Código de Guerra: Como o Algoritmo Substituiu a Farda

Por Reynaldo Aragon*

Eles não precisaram de tanques. Nem de marchas. Nem de golpes parlamentares. O novo poder global vestiu farda sem sair do Vale do Silício — e agora governa com linhas de código.

O que parecia teoria da conspiração tornou-se realidade institucional: executivos da Palantir, Meta, OpenAI e outras gigantes da tecnologia passaram a integrar formalmente as Forças Armadas dos EUA. Não como consultores, mas como oficiais da reserva, com autoridade, influência e acesso.

Ao mesmo tempo, contratos bilionários transformam essas empresas nos verdadeiros cérebros operacionais da guerra contemporânea — uma guerra que não se trava mais com soldados, mas com dados, algoritmos e predições.

Este artigo revela, com base em documentos oficiais e anos de pesquisa, como se formou o complexo algorítmico-militar, uma nova máquina de dominação onde a soberania é sublocada, a democracia é reprogramada e a guerra se tornou permanente, silenciosa e automatizada.

Código de Guerra: Como o Algoritmo Substituiu a Farda é mais do que um alerta — é um mapa detalhado do futuro que já começou.

Quando a realidade confirma o indizível

Por muito tempo, a hipótese de que as grandes corporações tecnológicas estariam pavimentando, silenciosamente, uma rota de captura institucional — não apenas do setor público, mas das engrenagens profundas do Estado moderno — foi tratada como exagero analítico, paranoia conspiratória ou alarmismo antitecnológico. Na narrativa dominante, o Vale do Silício era o espaço da inovação desinteressada, onde gênios visionários trabalhavam para “melhorar o mundo” com ferramentas cada vez mais inteligentes e eficientes. A realidade, no entanto, não respeita mitos por muito tempo.

Nos últimos meses, uma série de fatos noticiados nos principais veículos da imprensa internacional revelou com clareza algo que já se insinuava há anos nos subterrâneos das estruturas de poder: as Big Techs não estão apenas influenciando governos. Elas estão agora ocupando formalmente o aparelho de Estado, integrando-se diretamente às Forças Armadas dos Estados Unidos, com executivos comissionados na reserva militar, contratos bilionários em sistemas de decisão baseados em inteligência artificial e participação ativa no redesenho estratégico da guerra moderna. Não se trata mais de lobby, fornecimento ou consultoria. Trata-se de presença institucionalizada.

A entrada oficial de executivos da Palantir, Meta e OpenAI no Exército dos EUA através da criação do Detachment 201, aliada à ampliação de contratos como os dos sistemas Vantage e TITAN, operados por IA, marca um novo patamar na fusão entre o setor tecnológico e o complexo militar. Um patamar em que o código se torna comando, o algoritmo se torna estratégia e a guerra se torna software. É o nascimento de uma nova engenharia do poder, onde o domínio territorial é substituído pelo domínio informacional, e onde a superioridade não se mede por mísseis, mas por capacidade de antecipação, vigilância e controle preditivo.

Neste artigo, traçaremos as linhas de força dessa transformação histórica, conectando os movimentos mais recentes da indústria tecnológica ao processo mais amplo de reorganização do poder global. Veremos como o que hoje se apresenta como novidade institucional era, na verdade, uma tendência histórica previsível, visível a quem estivesse disposto a encarar o futuro sem os filtros do marketing tecnocrático. Mais do que descrever os fatos, este texto propõe organizá-los em sua lógica profunda, revelando o que está em jogo: o nascimento de uma máquina de guerra algorítmica, transnacional e financeiramente autônoma, que já não responde a governos, mas os atravessa — e, quando necessário, os substitui.

A longa marcha do código: das startups ao Pentágono.

O que hoje se explicita em forma de contratos bilionários, comissionamentos militares e integração institucional entre big techs e forças armadas dos Estados Unidos, começou de maneira quase imperceptível — como toda mutação estrutural significativa. A gênese dessa aproximação remonta às primeiras décadas do século XXI, quando o governo norte-americano, especialmente através da CIA e do Departamento de Defesa, passou a investir pesadamente em tecnologias civis com potencial de uso militar. Foi nesse ambiente que nasceram empresas como a Palantir, financiada por meio da In-Q-Tel, o braço de venture capital da inteligência americana. O que parecia apenas uma aposta em inovação transformou-se, pouco a pouco, numa nova arquitetura do poder.

