Estudo recente da Universidade Tecnológica de Nanyang, em Cingapura, revelou que o nível do mar pode subir até 1,9 metro nos próximos 75 anos. Nesse cenário, Porto Alegre corre o risco de ficar parcialmente submersa até o ano de 2100. Alguns sinais dessa ameaça começam a manifestar-se. Em 2024, o Rio Grande do Sul foi palco de uma das maiores tragédias climáticas da história do Brasil. Um dilúvio desabou sobre o estado. Alguns bairros vieram abaixo, com ruas e casas totalmente destruídas. O que começou como uma tempestade em 27 de abril, em Santa Cruz do Sul, rapidamente transformou-se em uma catástrofe de proporções inéditas. Durante mais de dez dias a chuva não deu trégua. As bacias dos rios não suportaram a pressão e transbordaram. A enxurrada invadiu áreas urbanas e rurais, arrastou casas, escolas e postos de saúde, destruiu pontes, interrompeu estradas e ceifou vidas. Mais de 470 cidades foram atingidas. O número de gaúchos afetados ultrapassou 2,7 milhões. O balanço final: 183 mortos e 27 desaparecidos.

Passado um ano da catástrofe, a pergunta que se faz é: se as chuvas voltassem hoje, os estragos seriam os mesmos? Que projetos técnicos, de engenharia, foram executados nesse período para assegurar tranquilidade à população? “Muito pouco foi feito. Se acontecer um evento como aquele de 2024, as consequências serão, no mínimo, semelhantes”, afirma o engenheiro Vicente Rauber, especialista em Planejamento Energético e Ambiental.

Em maio do ano passado, no auge do caos, o engenheiro e outros 47 colegas assinaram um manifesto dirigido aos porto-alegrenses sobre o sistema de proteção contra inundações da capital. No documento sugeriam uma série de medidas urgentes, além de outras a serem adotadas “quando as águas baixassem”. Para Rauber, o assunto estava longe de ser novidade. Em 1992, quando ainda integrava a diretoria do extinto Departamento de Esgotos Pluviais, elaborou o estudo Prevenir É o Melhor Remédio – Sistemas de Proteção Contra Inundações e Alagamentos de Porto Alegre.

A surpresa deu-se ao constatarem que, desde 2020, a prefeitura não realizava manutenções em comportas externas nem nas internas das casas de bombas da cidade. “Grande parte nem sequer funcionava”, lembra Rauber. Além das recomendações ignoradas, a prefeitura ainda decidiu fechar oito das 14 comportas. “Tudo foi feito sem muito critério técnico.” O engenheiro lembra ainda que, em 2016, o DEP elaborou um plano de aperfeiçoamento, modernização e ampliação das casas de bomba, aprovado durante o governo da presidente Dilma Rousseff. O valor previsto era de 124 milhões de reais, a fundo perdido. Faltava apenas a apresentação do projeto executivo de engenharia. “Absolutamente, nada foi feito pela prefeitura. Até que, em 2018, o recurso depositado na Caixa Econômica foi devolvido ao governo federal”. CartaCapital encaminhou à assessoria de imprensa da prefeitura várias perguntas, entre elas se a população estaria hoje mais protegida do que no ano passado para enfrentar as chuvas, e por quê. A resposta foi vaga: “Foram desenvolvidas até o momento 18 ações de adaptação climática, num valor de 26 milhões de reais”.

Em relação ao estado, o governo federal tratou de criar a Casa de Governo do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, para acompanhar a tragédia e dar início aos trabalhos de recuperação. De acordo com o secretário da Reconstrução, ­Maneco Hassem, em um ano foram disponibilizados mais de 110 bilhões de reais, e cerca de 80% desse montante foi repassado ao estado ou aos municípios para execução das obras. Foram aprovados mais de 1,4 mil planos de trabalho pela Defesa Civil, que somam 2,3 bilhões de reais.

Um ano depois da tragédia, não se sabe se os gaúchos estão ou não mais protegidos

Um dos maiores entraves é a burocracia oficial. Para as obras saírem do papel, é necessário não apenas um projeto técnico, mas a realização de licitações, a contratação de serviços e execução por parte das prefeituras. Muitas nem sequer iniciaram o processo ou enfrentam dificuldades nas etapas iniciais, especialmente nas licitações. Com o objetivo de organizar e viabilizar esse processo, foi criado o Fundo do Plano Rio Grande, ­Funrigs, fundo público de natureza orçamentária, financeira e contábil, responsável por gerir toda essa dinheirama destinada à recuperação do estado. Perto de 97% dos recursos que compõem o Funrigs são oriundos da suspensão do pagamento da dívida com a União e da isenção de juros por 36 meses. Vão de obras de reconstrução e melhorias em estradas, pontes e estruturas públicas a programas sociais anteriormente financiados com recursos próprios. Diversas iniciativas do governo estadual foram reclassificadas para que os valores passassem a ser contabilizados no Funrigs. “Não haveria como essas ações acontecerem se não fosse pela atuação do governo federal, que tem sido o maior parceiro na reconstrução do estado”, afirma o secretário Hassem.

Uma notícia divulgada nas últimas semanas sugere que o governador Eduardo Leite, PSDB, parece não demonstrar grande urgência diante da situação. Desde dezembro, 6,5 bilhões de reais repassados por Brasília permanecem parados em uma conta do estado na Caixa Econômica Federal. O recurso tem destinação clara: financiar obras de drenagem urbana para contenção e proteção do sistema contra inundações na região metropolitana de Porto Alegre. Em vez de aplicar os valores nas obras, o governo estadual optou, no entanto, por alocar o montante em fundos de investimento, cuja rentabilidade mensal, de cerca de 70 milhões de reais, tem reforçado os cofres públicos. Como as intervenções envolvem diversos municípios, o repasse foi feito diretamente ao governo estadual.

Ainda segundo Hassem, desde que o pedido de recursos foi feito, a expectativa era de que os projetos estivessem em atua­lização. “Infelizmente, isso não aconteceu até agora. Sem eles não é possível licitar nem iniciar as obras. São responsabilidades do governo estadual, que, ao que tudo indica, ainda não conseguiu vencer a própria burocracia para dar andamento às tarefas”, ressaltou. Em nota à reportagem, a Secretaria da Reconstrução Gaúcha afirmou que os sistemas de proteção contra cheias são “obras complexas” e estão sendo ajustadas à nova realidade climática. Justificou que, “nos Países Baixos levou mais de dez anos para a execução de medidas semelhantes”, e que a revisão dos projetos “visa garantir segurança e bom uso dos recursos”. •

Publicado na edição n° 1359 de CartaCapital, em 30 de abril de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Cofre cheio’

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Last Update: 24/04/2025