Questão historicamente negligenciada no país, a situação do sistema penal finalmente pode começar a mudar se for devidamente implantado, por todos os níveis dos poderes envolvidos, o plano Pena Justa, parceria entre o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), lançado nesta quarta-feira (12) na sede do Supremo Tribunal Federal (STF), em Brasília.

Durante a cerimônia de lançamento, o ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, destacou que o plano tem como centro combater a “situação indigna” e incompatível com a Constituição vivenciada pelos detentos. “A cultura punitivista que nós sentimos continua muito arraigada na população. É preciso medidas fortes e contundentes. Essa medida que estamos colocando em prática é uma delas”, salientou.

O presidente do STF e do CNJ, Luís Roberto Barroso, também enfatizou aspectos relacionados aos direitos humanos e ao fato de que a situação atual dos presídios é um elemento importante no incremento do crime organizado.

“Os presos perderam a liberdade, mas não a dignidade”, pontuou, acrescentando que o plano é ambicioso porque procura enfrentar um conjunto de problemas. “O primeiro deles é a superlotação e a má qualidade das vagas no sistema prisional, em que as pessoas eram acomodadas em situações totalmente degradantes”, afirmou.

Com mais de 300 metas a serem alcançadas pelo poder público até 2027, o objetivo do plano é promover melhorias na infraestrutura dos presídios e proporcionar avanços nas áreas de saúde, segurança e educação, assegurando a dignidade e os direitos básicos às pessoas encarceradas. Além disso, busca incentivar a capacitação profissional e criar oportunidades de ressocialização para os egressos do sistema.

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Para tanto, é dividido em quatro eixos de atuação: o primeiro, trata da superlotação e prevê o reforço da aplicação de medidas cautelares para controlar as vagas no sistema prisional; o segundo vai combater a insalubridade das prisões e garantir acesso à água limpa, alimentação e ao saneamento nos presídios.

Já o terceiro eixo dedica-se à reintegração dos detentos à sociedade, por meio de ações voltadas ao trabalho, educação e geração de renda, enquanto o quarto terá ações para impedir a reincidência de crimes.

De acordo com o planejamento apresentado, o primeiro passo para a implantação será a criação de comitês de políticas penais nos estados, cuja meta é garantir a execução e o monitoramento do plano.

Na ocasião, também foram assinados acordos de cooperação com o Ministério dos Transportes, a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) e o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) para o oferecimento de trabalho para egressos.

O plano busca enfrentar problemas históricos e complexos. Conforme dados do Sistema de Informações Penitenciárias (Sisdepen), entre 2000 e 2023, houve um crescimento de 266% no total de pessoas em cumprimento de pena, saltando de 232.755 para 851.493. As vagas prisionais, por sua vez, passaram de pouco mais de 135 mil para 488 mil no mesmo período.

De acordo com dados constantes do plano, “em 2015, a medida cautelar da ADPF 347 já reconhecia a existência de uma “cultura do
encarceramento”. A redução progressiva da taxa de prisão provisória ao longo dos últimos anos apontada pelo Sisdepen – de 40,13% em 2014 para 25,48% em 2023 – não implicou uma diminuição correlata da população prisional total. Esse dado pode apontar para um esforço do Poder Judiciário para garantir maior celeridade ao processo, porém mantendo-se a aplicação da prisão como principal medida penal”.

Outro ponto para o qual o documento chama atenção é o peso da escravidão no encarceramento de pessoas negras, majoritárias no sistema prisional brasileiro. “A história brasileira da aplicação correicional da privação de liberdade está intrinsecamente relacionada às relações raciais e ao sistema escravista do período colonial. A longa duração desse sistema produziu e segue produzindo marcas profundas na estrutura socioeconômica do país, pois perpetua desigualdades orientadas pelo aspecto racial, as quais são identificadas pela marginalização de comunidades e territórios com maioria da população negra, pelo perfilamento racial e pela seletividade e vulnerabilização penal”, assinala.

No ano de 2023, segundo levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o Brasil teve o maior número de negros encarcerados, considerando a série história analisada pela organização: 68% do total, ou cerca de 442 mil pessoas negras. Entre 2005 e 2022, o crescimento foi de 381% da população negra encarcerada, ante 215% da branca.

Criação e essência do plano

O plano ganhou forma a partir de decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), em outubro de 2023. Na ocasião, a Corte reconheceu a violação massiva de direitos fundamentais no sistema prisional brasileiro em meio ao julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 347.

A partir da decisão, o Tribunal estabeleceu um prazo para que o governo federal apresentasse um plano de intervenção para resolver a situação. Após a elaboração do plano, o STF homologou o texto, com ressalvas pontuais, em dezembro do ano passado.

A apresentação do documento destaca que, ao longo dos anos, foi verificado que “a violação sistemática de direitos dentro do cárcere tem efeitos para além da vida das pessoas privadas de liberdade e de seus familiares. Constatou-se que a combinação de violência e negligência estatal contribui com a precariedade estrutural do sistema prisional, fator decisivo para a formação e a expansão de organizações criminosas que operam dentro e fora das prisões, com impactos para
a população de modo geral”.

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Além disso, salienta que “o atual sistema prisional não é capaz de oferecer uma efetiva reintegração social, concentrando-se, em vez disso, na contenção e no controle das pessoas privadas de liberdade. A violência institucional, a precariedade das políticas de cidadania ofertadas nas prisões e a ausência de políticas públicas específicas para incentivar novas trajetórias de vida constituem, assim, grandes desafios a serem superados nas intersecções entre o campo
penal e a garantia do direito à segurança pública e dos demais direitos sociais”.

