No mundo hiperconectado do século 21, a soberania deixou de ser apenas uma questão de fronteiras físicas. Hoje, controlar fluxos de dados, plataformas digitais e infraestruturas tecnológicas tornou-se tão estratégico quanto controlar o território. 

É nesse novo campo de disputa que emerge o Cloud Act, sigla para Clarifying Lawful Overseas Use of Data Act (Lei de Esclarecimento sobre o Uso Legal de Dados no Exterior, em tradução livre). Trata-se de uma lei dos Estados Unidos que permite ao governo acessar dados armazenados fora de seu território, desde que estejam sob o controle de empresas sediadas em território norte-americano.

O que, à primeira vista, pode parecer uma medida de segurança jurídica, na prática representa uma ampliação silenciosa do poder dos Estados Unidos sobre a internet global. Ao ampliar sua jurisdição a servidores e informações de outros países, o Cloud Act impõe uma nova forma de influência digital, que compromete diretamente a autonomia informacional de outras nações.

Explicando o Cloud Act: o que é e como funciona?

O Cloud Act foi aprovado nos Estados Unidos em 2018 com o argumento de modernizar as leis sobre acesso a dados digitais em investigações criminais. Na prática, ele permite que o governo norte-americano exija acesso a dados armazenados em servidores fora do território dos EUA, desde que estejam sob o controle de empresas americanas, como Google, Microsoft, Amazon e Meta.

Isso significa que, mesmo que um dado esteja fisicamente armazenado em um servidor localizado no Brasil, na Alemanha ou na Índia, basta que ele esteja vinculado a uma dessas empresas para que possa ser acessado por autoridades dos Estados Unidos mediante uma simples ordem judicial. Ou seja, a localização física da informação deixa de ser relevante, o que importa é a nacionalidade da empresa que controla esse dado.

Além disso, como as grandes corporações tecnológicas que dominam a internet global estão majoritariamente sediadas nos EUA, a aplicação do Cloud Act não é uma exceção: é a regra. A maioria dos dados do mundo, pessoais, corporativos ou até governamentais, circula por serviços ligados a essas empresas. Isso confere aos Estados Unidos uma vantagem informacional inédita, consolidando um novo tipo de poder: o poder de acessar e controlar dados alheios sob justificativa legal própria.

O Cloud Act não é apenas uma lei técnica sobre acesso a dados. Ele representa um salto geopolítico silencioso: uma forma de ampliar a influência dos Estados Unidos sobre o mundo digital sem precisar enviar tropas, firmar tratados ou estabelecer bases. Basta uma intimação judicial americana para que informações armazenadas em outros países passem a estar sob controle de Washington. Isso, por si só, já caracteriza uma forma de imperialismo jurídico digital.

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O desequilíbrio é ainda mais evidente quando se considera o papel central das big techs americanas. Empresas como Microsoft, Google e Amazon controlam grande parte da infraestrutura da nuvem global, incluindo datacenters localizados em países do Sul Global. Isso significa que uma quantidade imensa de informações sensíveis, de usuários comuns a órgãos governamentais, pode ser acessada sem consulta ou autorização dos países anfitriões. É um jogo em que os dados circulam globalmente, mas a autoridade permanece concentrada nos EUA.

Não por acaso, diversas nações têm demonstrado desconforto com esse arranjo. A União Europeia levantou preocupações sobre conflitos entre o Cloud Act e suas próprias normas de proteção de dados. A Índia reagiu com leis que obrigam o armazenamento local de informações sensíveis. E outros países começam a debater medidas semelhantes. Ainda assim, o impacto da legislação norte-americana continua profundo, especialmente onde a infraestrutura digital ainda é dominada por plataformas estrangeiras.

Para países do Sul Global, os efeitos do Cloud Act são ainda mais profundos e preocupantes. Ao contrário das grandes potências digitais, que possuem infraestrutura própria e capacidade de impor regulações robustas, muitas nações em desenvolvimento dependem de soluções tecnológicas estrangeiras para operar seus sistemas de comunicação, governança e até mesmo de segurança pública. Essa dependência cria um cenário no qual dados estratégicos, de cidadãos, empresas e instituições, estão sob risco constante de serem acessados por autoridades estrangeiras, sem qualquer mediação soberana. Não se trata mais apenas de pagar por um serviço, mas de ceder controle indireto sobre informações sensíveis.

Além disso, a ausência de políticas nacionais de proteção de dados, ou a fragilidade das que existem, torna esses países ainda mais expostos. Muitos não possuem marcos legais capazes de resistir à extraterritorialidade do Cloud Act, tampouco infraestrutura tecnológica para armazenar e processar dados internamente. O resultado é um ciclo de dependência que reforça assimetrias históricas: enquanto os dados circulam livremente, o poder continua concentrado nos mesmos polos de sempre.

Não se trata de tecnofobia ou protecionismo digital. Trata-se de reconhecer que, na era da informação, quem controla os dados controla decisões, comportamentos e rumos políticos. O debate sobre o Cloud Act, portanto, é mais do que jurídico ou técnico, sendo um símbolo da forma como o poder digital tem sido exercido no mundo: centralizado, assimétrico e muitas vezes invisível.

Admitir essa regra do jogo é aceitar que nossa autonomia informacional seja condicionada por interesses estrangeiros. É permitir que dados de governos, empresas e cidadãos possam ser explorados sem o devido controle nacional.

Por fim, em um cenário de disputas tecnológicas e redefinição da ordem internacional, a soberania digital não é um luxo, é uma necessidade. Reagir ao Cloud Act é o primeiro passo para construir alternativas, fortalecer marcos legais próprios, desenvolver infraestrutura local e repensar a forma como nos posicionamos no ciberespaço global. Porque, no fim das contas, quem não controla seus dados, também não controla seu destino.

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Last Update: 24/06/2025