A lógica por trás dessa aproximação era clara: enquanto a máquina estatal ainda operava em ritmos industriais, as startups de tecnologia cresciam sob o princípio da escalabilidade algorítmica — otimizando recursos, conectando sistemas, modelando comportamentos e reduzindo fricções operacionais. O Pentágono, atento à erosão de sua supremacia tecnológica diante da velocidade do setor privado, passou a olhar para o Vale do Silício não apenas como fornecedor, mas como campo estratégico. Ao invés de criar soluções internamente, decidiu incorporá-las. Nascia ali a primeira forma embrionária de um complexo civil-militar digital, cuja característica central é a capacidade de antecipar decisões com base em dados, algoritmos e simulações.

Essa transição é particularmente visível a partir do Project Maven, lançado em 2017. O objetivo inicial era desenvolver sistemas de inteligência artificial para interpretar imagens captadas por drones. O Google, inicialmente parceiro, abandonou o projeto após pressão de funcionários que viam riscos éticos na aplicação militar da IA. A Palantir ocupou o espaço deixado, abrindo caminho para contratos ainda mais ambiciosos. O que se viu, desde então, foi uma escalada: da coleta de dados ao seu cruzamento, da análise à predição, da predição à decisão. As empresas não estavam apenas prestando serviços. Estavam se tornando estruturas cognitivas do poder militar.

Esse movimento se acelerou ao longo da década seguinte. Em vez de depender da indústria bélica tradicional — Boeing, Raytheon, Lockheed Martin —, o Departamento de Defesa passou a fomentar um ecossistema paralelo, mais ágil, menos burocrático e mais aderente às exigências da guerra informacional e cibernética. Assim surgiram parcerias com empresas como Anduril, OpenAI, Skydio, Rebellion Defense e outras startups que compartilham a mesma matriz genética: capital privado, mentalidade de startup e vocação militar.

A diferença central é que, ao contrário do complexo industrial-militar do século XX, centrado na produção de hardware bélico, o novo complexo atua sobre o imaginário, a logística invisível, os circuitos de decisão e os fluxos de informação. Ele não projeta tanques, mas sistemas de targeting. Não ocupa territórios, mas redes. Não dispara bombas, mas modela ambientes de percepção. A guerra, nesse novo modelo, deixa de ser apenas conflito armado para se tornar um regime permanente de gestão algorítmica do mundo — e a longa marcha do código encontrou, no Pentágono, sua mais alta instituição de destino.

O Detachment 201 e o novo modelo de guerra híbrida.

Em junho de 2025, uma notícia passou quase despercebida pelo grande público, mas deveria estar no centro das preocupações estratégicas de qualquer democracia do mundo: o Exército dos Estados Unidos oficializou a criação do Detachment 201, uma unidade de reserva integrada por executivos das maiores empresas de tecnologia do planeta. Entre os comissionados estão Shyam Sankar (diretor de tecnologia da Palantir), Andrew Bosworth (CTO da Meta), Kevin Weil (OpenAI) e outros nomes de peso no núcleo duro da infraestrutura digital global. Receberam, sem passar por academia militar ou formação de carreira, postos de tenente-coronel e um cronograma leve de treinamento. O objetivo declarado: “aportar ao Exército a expertise e a agilidade do setor privado”.

O que está em curso com essa movimentação é uma mudança de paradigma. Não se trata apenas de cooperação, como tantas vezes ocorreu no passado entre empresas e forças armadas. O que o Detachment 201 representa é uma integração institucionalizada entre o alto comando militar e o núcleo executivo das corporações que controlam os algoritmos de vigilância, decisão e modulação comportamental. A guerra híbrida — aquela que se realiza no plano da informação, da narrativa e do controle simbólico — ganha aqui um novo operador: a elite tecnocrática transnacional vestindo farda e tendo acesso direto à engrenagem decisória das forças armadas.

Esses novos oficiais da reserva não atuam nas trincheiras, mas nos fluxos de dados. Não comandam tropas, mas coordenam sistemas. São, ao mesmo tempo, desenvolvedores e estrategistas, fornecedores e comandantes, civis e militares, dissolvendo as fronteiras tradicionais que marcavam o campo da soberania. A guerra híbrida, nesse modelo, não é mais conduzida por generais, mas por engenheiros de sistemas, cientistas de dados e arquitetos algorítmicos. E a dissuasão já não se faz apenas pela presença física de tropas ou arsenais, mas pela capacidade de monitorar, antecipar e neutralizar movimentos adversários em tempo real, por meio de tecnologias invisíveis e infraestruturas computacionais.

