
Por Cristiane Fontes
Do Sumaúma
Glifosato, mancozebe, acefato, clorotalonil, 2,4-D, atrazina. Parece até trecho de um rock da banda Titãs, mas esses são os agrotóxicos mais usados em Mato Grosso, segundo dados reportados ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, o Ibama, pelas empresas titulares de registro desses produtos. O estado, líder na produção de commodities como soja e milho, abriga 36 das 100 cidades mais ricas do agronegócio, de acordo com o Ministério da Agricultura e Pecuária. É também, segundo o Ibama, o maior consumidor de substâncias tóxicas à saúde humana e ao meio ambiente, muitas banidas ou severamente restritas em diversos países.
Em março, a Assembleia Legislativa de Mato Grosso aprovou em regime de urgência o Projeto de Lei 1833/2023, de autoria do deputado Gilberto Cattani (PL), que propõe mudanças significativas na normatização sobre o uso e controle de agrotóxicos. Pela legislação até então em vigor no estado, a pulverização de agrotóxicos precisa respeitar distâncias mínimas. Cattani, que se apresenta como assentado da reforma agrária, bolsonarista, anti-MST e anti-PT, propôs a redução dessas distâncias mínimas. No caso das pequenas propriedades, não há mais distância alguma: a pulverização fica liberada.
Chamado pela sociedade civil de “PL do Veneno sem Limites”, o projeto de lei aguarda sanção ou veto do governador Mauro Mendes (União). Segundo afirmou à reportagem a assessoria do governador, o projeto está no momento sob análise da Procuradoria-Geral do Estado.
Em entrevista a SUMAÚMA, Wanderlei Pignati, médico, doutor em saúde pública, professor e pesquisador da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), detalha os impactos do projeto de lei, expõe dados de décadas de estudos sobre os efeitos dos agrotóxicos no estado e critica com veemência o que chama de “insaciável” agronegócio brasileiro. Referência nas pesquisas a respeito dos prejuízos dessas substâncias para a saúde, Pignati diz que nenhum lugar no mundo permite a aplicação de agrotóxicos sem exigência de distância mínima. “Os impactos, que são graves, vão aumentar. Com esse projeto, agora [podem] pulverizar até o seu pé, se você botar o pé fora da sua casa”, afirma.
A crescente contaminação por agrotóxicos na Terra Indígena Wawi, do povo Khisêtjê, e o dilema entre permanecer no território, arriscando a saúde da comunidade, e abandonar a aldeia ancestral são retratados no filme Sukande Kasáká: Terra Doente, do comunicador e fotógrafo Indígena Kamikia Kisedje e do documentarista Fred Rahal. A produção foi premiada como melhor curta-metragem brasileiro na 30a edição do festival É Tudo Verdade, em abril de 2025.
Natural de São Paulo, Pignati se mudou para Mato Grosso em 1984. Ganhou projeção nacional com a divulgação de um estudo sobre a presença de agrotóxicos no leite materno conduzido por uma de suas orientandas. Desde então testemunha a drástica transformação socioeconômica e ambiental do estado e as consequências do uso intensivo de agrotóxicos na saúde da população. “A média no Brasil é de quatro malformações para cada mil nascidos vivos. Em Mato Grosso, a média sobe para 14, e, nessas regiões que concentram 80% da produção de commodities agrícolas, chega a 30, até 37, por mil.”

Formado em medicina pela Universidade de Brasília, Pignati, de 73 anos, é mestre em saúde e ambiente pela UFMT e doutor em saúde pública pela Fiocruz. É também um dos organizadores do livro Desastres Sócio-sanitário-ambientais do Agronegócio e Resistências Agroecológicas no Brasil, recentemente traduzido para o inglês. A seguir, os principais trechos da entrevista.
SUMAÚMA: Quando e como você começou a se interessar pela relação entre o uso de agrotóxicos e o impacto na saúde humana?
