Um dia após a desistência da reeleição, o presidente Lula abriu o Palácio da Alvorada a jornalistas de agências internacionais. A primeira pergunta foi, claro, sobre a eleição norte-americana. “O meu papel não é escolher o presidente dos Estados Unidos, o meu papel é conviver com quem é o presidente dos Estados Unidos”, respondeu. Ganhe quem ganhar, prosseguiu, a intenção é manter uma relação civilizada. “Temos parcerias estratégicas importantes com os Estados Unidos.”
A posição de Lula, replicada por sua equipe numa rede social, não deixa dúvidas. O pragmático dos mandatos anteriores, que conviveu com direitistas como George W. Bush nos EUA e Álvaro Uribe na Colômbia, topa repetir o figurino caso o extremista Donald Trump volte à Casa Branca. O que nem Lula nem diplomatas em Brasília sabem responder agora é: e Trump, como se portaria?
Para um colaborador diplomático presidencial, Jair Bolsonaro tentaria levar o norte-americano a brigar com Lula. No caso do argentino Javier Milei, ele conseguiu. Milei chamou o brasileiro de “corrupto” e se recusa a pedir desculpas. Em uma reunião do G-7, em junho, na Itália, Milei estava presente, cumprimentou Lula e só. Em julho, trocou a cúpula do Mercosul, no Paraguai, por um convescote bolsonarista em Santa Catarina. Dias depois, o Itamaraty chamou o embaixador brasileiro em Buenos Aires, Julio Bitelli. Este foi a Lula e ao chanceler Mauro Vieira. Nas duas conversas, ouviu a orientação de que a relação com os hermanos tem de ser preservada, não importa quem esteja na Casa Rosada. É o que se verá com os EUA, caso Trump agrida Lula e se eleja.
“O meu papel não é escolher o presidente dos Estados Unidos”, declarou Lula trangeiros
“Lula teria dificuldades de engajar Trump pela diplomacia presidencial, então a relação bilateral cairia nas mãos do Departamento de Estado e do Itamaraty, tudo devagar”, diz Mark Langevin, diretor da consultoria Brazilworks, nos EUA, e professor do programa de Política e Governo da universidade George Mason. “Amigos de Lula em Washington não permitirão um encontro entre os dois, então Trump teria de oferecer a Lula uma grande conquista.”
A relação bilateral entre Lula e Trump, na avaliação do colaborador diplomático lulista, não seria o maior problema entre Brasil e EUA. O pepino estaria em temas multilaterais. Em 2025, o Brasil sediará a cúpula dos BRICS e a conferência da ONU sobre mudanças climáticas. Os BRICS, formados originalmente por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, aceitaram, em 2023, a entrada do Irã, arqui-inimigo de Washington. A China é vista por Trump como vilã econômica, a culpada pelo declínio do american dream, e foi tratada como tal durante o mandato do republicano. Postura que Biden não mudou tanto assim, vide a guerra comercial contra montadoras, siderúrgicas e empresas de tecnologia chinesas.
Num cenário em que os EUA, sob Trump, colocassem o Brasil diante da encruzilhada “ou eu ou a China”, a relação com Washington ficaria tensa, conforme um diplomata. “Não queremos brigar com os Estados Unidos para estar junto com a China. Nós não queremos brigar com a China para estar junto com os Estados Unidos”, comentou Lula na entrevista às agências internacionais.
Segundo um técnico da equipe econômica, que por dever de ofício tem examinado a plataforma de Trump, as propostas do ex-presidente não estão claras, mas o protecionismo comercial é evidente. Significa uma tendência de os EUA recorrerem a aumentos de tarifas de importação, na luta pela reindustrialização e contra exportadores chineses. Seria outro golpe na combalida Organização Mundial do Comércio e o reforço da onda global de política industrial identificada pelo FMI. Nesse cenário, o Brasil teria mais motivos para seguir com suas próprias medidas de proteção ao mercado interno.
A propósito: no poder, Trump elevou a tarifa na importação de aço e alumínio do Brasil, mesmo com Bolsonaro no poder.
Outro aspecto perceptível no plano econômico trumpista é o desejo de fortalecer o dólar, diz o técnico brasileiro. Objetivo que seria perseguido com a subida da taxa de juros. Uma alta lá costuma levar a aumentos aqui, para impedir a fuga de capitais. Baita desafio para quem substituir no comando do Banco Central brasileiro, a partir de janeiro, o bolsonarista Roberto Campos Neto, possivelmente Gabriel Galípolo, diretor de Política Monetária.
E no caso da conferência anual da ONU sobre mudanças climáticas marcada para novembro de 2025 em Belém, a COP-30? Trump é um negacionista climático. Na Casa Branca, tirou os EUA do Acordo de Paris, selado em 2015 com metas para limitar o aquecimento global até o fim do século e de repasse, pelos países ricos, de dinheiro para os emergentes preservarem florestas. O repasse deveria ser de 100 bilhões de dólares por ano, de 2020 a 2025. Nunca foi cumprido e será revisto na COP-29, em novembro, no Azerbaijão. Os EUA boicotariam a COP de Belém? No Itamaraty, não é o que se vislumbra. Um diplomata até vê uma oportunidade para Lula e o Brasil em um mundo com Trump de volta. A liderança ambiental brasileira seria mais necessária do que nunca.