Ao criar o Detachment 201, o Exército dos EUA não apenas reconhece sua dependência do setor privado para manter a primazia tecnológica. Ele consagra uma nova forma de comando: o governo da guerra por dentro do mercado da informação. O dado, antes recurso estratégico, passa a ser o próprio território em disputa. E quem controla os dados, os sistemas de IA e os pipelines de decisão algorítmica, passa a operar também o teatro de guerra. As Forças Armadas, nesse arranjo, tornam-se plataformas — e as plataformas, por sua vez, tornam-se atores militares permanentes.

Essa virada simbólica marca um ponto de não retorno. O Detachment 201 inaugura uma era em que os poderes da guerra, da comunicação e do capital se fundem em um mesmo organismo operacional. Não é mais preciso intermediar. As corporações agora assumem diretamente o papel de sujeitos estratégicos, e isso se dá com naturalidade, sob o signo da modernização, da eficiência e da inevitabilidade tecnológica. Estamos diante de uma nova forma de soberania militar: cognitiva, algorítmica, pós-democrática — e com sede no Vale do Silício.

Palantir e Anduril: os braços operacionais do algoritmo militarizado.

A nova lógica de guerra não seria operacionalizável sem seus executores técnicos, e é nesse ponto que entram Palantir e Anduril como atores centrais da arquitetura bélica do século XXI. Se o Detachment 201 simboliza a fusão entre comando militar e pensamento algorítmico, essas duas empresas representam a musculatura tática dessa aliança. São elas que transformam teoria em máquina, fluxo de dados em targeting, IA em arma. São os braços que executam, de forma acelerada e com escalabilidade inédita, aquilo que antes dependia de ciclos lentos da indústria bélica tradicional.

A Palantir Technologies, fundada em 2003 com apoio direto da CIA, já havia se consolidado como a principal fornecedora de plataformas de inteligência integrada para agências federais norte-americanas. Mas os contratos assinados nos últimos dois anos com o Departamento de Defesa sinalizam um novo grau de profundidade na sua atuação. A extensão do contrato da plataforma Vantage, por exemplo — avaliado em mais de 600 milhões de dólares —, tornou a Palantir responsável pela integração de dados logísticos, operacionais, administrativos e preditivos de mais de 100 mil usuários militares. Já não se trata apenas de análise de inteligência: trata-se de sistematização total da lógica decisória militar.

Outro exemplo eloquente é o sistema TITAN, um centro móvel de targeting baseado em IA, que cruza dados de satélites, sensores terrestres e fontes humanas em tempo real para apoiar decisões de ataque e vigilância. Em março de 2025, as primeiras unidades do TITAN foram entregues ao Exército — marcos tangíveis de uma guerra onde o tempo de latência entre a percepção e o disparo se reduz a frações de segundo, graças ao processamento automatizado e aos modelos de Machine Learning embarcados. O que se vê aqui não é apenas uma nova ferramenta, mas um novo paradigma ontológico da guerra: a ação como consequência direta da previsão estatística.

Ao lado da Palantir, a Anduril Industries, fundada em 2017 por Palmer Luckey (ex-Oculus), se apresenta como a startup militar mais ambiciosa da atualidade. Seu portfólio inclui torres sentinelas autônomas, drones letais equipados com IA de decisão, sensores móveis e uma poderosa plataforma de comando chamada Lattice, capaz de orquestrar operações complexas com mínima intervenção humana. Em 2025, a empresa assinou um contrato de 642 milhões de dólares com os fuzileiros navais norte-americanos, tornando-se fornecedora de sistemas antidrone. Também firmou parceria com o exército alemão, sinalizando uma estratégia de internacionalização de sua infraestrutura bélica inteligente.

A sinergia entre Palantir e Anduril não é casual. Em 2024, as duas anunciaram uma colaboração formal para integrar os sistemas de IA de análise (Palantir) aos sistemas autônomos de ataque e vigilância (Anduril). Trata-se de uma aliança que virtualiza a guerra como um circuito fechado, onde captura, predição e resposta formam um ciclo operacional quase automático, movido por código e alimentado por dados em tempo real. O que antes era apenas uma hipótese distópica hoje é infraestrutura concreta em expansão.

