Clichês do Blues e mitologia dos vampiros no terror racial ‘Pecadores’
por Wilson Roberto Vieira Ferreira
Desde “Corra!”, de Jordan Peele, o terror racial tornou-se um subgênero que vem chamando a atenção: série “Them”, “Barbarian”, “Us”, “Clonaram Tyrone!” etc. Mas essa junção entre o racismo, o sobrenatural e o fantástico vai além dos limites, de quebra renovando a mitologia dos vampiros. Estamos falando do filme “Pecadores” (‘Sinners”, 2025), de Ryan Coogler (Creed, Pantera Negra). Dois irmãos gêmeos voltam financeiramente bem-sucedidos do submundo de Chicago, para sua cidade natal no Delta do Mississipi no início dos anos 1930. Dispostos a inaugurar uma casa noturna de Blues. Mas enfrentarão um mal ainda maior do que deixaram para trás: vampiros ancestrais brancos sedentos por uma música que apaga as fronteiras entre a vida e a morte. Enquanto Coogler renova a mitologia vampiresca, empilha clichês brancos sobre o Blues, como, por ex., supostos pactos diabólicos por trás dos bluesmen. Para reduzir a questão do racismo uma questão de viés cultural: a ignorância e teimosia de pessoas que ainda não perceberam que os tempos mudaram.
Filmes sobre vampiros têm uma dificuldade em serem inventivos. As fórmulas e mitologias desse verdadeiro subgênero já foram testadas e aprovadas, repetidas e reformuladas. Das duas uma: ou estamos em um país distante do Leste Europeu (ou recebendo a visita suspeita de alguém nobre que veio de lá) cercado de água benta, réstias de alho, estacas de madeira, nasceres de sol ardentes e muitas cruzes; ou estamos em um cenário diferente (uma região urbana ou um deserto escaldante), mas com todos esses apetrechos. Cujo resultado são pastiches ou paródias.
Mas todas essas limitações ganham ares de rejuvenescimento (afinal, vampiros aspiram à vida eterna) com a onda atual do terror racial cujos filmes de Jordan Peele (Corra! e Nós) foram seminais, para depois abrir para o terror racial combinar-se com o de gênero – Parasita, série Them, Barbarian, Men, Clonaram Tyrone! etc.
O filme de Ryan Coogler, Pecadores (Sinners, 2025) é uma lufada de novidade às sagas vampirescas ao trazer para o campo do terror racial (o fantástico e o sobrenatural emergindo da tensão racial do preconceito, exploração e segregação) – dessa vez situa a mitologia dos vampiros em um terror gótico no Sul ensolarado dos EUA, Mississipi, com trabalhadores negros suados em extensas plantações de algodão, vigiados pela Ku Kux Klan na década de 1930 do século passado.
Michael B. Jordan interpreta Smoke e Stack, irmãos contrabandistas e ex-soldados que saíram de casa há muito tempo para lutar na Primeira Guerra Mundial antes de se estabelecerem em Chicago para trabalhar para a gang de Capone – em Chicago eles foram, golpistas, cafetões e assassinos. Eles estão retornando ao Delta do Mississippi com rolos de dinheiro e caixas de cerveja irlandesa para abrir uma espécie de bar dançante (“juke joint”) em uma serraria desativada comprada de um homem branco racista – capaz de jurar que a Ku Kux Klan não mais existe.

O filme se passa em um dia e uma noite em que o bar é inaugurado, cujo ápice é uma madrugada alucinante de estacas de madeira, muito sangue e gargantas cortadas que faria Um Drinque no Inferno (1996) em mero pastiche datado.
O diretor Coogler disse à revista Variety que o filme foi inspirado no amor de seu falecido tio James pelo blues. ele teve a ideia da premissa de uma famosa canção antiga chamada “Wang Dang Doodle”.
“A música é a história de um grupo de pessoas em uma pequena comunidade dando uma festa. Todos eles têm apelidos que sugerem que são gangsters”, explicou Coogler. “Eu pensei: ‘Ah, não seria legal se eu fizesse um filme de um dia — que é mais o meu tipo de filme favorito — onde esse grupo de pessoas, e todos que se juntam a elas são perigosos, mas elas encontram algo mais perigoso do que jamais poderiam imaginar” – clique aqui.
Esse é o problema de Coogler: pulou da mitologia tão repassada do vampiro, rejuvenescendo-a, para cair numa mitologia autoindulgente do Blues: a história do “blues raiz” de que o verdadeiro bluesman é aquele que transita entre o sublime da arte e o pacto obrigatório com o Diabo em uma encruzilhada qualquer. Uma mitologia que fascina principalmente brancos, sedentos por coisas “autênticas” ou “raiz”: ser adepto de uma música que transita entre a arte e o perigo, entre o sublime e o criminoso.
Claro, que tirando o Diabo ou quaisquer alusões míticas ou ocultas, essa dualidade é antes de tudo social: o Blues expressa a dor da exploração e segregação, da luta racial como uma das manifestações da luta de classes do velho Capitalismo.
Muitos apontam em Pecadores um filme que segue o modelo de terror racial iniciado por Jordan Peele. Mas esse humilde blogueiro vê exatamente o contrário.

Peele estreou a sua proposta do terror racial em Corra! Querendo ir para além do viés humanista liberal do racismo sempre visto por um olhar abstrato da compaixão – o racismo como consequência da ignorância e teimosia de pessoas que ainda não perceberam que estamos no século XXI. Ao contrário, em Corra! Peele via como consequência de uma estrutura política e econômica concreta que reproduz a desigualdade. Afinal, os vilões da narrativa eram brancos ricos liberais e eleitores de Obama.
Em Pecadores Coogler empilha uma série de clichês do Blues e dessa visão abstrata, cultural, não-materialista do racismo. Agora levado para a mitologia do vampirismo: negros que foram vítimas de antigos vampiros irlandesas cuja alma está aprisionada em corpos mortos-vivos, impossibilitados de se reencontrarem com as almas de seus ancestrais.
Da visão materialista e concreta da natureza do racismo (sem deixar o campo do sobrenatural) de Jordan Peele, passamos para Coogler que parece ceder ao canto da sereia dos cinemas populares megaplex – afinal, que esperança de sucesso um filme terá se não tiver o elemento de fantasia?
Tudo começa com um vampiro imigrante irlandês que se sente atraído pelo talento sobrenatural do jovem iniciante Sammie (Miles Caton). Confirmando o clichê branco do Blues: sempre há algo de demoníaco ou sobrenatural por trás da verdadeira alma talentosa do Blues.
O Filme
Estamos no Sul Profundo, no Delta do Mississipi no início da década de 1930, na cidade natal de Clarksdale dos irmãos gêmeos Smoke e Stack, que retornam com rolos de dinheiro e caixas de cerveja irlandesa para comprar uma serralheria abandonada para montar o primeiro bar com som de Blues ao vivo. Eles retornam de uma carreira nada abonadora: dos campos de batalha da Primeira Guerra Mundial para a Chicago de Al Capone, ganhando dinheiro com ilegalidade e contravenção.
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