Em artigo recente publicado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a pesquisadora sênior da organização não-governamental, Juliana Brandão, assinalou que o plano, bem como a ADPF 347, da qual resultou, é o reconhecimento do “estado de coisas inconstitucional” e um passo importante para equacionar soluções.

“Reconhecendo uma violação generalizada de direitos fundamentais nas prisões brasileiras, o Judiciário declarou que há espaço para fazer diferente, em nome da mínima coerência com os parâmetros derivados do Estado Democrático de Direito”, escreveu.

Ela também destacou que trata-se de um “chamado para o razoável e para o equilíbrio, de modo que não falte, nem haja excessos, na responsabilização penal. Formalmente, também há uma estratégica para mobilização em escala nacional – após a aprovação das balizas gerais, começam agora as formatações dos planos estaduais e distrital, de modo a que as singularidades dos territórios sejam consideradas nos planos de ação”.

Os quatro eixos do plano

No eixo 1 do plano, que trata do controle da entrada e das vagas do sistema prisional, como forma de mitigar o problema da superlotação e da sobrerrepresentação da população negra, foram estabelecidas ações para qualificar e recalcular as vagas do sistema prisional, obedecendo a ocupação máxima e adequando-as aos regimes de cumprimento de pena, com a implementação de Centrais de
Regulação de Vagas.

Consta, ainda, a regularização das situações processuais penais das pessoas privadas de liberdade por meio do controle e racionalização da porta de entrada do sistema penal. Entre outros pontos, defende a implantação de núcleos/centrais ou varas de garantias, a qualificação das audiências de custódia, bem como a supervisão e qualificação do uso da prisão preventiva.

Com relação ao uso excessivo da privação de liberdade, o plano estabelece como meta ampliar a adoção de medidas diversas da prisão. Neste sentido, aponta para a adoção da Justiça Restaurativa como modalidade de resolução de conflitos e propõe qualificar a Política de Alternativas Penais para redução do encarceramento, e racionalizar o uso da monitoração eletrônica de pessoas, com
atenção às especificidades da população negra e de outros grupos vulnerabilizados.

Além disso, aponta para a necessidade de garantir o acesso à Justiça e à ampla defesa, fortalecendo a atuação das Defensorias Públicas na defesa criminal, da advocacia e da Defensoria Pública na atuação criminal e de execução penal.

Ponto relevante do debate público recente sobre o tema da segurança, o plano defende que a política de drogas deve ser redirecionada para ações de saúde e proteção social em detrimento de práticas criminalizantes, especialmente com foco na população negra, reduzindo o fluxo de entrada no sistema prisional de pessoas acusadas de crimes relacionados à Lei de Drogas e instituindo práticas de redução de danos.

O eixo 2, dedicado à estrutura prisional e serviços prestados, propõe, entre outros elementos, aprimorar os espaços físicos dos estabelecimentos prisionais, de maneira a melhorar a oferta dos
serviços e a qualidade do ambiente e garantir o acesso a água potável; iluminação e ventilação; esgoto; condições de higiene e limpeza; segurança e salubridade; área de ocupação; e emissão de alvará de funcionamento da vigilância sanitária.

Outro aspecto é a instituição de medidas para a segurança alimentar e nutricional nas prisões e a oferta de atenção básica à saúde e fluxos de atendimento para média e alta complexidade.

Ainda aponta a necessidade de ampliar e qualificar a oferta e o acesso ao trabalho, à renda e à remição de pena e, entre outras possibilidades, coloca a implementação da Política Nacional de Trabalho no âmbito do Sistema Prisional (PNAT), além de fomentar acesso ao esporte e à cultura.

No que diz respeito às práticas de tortura e dos tratamentos desumanos e degradantes, propõe a adoção de medidas de prevenção e combate a essas práticas, considerando a perspectiva de gênero e étnico-racial.

Para tanto, preconiza a implementação de fluxo de registro, apuração e responsabilização dos casos, com especial atenção a grupos vulnerabilizados; maior rigor na investigação e punição por crimes de tortura cometidos por agentes do Estado; e o uso de ferramentas de transparência e monitoramento dos ambientes e das atividades dos profissionais nos estabelecimentos prisionais, entre outros itens.

Defende, ainda, o fomento à criação de ouvidorias estaduais próprias dos serviços penais e a valorização dos servidores do sistema penal, com ações que promovam, entre outros aspectos, a saúde e a segurança no trabalho e o fortalecimento das carreiras.

O processo de saída da prisão e a reintegração social compõem o eixo 3. Nesse sentido, o plano propõe qualificar os procedimentos de soltura; implementar a Política Nacional de Atenção às Pessoas Egressas do Sistema Prisional (PNAPE); integrar a pessoa egressa ao mercado de trabalho e promover a qualificação profissional dessas pessoas e de seus familiares, entre outros pontos.

Por fim, o eixo 4 trata das políticas de não repetição do “estado de coisas inconstitucional” no sistema prisional, prevendo a normatização de políticas institucionais de enfrentamento ao racismo no ciclo penal, bem como a promoção de ações de justiça racial para o combate ao racismo das instituições durante o ciclo penal, entre outros aspectos.

Para ler a íntegra do Plano, clique aqui.

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Last Update: 13/02/2025