WANDERLEI PIGNATI: Cheguei a Mato Grosso em 1984, como professor da Faculdade de Medicina da UFMT. Era coordenador do internato rural do 6º ano e levava alunos para cidades como Sorriso, Lucas do Rio Verde, Nova Mutum, Feliz Natal. Ficava uma semana, às vezes 15 dias, com os alunos. Na estrada, a gente perguntava: cadê a Floresta que estava aqui? Sempre tinha uma fumaceira lascada. Mas ainda havia muita mata. Começamos a constatar a destruição provocada pelas lavouras de soja, milho, pelas pastagens e pelo uso intensivo de agrotóxicos. Os alunos passaram a atender pacientes intoxicados e, na década de 1990, passei a me aprofundar nesse tema.
A pesquisa sobre a presença de agrotóxicos no leite materno de mães residentes em Lucas do Rio Verde, conduzida pela pesquisadora Danielly Palma, sob sua orientação, teve ampla repercussão quando foi divulgada, em 2011. Desde então, ela vem sendo atualizada?
A gente está fazendo essa pesquisa de novo, em convênio com uma universidade na Itália. Desta vez, investigamos agrotóxicos, metais pesados, principalmente o mercúrio, devido à situação crítica provocada pela mineração, e microplásticos. Em 2018, desenvolvemos um projeto grande, em parceria com a Unifesp [Universidade Federal de São Paulo], para realizar diversas pesquisas com os povos Indígenas do Xingu. Conseguimos estudar a água e os animais da região e também tínhamos um projeto para analisar o leite materno das mulheres Indígenas. Quando chegou o momento de coletar o leite materno, já era o governo Bolsonaro, e a Funai [Fundação Nacional dos Povos Indígenas] não autorizou. Esse projeto ficou pendente, mas vamos retomá-lo.
De que forma o poder público reagiu aos resultados da pesquisa? Houve alguma resposta concreta?
Fomos muito questionados em nível local e, quando tentamos fazer o estudo em outros municípios, não conseguimos, porque é preciso autorização das prefeituras. Essa repercussão provocou embates com o agronegócio e as indústrias de agrotóxicos, que passaram a pedir todos os dados da pesquisa, questionando a metodologia, exigindo, inclusive, os gráficos e os nomes dos participantes para refazer a pesquisa. Encaminharam pedidos para a reitoria da universidade. Mas ciência não funciona assim. Publicamos o método justamente para que fosse aprimorado. Que fizessem e publicassem – eles se surpreenderiam com a quantidade de agrotóxicos no leite materno. Até o ministro da Saúde na época me chamou, dizendo que eu estava atrapalhando a campanha de aleitamento materno. Fui lá, discutimos, e fiz um pacto para moderar um pouco. Em troca, pedi uma avaliação em todos os bancos de leite do Brasil, feita pela Fiocruz. Cadê a pesquisa? Já cobrei. E desafiei: estaria pior que o nosso estudo, que analisou só 12 agrotóxicos. Hoje, com a análise multirresíduo, é possível detectar até 200 tipos de agrotóxico em uma única amostra.

O senhor vem desenvolvendo muitas pesquisas, como uma linha que mantém desde 2016 sobre a relação entre o consumo de agrotóxicos e o perfil epidemiológico do câncer em Mato Grosso. Quais são os principais achados até o momento?
Nas quatro regiões que concentram 80% da soja, do milho, do algodão e do gado de Mato Grosso – Sinop, Rondonópolis, Sapezal e Água Boa – é onde justamente a incidência de doenças é muito maior. Posso dar um indicador simples: o número de malformações congênitas, segundo dados do Sinasc [Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos], do Ministério da Saúde. A média no Brasil é de quatro malformações para cada mil nascidos vivos. Em Mato Grosso, sobe para 14 e, nas regiões que citei, chega a 30, em alguns casos, até 37 por mil. Temos a mesma proporção para o aborto e o câncer que a gente chama de infantojuvenil até os 19 anos. A incidência de acidente de trabalho, uma das maiores do Brasil, mostra que as condições de trabalho nessas regiões também são bastante precárias. É um estado rico mas pobre, porque tem muita doença.