Essas empresas, embora privadas, não operam como simples fornecedores: elas dão forma à estratégia militar contemporânea. Modelam a lógica da ação, definem os critérios de ameaça, operam as ferramentas de guerra informacional e participam, como atores geopolíticos, da disputa por hegemonia no campo global. Palantir e Anduril não vendem soluções: elas forjam epistemologias de combate, codificam o mundo a partir de parâmetros operacionais que escapam ao controle democrático — e é por isso que sua ascensão precisa ser lida como um evento político, não apenas empresarial.

A arquitetura invisível da dominação: o que está em jogo.

A guerra que se desenha neste início de século não é apenas um embate entre Estados, tecnologias ou blocos geopolíticos. Ela é, antes de tudo, uma disputa pelo controle da infraestrutura invisível que organiza a percepção, a decisão e a realidade social. Essa é a dimensão mais estratégica do novo complexo algorítmico-militar: sua capacidade de operar não apenas no domínio da força, mas na matriz cognitiva e normativa que sustenta o mundo contemporâneo.

O que está em jogo não é apenas o uso militar da inteligência artificial, mas o fato de que as mesmas empresas que constroem os sistemas de targeting, de vigilância preditiva e de guerra informacional são também as responsáveis por estruturar os fluxos civis de comunicação, transporte, saúde, finanças, ensino e trabalho. O código que organiza o campo de batalha é o mesmo que organiza a logística da vida cotidiana. E é essa superposição que produz o fenômeno da dominação invisível: a lógica militarizada do dado, da antecipação, da vigilância e do controle infiltra-se nas camadas mais sutis da convivência social, sem se anunciar como tal.

Esse movimento foi detalhado no artigo “O Código do Capital: a arquitetura invisível da dominação algorítmica global”, em que se demonstrou como o poder contemporâneo não se exerce mais fundamentalmente por força direta ou por lei escrita, mas por meio de infraestruturas técnicas que moldam as condições de possibilidade da ação social. O algoritmo, nesse contexto, torna-se uma forma de normatividade discreta: ele não proíbe, mas impede; não comanda, mas condiciona; não legisla, mas parametriza.

Essa arquitetura é ainda mais potente porque atua em regime de opacidade. Ao contrário do poder disciplinar clássico, que se tornava visível ao se exercer, o poder algorítmico se exerce sem deixar traços claros de sua intencionalidade. Sua força reside justamente na invisibilidade da mediação técnica, na naturalização das plataformas, na internalização da lógica da predição. E quando essa mesma arquitetura é apropriada diretamente por estruturas militares, o resultado é a instauração de um novo regime de guerra permanente, onde o inimigo é definido por padrões comportamentais, e a ameaça se mede por desvios estatísticos.

Estamos, portanto, diante de um deslocamento radical: a guerra já não é mais uma exceção à paz, mas a sua própria forma de gestão. A infraestrutura de IA das big techs, sob contratos militares, institucionaliza essa lógica como racionalidade operativa do mundo. E o mais perigoso é que, por operar no plano da eficiência técnica, ela parece neutra, inevitável, natural. Mas nada há de neutro na parametrização da vida por sistemas que respondem exclusivamente à lógica de mercado, ao lucro dos acionistas e aos interesses estratégicos das potências imperiais.

O que está em jogo, em última instância, é a própria possibilidade de autodeterminação coletiva. Não apenas dos indivíduos, mas dos povos, dos Estados, das democracias. Porque quando o campo da decisão é capturado por sistemas que operam sem controle público, em redes opacas, sob linguagens técnicas inacessíveis e fora da mediação política, a soberania deixa de ser uma questão jurídica e passa a ser uma questão de infraestrutura técnica. E é por isso que essa guerra não pode ser vencida com tanques ou decretos. Ela exige uma nova gramática crítica, capaz de nomear o invisível, desprogramar o inquestionável e reconstruir as bases públicas do comum.

Da guerra híbrida à ocupação institucional: o golpe das corporações.

A consolidação das Big Techs como peças-chave do aparato militar dos Estados Unidos é apenas o estágio visível de um processo mais profundo: a ocupação progressiva das estruturas centrais do Estado por interesses corporativos tecnológicos e financeiros, num movimento que hesitam muitos ainda em nomear, mas que se delineia com cada vez mais clareza como um golpe institucional em câmera lenta. Um golpe sem tanques nas ruas ou parlamentos invadidos, mas com contratos, códigos, APIs, plataformas e memorandos de entendimento. Um golpe de silício.

