Notas sobre a abertura dos Jogos Olímpicos
por Lucas Silva
Surpreendente!
Este talvez seja o qualificativo capaz de envolver o conjunto das emoções ensejadas pela verdadeiramente espetacular abertura dos Jogos Olímpicos em Paris, na França, na última sexta-feira, 26/07. O mundo inteiro reconheceu em uníssono a relevância do evento. Mesmo os críticos, dos tranquilos aos mais severos, acentuaram aspectos incrivelmente positivos desse feito único e claramente francês salpicado de sensações.
De Lady Gaga a Celine Dion. Torre Eiffel. Águas do Sena. Ruas de Paris. Variedades da França, da história da França, das gentes desse país.
Cenas, muitas cenas. Passagens, incríveis passagens.
Algumas sutis. Outras – reconheça-se – deveras extravagantes. Recheadas de tons antigos e modernos interagindo. Do império dos cabarés ao império das drag queens. Da negação do Antigo Regime à afirmação do mundo high tech.
“Ambiciosa”, disseram uns.
“Melhor cerimônia da história” dos Jogos Olímpicos, afirmaram outros.
“Fabulosa”, foi a conclusão da maior parte.
A cerimônia foi, por tudo isso, essencialmente, fantástica.
Patrick Boucheron, responsável pela narrativa histórica do evento declarou, no sábado, 27/07, tratar-se, essencialmente, da recomposição da França, ontem e hoje, vista no espelho e projetada no futuro. Thomas Jolly, diretor geral da cerimônia, passou todo o fim de semana defendendo a sua obra e afirmando ter sido uma manifestação ostensivamente inclusiva, inteiramente republicada e genuinamente francesa.
Tudo veraz, mas, em nada consensual.
A profanação da Santa Ceia chocou as comunidades cristãs na França e no mundo inteiro. Variadas autoridades religiosas – especialmente da Igreja Católica – vieram, por isso, a público manifestar descontentamentos.
A encenação de Maria Antonieta decapitada também desolou muita gente. Essencialmente os nostálgicos e puritanos. Respeitosos da monarquia francesa e admiradores de monarquias mundo afora. Os nobres britânicos além-Mancha e os nobres espanhóis jusante os Pirineus seguramente não gostaram da encenação.
E, ainda sobre a cabeça de rainha francesa retirada de seu pescoço, feministas de todas as partes entraram em hesitação sem saber se apoiam ou não a intenção.
A guarda republicana sujeitada a dançar música vulgar e popular causou mal-estar. Por instantes, foi gracioso. Mas, em seguida, lembrou-se das agruras em Kiev, Gaza e pela África.
Da mesma sorte que a hiperexposição de pluralidades normativas não foi, de tudo, bem sentida. Pareceu, em muitos aspectos, uma espécie de “revanche das minorias”.
A severidade dos críticos a tudo isso começou a aparecer tão logo terminou a cerimônia. Notadamente no interior da classe política francesa e especialmente entre os “puristas” alocados, indistintamente, à direita e à esquerda.
Éric Zemmour abriu o coro dos desgostosos à direita denunciando o “mau gosto” dos organizadores. Para ele, na sexta-feira, apresentou-se “uma França que não é a França”.
Jean-Luc Mélenchon, notável referência à esquerda, reagiu no mesmo sentido. Mas as suas restrições recaíram sobre a blasfêmia aos cristãos que, em seu entender, ultrapassou limites.
Eles dois – e parcela majoritária de seus correligionários – classificaram a cerimônia de acentuadamente identitária, revanchista e woke.
Nesse turbilhão, Jacques Attali, coordenador dos festejos do bicentenário da Revolução Francesa, em 1989, sob a presidência de François Mitterrand e nítido apoiador do presidente Emmanuel Macron, apresentou uma impressão notou que a marca essencial da cerimônia de abertura dos Jogos foi a ausência de dramas e tragédias, no que ele tem inteira razão.
Quem voltar no tempo, duas ou três semanas atrás, vai notar uma França simplesmente ingovernável, confusa, com um governo demissionário e um presidente da República extraordinariamente fragilizado. O simples fato dessa anomia não afligir a cerimônia já representou muito.
Mas, claro, ninguém pode passar ao largo do tom transgressivo de tudo que se encenou. Nesse sentido, Attali também foi bem sugestivo ao notar que restam dois cenários o caráter chocante da cerimônia.
Ou bem, nos próximos dez anos, as transgressões da cerimônia serão entendidas como banais. Ou, em contrário, serão condenadas a ponto de indicar que 2024 decretou o ápice da decadência francesa e o início do retorno ao statu quo ante; quem sabe, inclusive, com a cabeça da rainha de volta ao seu lugar.
Os dias dirão.
Lucas Silva é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e autor de “Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas”.
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