No dia 19 de março, deputados da Assembleia Legislativa de Mato Grosso aprovaram, em regime de urgência, o projeto de lei que vem sendo chamado pela sociedade civil e por movimentos sociais de “PL do Veneno sem Limites”. O que muda, na prática, com o PL 1833/2023 em relação à legislação anterior?
A Lei de Agrotóxicos de Mato Grosso é de 2006. Em 2009, ela foi regulamentada com uma distância mínima de 300 metros para a pulverização em relação a criação de animais, residências, fontes de água e áreas de preservação ambiental. Em 2013, o governador Silval Barbosa, pressionado pelo agronegócio, anulou esse decreto e criou outro, com distância reduzida de 300 metros para 90 metros, aumentando os riscos. O Ministério Público entrou na Justiça, e a questão está em julgamento. Ainda hoje, se a gente for discutir, o que está valendo legalmente são os 90 metros. O julgamento para voltar aos 300 ainda não foi concluído.
O projeto de lei aprovado, o PL 1833/2023, do deputado Gilberto Cattani, propõe a liberação irrestrita da pulverização terrestre de agrotóxicos. Para as propriedades pequenas, a aplicação é liberada, independente da distância mínima de áreas protegidas; para as propriedades médias, a distância mínima é de 25 metros; para as grandes propriedades, distância de 90 metros de povoações, cidades, vilas, bairros mananciais de captação de água, moradias isoladas, grupamento de animais e nascentes. Ou seja, estão legalizando a contaminação e as doenças na população. Não haverá nem necessidade de fiscalização das pequenas propriedades, pois estará tudo permitido em termos de pulverização terrestre. A pulverização fica liberada para ocorrer ao lado da casa, ao lado de córregos. Por isso chamamos de “PL do Veneno sem Limites”. Não precisa nem botar o pé fora, porque o vento leva para dentro da casa, das granjas, das criações. Essa foi a lei aprovada.
Na sua avaliação, quais serão os impactos dessa lei sobre o meio ambiente, a população e até mesmo para o setor agropecuário?
Os impactos, que já são graves, tendem a aumentar. Anos atrás, fizemos um censo em municípios da região de Sapezal, Campo Novo do Parecis, Campos de Júlio e Diamantino. Fomos de casa em casa perguntando sobre as doenças das pessoas – em residências localizadas até 90 metros, de 90 a 300 metros, e acima de 300 metros das lavouras. Até 90 metros, a incidência e o risco dessas doenças relatadas pelas famílias – intoxicação aguda, câncer infantojuvenil, aborto, diabetes – eram três vezes maiores. Teve município em que eram seis vezes maiores. Isso está publicado, mas o pessoal não acredita. Se o governador [Mauro Mendes] assinar esse projeto de lei, será um ato de extrema irresponsabilidade. Em nenhum local do mundo se adota zero de distância mínima para aplicação de agrotóxicos. Isso permitiria pulverização até na beira das casas. É um absurdo.

Como a sociedade civil do estado de Mato Grosso está reagindo à aprovação do projeto de lei?
O Ministério Público já se pronunciou. Há forte pressão no Conselho Estadual de Saúde, e também levamos essa questão ao Conselho Nacional de Saúde. Diversas ONGs internacionais foram informadas, e várias organizações de Mato Grosso, assim como conselhos de classe, enviaram manifestações. Universidades, não apenas a nossa, mas também a Unemat [Universidade do Estado de Mato Grosso], começaram a debater essa proposta inaceitável. Estamos mobilizados e pressionando para que o governador não sancione essa lei.
Você definiu o desmatamento químico (uso de substâncias químicas para eliminar vegetação nativa) de mais de 80 mil hectares no Pantanal como um dos maiores desastres provocados no Brasil nos últimos dez anos e denunciou que outras áreas vêm sendo destruídas. Quais seriam essas áreas e por quem elas vêm sendo destruídas?