Essa ocupação não começou nos quartéis, mas nas nuvens. Passou pelo controle das infraestruturas de dados públicos, pelo fornecimento de soluções para segurança cibernética, pela intermediação da comunicação institucional, pelo mapeamento do comportamento de populações inteiras e pela integração da logística estatal com softwares proprietários. Cada vez mais, governos se tornaram dependentes de plataformas privadas para funcionar. Cada contrato assinado com empresas como Palantir, Amazon Web Services, Microsoft Azure ou Google Cloud significou delegar parte da soberania estatal a atores cuja lealdade é orientada pelos interesses do mercado e de seus acionistas globais.

No caso norte-americano, esse processo deu um salto com o ingresso formal de executivos das big techs nas estruturas militares. Mas o mais significativo é que essa lógica de ocupação já vinha operando nas sombras há pelo menos duas décadas — primeiro, nos campos da inteligência e da segurança; depois, na administração pública; agora, nas doutrinas militares. Ao mesmo tempo, fundos como a BlackRock, a Vanguard e a State Street ampliaram sua influência sobre essas corporações tecnológicas, transformando-as não apenas em gigantes operacionais, mas em instrumentos de uma engenharia global de poder financeiro e informacional.

É por isso que falar em “guerra híbrida” hoje não basta. O termo, que nomeia a combinação entre estratégias militares, informacionais, jurídicas e econômicas para desestabilizar adversários, precisa ser expandido para compreender que o alvo já não é apenas o inimigo externo. A guerra híbrida se volta agora contra o próprio Estado nacional, suas formas democráticas, seus mecanismos de deliberação, suas estruturas de accountability. E ela se realiza não pela destruição aberta, mas pela substituição funcional: corporações que assumem papéis centrais de governança sem o ônus da representação, da responsabilidade pública ou do controle popular.

O resultado é uma forma de governança opaca, baseada em eficiência técnica, linguagem corporativa e retórica da inovação, que redesenha o poder político a partir dos termos do capital informacional. Os sistemas de vigilância, predição e controle não são mais apenas ferramentas: tornam-se os próprios operadores da política contemporânea, dissolvendo fronteiras entre guerra, segurança, administração e mercado. Trata-se de um regime tecno-financeiro que neutraliza o Estado por dentro, com aparência de parceria público-privada, mas com implicações que mais se aproximam de uma privatização da soberania.

Essa dinâmica é visível também fora dos EUA. No Brasil, por exemplo, a penetração de plataformas digitais nos sistemas públicos, de educação, segurança e comunicação institui uma forma disfarçada de dependência estrutural. Os instrumentos da democracia passam a operar sob a lógica de empresas sediadas fora do país, cujos interesses colidem frequentemente com os projetos nacionais de desenvolvimento, inclusão ou soberania. A guerra híbrida, nesse contexto, não mira apenas a destruição, mas a captura e o redesenho das funções estatais fundamentais.

O que se assiste, portanto, não é apenas a ascensão das big techs ao poder militar, mas a transformação dessas corporações em agentes centrais de uma nova racionalidade de dominação, onde a distinção entre o que é civil, militar, público, privado, nacional ou transnacional já não se sustenta. O golpe não será televisionado — será executado em código-fonte, auditado por algoritmos e legalizado por contratos de prestação de serviço.

As evidências estão dadas: o tempo confirma a análise.

A história, por vezes, se move em silêncio — até o momento em que seus contornos se tornam visíveis demais para serem ignorados. Nos últimos anos, enquanto boa parte da comunidade internacional hesitava em compreender a escala das transformações em curso, alguns analistas já apontavam, com precisão desconfortável, que o poder algorítmico não era apenas uma ferramenta, mas a nova linguagem do domínio geopolítico. Essa leitura, que por muito tempo foi vista como alarmista, conspiratória ou excessivamente crítica, hoje encontra no noticiário cotidiano sua mais clara confirmação.

Não se trata aqui de reivindicar acertos passados por vaidade ou orgulho autoral. Trata-se de reconhecer que uma análise comprometida com a observação rigorosa das estruturas de poder, dos fluxos financeiros e dos mecanismos técnicos pode — e deve — antecipar os rumos estratégicos do mundo. Quando se escreveu, anos atrás, que a Palantir não era apenas uma empresa de software, mas uma extensão paramilitar do sistema de inteligência norte-americano; quando se alertou que as big techs estavam se convertendo em engrenagens de controle estatal operando à margem da política; quando se demonstrou que a arquitetura invisível do algoritmo preparava o terreno para uma nova forma de guerra sem campo de batalha — tudo isso foi dito com base em evidências, pesquisa e método.

