrário. “Nunca houve proteína na cesta básica”, disse a jornalistas. Isentar a carne “será um preço pesado demais para os brasileiros”. O relatório inicial manteve a taxação, mas o placar final do jogo realizado na quarta-feira 10 foi Lula 1 x 0 Lira. Os tributos sobre o produto foram zerados.

A votação do relatório significou, no capítulo “carnes”, uma aliança improvável entre Lula e o agronegócio. O setor é, em sua maioria, contra o governo. Um de seus principais porta-vozes, João Martins, líder da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil, a CNA, boicotou o evento do Plano Safra e se recusa a falar com o presidente. A bancada ruralista era a favor da desoneração. O povo também: 84%, conforme pesquisa Genial/Quaest do dia da votação. Lira pensava o contrário, não por capricho. Queria evitar que caísse nas costas da Câmara o fardo de subir de 26,5% para 27% a alíquota do IVA, imposto que substituirá alguns federais, o ICMS estadual e o ISS municipal.

Essa alíquota é a soma da fatia federal (CBS) e da fatia estadual e municipal (IBS) do Imposto Sobre Valor Agregado criado pela reforma tributária, que também pariu um Imposto Seletivo aplicado em produtos considerados nocivos à saúde ou ao meio ambiente. As bebidas alcoólicas integram esse grupo. Dessa forma, Lula ganhou na “picanha”, mas perdeu na “cerveja”. O sindicato nacional dos fabricantes antevê custos maiores com o IS, ou seja, um presumível aumento de preços, exatamente o espírito do tributo.

Além de bebidas, a lista incluía fumo, veículos, barcos, aviões, refrigerantes e minério de ferro. Os deputados fizeram um único acréscimo: apostas. “Achamos que jogos de azar são prejudiciais à saúde”, afirmara Hildo Rocha, do MDB do Maranhão, em 4 de julho, na apresentação do primeiro relatório recém-aprovado. Baita hipocrisia: em fevereiro de 2022, Rocha havia votado a favor de liberar os jogos de azar, como cassinos.

O IS, cuja alíquota será definida em outra lei, deixou de fora o maior risco à saúde, pois é ameaça à vida em si: armas. Lira e seus comandados não quiseram comprar briga com a Bancada da Bala, para alegria do bolsonarismo. Aliás, a desoneração das carnes resultou de uma votação específica (477 votos a 3) proposta pelo PL, partido do acusado pela Polícia Federal de meter a mão em joias do Estado. O PSOL, berço da ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, também propôs uma votação específica para sobretaxar armas e perdeu (316 votos a 155).

Um governista de esquerda, o petista Reginaldo Lopes, assinou como autor o relatório final da regulamentação da reforma tributária. Embora o objetivo seja simplificar a legislação e facilitar a vida das empresas ao eliminar uma miríade de normas diferentes, o mineiro enfatiza traços de justiça tributária na lei aprovada na quarta-feira 10. Não só carnes, mas vários itens da cesta básica ou terão imposto zero ou alíquota reduzida (de 10%, não de 26,5%). Nos cálculos da Fazenda, a tributação geral da cesta básica, hoje de 17%, cairá para 13%. Falta saber quanto, em dinheiro, isso representa.

Remédios ou serão isentos ou pagarão alíquota menor com o surgimento do IVA. No dia da votação na Câmara, a ministra da Saúde, Nísia Trindade, anunciou a ampliação da lista de medicamentos de distribuição gratuita em farmácias populares. Entraram dez novos remédios (para colesterol alto, rinite, glaucoma e Parkinson, por exemplo). Os deputados também isentaram os absorventes femininos e criaram a figura do “nanoempreendedor”, decisões que buscam limpar a barra da Câmara perante as mulheres após o desgaste da tentativa de aprovação de uma lei que iguala as penas de quem aborta e de quem comete homicídio.

Outro traço de justiça tributária na lei aprovada é o cashback, dispositivo que constava da proposta original do governo. Famílias inscritas no cadastro dos programas sociais do governo, o CadÚnico, e com renda per capita de até meio salário mínimo terão o direito de receber de volta parte do que pagam de imposto nas compras em geral e em contas de luz, água e esgoto. Serão 73 milhões de beneficiários, contabiliza Lopes. Uma reforma “histórica”, segundo ele, que colocará o Brasil como “um dos cinco melhores sistemas tributários do mundo”.

Falemos, no entanto, do lado antipático da história. O que foi aprovado pelos deputados não vai virar realidade tão cedo. Cashback, desoneração da cesta básica, imposto seletivo e fatia federal do IVA entram em vigor em 2027. A fatia estadual e regional do IVA, em 2029, e de forma escalonada até 2033. Eis por que o impacto positivo da reforma no conjunto da economia levará cerca de dez anos para ser sentido, de acordo com Bernard Appy, principal secretário de Haddad para questões tributárias. Um impacto, diz, capaz de aumentar o PIB potencial do Brasil em 10 pontos porcentuais.

De qualquer forma, o avanço da regulamentação das novas regras do imposto sobre consumo aproxima o dia de o governo encarar o maior desafio a que se propõe no tema “justiça tributária”, a reforma do Imposto de Renda. Lula prometeu na eleição “botar o rico no Imposto de Renda” e isentar os assalariados que ganham até 5 mil mensais (subiu de 1,9 mil para 2,2 mil em 2023). O que virá pela frente é a tentativa de voltar a taxar lucros e dividendos distribuídos a sócios e acionistas de empresas, como ocorria até 1995. Essa isenção é o segundo maior gasto tributário, só atrás do Simples.

A reforma tributária de dezembro de 2023 dava 90 dias para o governo mandar ao Congresso um projeto de nova taxação da renda. O prazo não foi cumprido por cálculo político, não por abandono da ideia, conforme um integrante da equipe econômica. “A reforma da renda não tem o mesmo grau de maturidade da reforma do consumo. Vamos ver esse debate florescer no ano que vem. Mais do que no consumo, é na renda que se faz justiça tributária”, afirma esse integrante.

A injustiça alcança, inclusive, o regime especial de taxação dos pequenos negócios, maior fonte de renúncia tributária. Um relatório de avaliação do Simples feito pela Controladoria-Geral da União, e obtido por CartaCapital, constatou: 15 milhões de brasileiros de alta renda, pertencentes aos 10% mais ricos, tiram mais proveito do regime do que os 100 milhões que fazem parte dos 40% mais pobres. Motivo: entre as micro e pequenas empresas favorecidas pelo Simples, a maioria tem clientes com renda maior, entre elas academias de ginástica, hotéis, joalheiras e médicos. A CGU sugere elevar a alíquota do regime (hoje de 4% a 30%) e reduzir o limite de faturamento para adesão (de 4,8 milhões de reais anuais), no caso das atividades direcionadas a endinheirados. No ano passado, o governo criou um grupo de trabalho para revisar o Simples. O prazo do grupo acabou, mas ainda não há conclusão. •

Publicado na edição n° 1319 de CartaCapital, em 17 de julho de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A festa da picanha”

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Última Atualização: 11/07/2024