Esse desmatamento químico no Pantanal já afeta entre 30% e 35% do bioma. O mesmo fazendeiro havia desmatado 50 mil hectares e mantinha ali cerca de 60 mil cabeças de gado. Mas não é só o Pantanal. O Cerrado está sendo fortemente devastado, especialmente na região conhecida como Matopiba [Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia]. Há diversas Terras Indígenas cercadas por plantações de soja, milho e algodão. No caso do [Parque Indígena do] Xingu, todas as nascentes [da Bacia do Xingu], sem exceção, estão em áreas de monocultura com uso intensivo de agrotóxicos, ou em pastagens que também recebem essas substâncias. Além disso, milhares de hectares dentro de Terras Indígenas estão sendo arrendados ao agronegócio, como em Campo Novo do Parecis. Em alguns casos, os próprios Indígenas vêm sendo incentivados a plantar soja transgênica, com o uso de máquinas e tecnologias modernas. Esse processo foi iniciado com o apoio do ex-governador Blairo Maggi, que chegou a construir uma estrada cortando a Terra Indígena Utiariti, dos Paresí. Infelizmente, essa é uma situação que vem se espalhando de forma generalizada.
Temos alternativas a esse atual modelo de produção?
É possível produzir soja, milho e criar gado de forma agroecológica. Visitei uma fazenda em Sertãozinho, no interior de São Paulo, da Native. Eles cultivavam 17 mil hectares de cana-de-açúcar sem usar agrotóxicos ou fertilizantes químicos há 20 anos, com produtividade maior por hectare, chegando a 100 toneladas, contra 60 ou 70 de quem usa agrotóxicos. Existe o Pronara (Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos), voltado à redução do uso de agrotóxicos, que não vem sendo implementado. Havia um decreto ainda mais antigo (da Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica, de 2012), agora incorporado a um programa coordenado pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário. O problema é que o Ministério da Agricultura não quer participar. O ministro da Agricultura, que foi eleito senador por Mato Grosso, é bastante resistente à implementação das políticas de produção orgânica e à redução do uso de agrotóxicos. O agronegócio e as indústrias de agrotóxico também não querem que isso aconteça. Hoje, as maiores indústrias do mundo são as químicas, que fabricam remédios e produzem venenos e fertilizantes. E esse poder todo se reflete no Congresso. A maior bancada é a do agronegócio, que impede avanços. O governo Lula, para manter a governabilidade, precisa negociar com essas bancadas que promovem a destruição da vida humana, animal e vegetal, além da contaminação das águas.
Qual é o status da implementação do Plano Estadual de Agroecologia e Produção Orgânica?
Temos, no estado de Mato Grosso, a Lei Estadual de Agroecologia e Produção Orgânica. Pergunta: o governo vem investindo na produção agroecológica? Parte significativa da soja plantada aqui é transgênica. E, no ano passado, a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) aprovou uma soja resistente a uma combinação de quatro agrotóxicos: 2,4-D, dicamba, mesotriona e glufosinato de amônio [conjunto de herbicidas altamente tóxicos à saúde humana, incluindo riscos de distúrbios endócrinos, doenças neurológicas, reprodutivas e potencial cancerígeno, o último deles banido na Europa]. Aonde é que vai parar isso? Temos ainda a importação de trigo transgênico da Argentina, que é o único país que está exportando um trigo resistente ao glufosinato, um derivado do glifosato. A CTNBio autorizou plantá-lo no Brasil também. Só na Argentina, agora no Brasil e no Paraguai. O resto do mundo não quis saber desse trigo resistente ao glufosinato de amônio [herbicida associado a riscos à saúde humana, como toxicidade neurológica, problemas respiratórios e efeitos reprodutivos]. Então, quer dizer, a situação é terrível. O agronegócio é insaciável.
Como o senhor consegue sustentar sua atuação crítica em meio a um cenário tão adverso?
A gente continua porque conta com uma rede de pesquisa, nacional e internacional, para nos apoiar. Mas é preciso haver uma mobilização popular, sindical, social, para que a gente tenha uma vigilância em saúde no país. Porque o outro lado – o agro, a indústria de alimentos –, se tiver que vender contaminado e se tiver que contaminar a água, a chuva, o ar, o leite… não está nem aí.

Edição: Fernanda da Escóssia