O tempo, agora, valida o que antes parecia hipótese extrema. Os contratos oficiais, os cargos militares entregues a executivos de tecnologia, os sistemas de IA integrados à tomada de decisão tática e o surgimento de uma doutrina de segurança baseada na interseção entre dados e força — tudo confirma que a guerra do século XXI já não é travada com armas convencionais, mas com modelos estatísticos, sensores autônomos e plataformas cognitivas. E confirma, também, que as advertências lançadas anteriormente não eram excessos retóricos, mas esforço de lucidez diante de um mundo em rápida mutação.

Essa confirmação histórica é, ao mesmo tempo, responsabilidade e convocação. Porque não basta ter visto antes; é preciso nomear com precisão agora. O poder que se organiza sob o disfarce da inovação é o mesmo que impõe, sem debate, a reorganização das estruturas políticas e sociais em favor de interesses privados. A dissimulação que sustentava esse processo perdeu sua eficácia: o golpe corporativo está em curso — e documentado. Cabe, portanto, aos que não se renderam à lógica da neutralidade técnica seguir revelando o que tantos ainda preferem não ver.

O que resta à democracia diante da nova máquina de guerra?

Diante da consolidação de uma máquina de guerra movida por dados, governada por algoritmos e dirigida por corporações que já não operam sob os limites do controle democrático, impõe-se uma pergunta inadiável: o que resta à democracia? A quem pertence o futuro quando a soberania estatal é subcontratada, a decisão militar é automatizada e a política se vê cada vez mais reduzida a um software de gestão de crises?

A resposta, por mais difícil que seja, começa por reconhecer o tamanho do desafio. Não se trata apenas de propor regulações para plataformas ou leis de proteção de dados, ainda que isso seja urgente. Trata-se de compreender que estamos diante de um novo regime de poder, onde o comando não é mais exercido apenas por parlamentos ou tribunais, mas por arquiteturas informacionais que escapam à linguagem jurídica tradicional. A guerra moderna — e com ela o poder — está sendo reescrita em código-fonte.

É preciso, portanto, refundar o vocabulário da resistência. Já não basta lutar contra a censura ou defender a privacidade. É necessário questionar as infraestruturas mesmas da comunicação, da segurança, da administração pública. É preciso tornar visível o que hoje opera como axioma: que os sistemas que regulam a vida coletiva não podem ser geridos por empresas cuja lógica é a rentabilidade privada e a dominação por design.

A democracia, se quiser sobreviver, terá de se defender em um novo campo de batalha: o das infraestruturas técnicas. Isso significa disputar o código, reapropriar-se da engenharia, construir plataformas públicas, transparentes e auditáveis. Significa formar inteligências coletivas capazes de operar criticamente diante da opacidade algorítmica. Significa, sobretudo, recuperar o sentido da política como lugar do comum, onde decisões coletivas não são terceirizadas a máquinas ou mercados, mas construídas na tensão viva da deliberação pública.

Nada disso será possível sem uma profunda transformação da cultura política contemporânea. É preciso abandonar a fé ingênua na neutralidade tecnológica e enfrentar o fato de que a infraestrutura digital do mundo está sendo desenhada por agentes que atuam estrategicamente contra o próprio ideal democrático. Não se trata de distopia. Trata-se de realismo político diante de um cenário em que a guerra se travará menos por mísseis e mais por hegemonia informacional, controle de narrativas, acesso a dados e poder sobre as condições de possibilidade da vida.

É por isso que este artigo não se encerra. Ele se inscreve. Como documento, como diagnóstico e como convocação estratégica a todos aqueles que ainda acreditam que o futuro não pode ser decidido por linhas de código que não elegemos, nem por corporações que não respondem a ninguém além de seus acionistas. A democracia não será salva com fórmulas do passado. Mas pode ser reinventada a partir da lucidez crítica do presente.

Reynaldo Aragon é jornalista especializado em geopolítica da informação e da tecnologia, com foco nas relações entre tecnologia, cognição e comportamento. É pesquisador do Núcleo de Estudos Estratégicos em Comunicação, Cognição e Computação (NEECCC – INCT DSI) e integra o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Disputas e Soberania Informacional (INCT DSI), onde investiga os impactos da tecnopolítica sobre os processos cognitivos e as dinâmicas sociais no Sul Global.

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Last Update: 19/06/2025