Apesar da disposição para ser pragmático diante do “cenário Trump”, Lula não desistiu de combater a extrema-direita global, nem de tremular essa bandeira nos EUA quando faltarem 55 dias para a eleição lá. Quer promover um encontro de líderes progressistas e democráticos às margens da Assembleia-Geral da ONU, para discutir uma estratégia comum. Como de costume, a assembleia será em Nova York, na sede da ONU – neste ano está marcada para 10 de setembro. Lula estará presente, cabe ao presidente brasileiro, por tradição, o discurso inicial. Sobre a ideia de uma reunião antiextrema-direita, o petista falou com o espanhol Pedro Sánchez e o francês Emmanuel Macron. É possível que discuta ainda com o alemão Olaf Scholz, o chileno Gabriel Boric e a mexicana Claudia Sheinbaum, que tomará posse como presidente em dezembro. No ano passado, às margens da assembleia, Lula e Biden anunciaram uma aliança em defesa do trabalho decente.
O mundo do trabalho é um tema que os une. Kamala Harris, vice de Biden e provável rival de Trump, tem outro perfil. Uma vitória da ex-promotora não significaria uma reprodução automática da boa relação de Lula com Biden, mas nada que uma boa conversa não possa construir, anota um embaixador. Para este, a eleição norte-americana não está decidida, há uma campanha pela frente e Harris tem chance. Difundir a ideia de que Trump já ganhou, anota o diplomata, interessa ao bolsonarismo, para mascarar as encrencas judiciais do capitão. A Polícia Federal concluiu, em julho, que o ex-presidente cometeu o crime de peculato no caso das joias. Até agosto, deve finalizar mais inquéritos, entre eles o da tentativa de golpe contra a eleição de 2022. As conclusões policiais dependem do procurador-geral da República, Paulo Gonet, para levar Bolsonaro ao banco dos réus.
O Brasil quer aproveitar a Assembleia da ONU, em setembro, para lançar uma frente mundial contra a extrema-direita
Em Brasília, é comum ouvir que o governo Biden foi fundamental para evitar um golpe de Bolsonaro. Vários sinais de Washington foram dados para desencorajar militares brasileiros dispostos a aventuras. E se Trump voltar, como seria? Ele pressionaria para salvar o capitão da Justiça? O republicano promete anistiar os acusados e condenados pela invasão do Capitólio em janeiro de 2021, episódio com números similares àqueles do levante bolsonarista de 8 de janeiro de 2023, em Brasília: 1,4 mil acusados lá, 1,2 mil aqui, 450 condenados lá até agora, 216 aqui.
“Não vejo o Poder Judiciário brasileiro se dobrando a eventuais pressões de Trump”, diz Eugênio Aragão, advogado e ex-ministro da Justiça. “O Judiciário é conservador, não teria razão para mexer com Bolsonaro, foi Bolsonaro quem atacou o Judiciário desde o início de seu governo.” Aragão também não acredita que fardados bolsonaristas partiriam para golpismos aqui, em um governo Trump. Aqueles que se meterem em aventuras não estão em postos de comando, diz. “Mas os EUA podem querer ‘comprar’ militares brasileiros com cursos, por exemplo.”
A eleição norte-americana não está decidida, há uma campanha pela frente e Harris tem chance. Difundir a ideia de que Trump já ganhou, anota o diplomata, interessa ao bolsonarismo, para mascarar as encrencas judiciais do capitão. A Polícia Federal concluiu, em julho, que o ex-presidente cometeu o crime de peculato no caso das joias. Até agosto, deve finalizar mais inquéritos, entre eles o da tentativa de golpe contra a eleição de 2022. As conclusões policiais dependem do procurador-geral da República, Paulo Gonet, para levar Bolsonaro ao banco dos réus.
O lobby das Big Techs impediu os deputados brasileiros de votar a lei em 2023. O assunto dormitou quase um ano e voltou em abril, no embalo de uma ofensiva de Elon Musk, dono do X (ex-Twitter), contra Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal. Musk está engajado na campanha trumpista. Sua ofensiva contra Moraes lhe custou a abertura, no STF, de uma investigação por obstrução da Justiça, incitação ao crime e quadrilha. À época, o PCdoB e o governo pediram ao presidente da Câmara, Arthur Lira, para acelerar a votação da Lei das Fake News. Lira fez o oposto: jogou fora o texto de Orlando Silva, do PCdoB, até então relator. Prometia um novo em 30 ou 40 dias. Só em junho criou um grupo de trabalho para redigi-lo… Em 90 dias.
O bolsonarismo não aceita lei nenhuma e condiciona seus votos na sucessão de Lira, em fevereiro de 2025, a não mexer com fake news. Uma causa que encorparia com Trump. “A eleição dele não seria uma boa notícia para quem defende a regulamentação das plataformas”, diz Márcio Jerry, líder do PCdoB.
Não seria uma boa notícia em vários sentidos