O cirurgião francês aposentado Joël Le Scouarnec será julgado a partir de segunda-feira 24 no que é considerado o maior caso de pedofilia da história da França. O médico é acusado de agredir sexualmente 299 pacientes menores de idade. Mas associações de defesa das vítimas denunciam a omissão dos hospitais onde ele atuou e o “pacto de silêncio” de seus colegas médicos.

Previamente condenado a 15 anos de prisão, em dezembro de 2020, pelo estupro de quatro menores, duas delas suas sobrinhas, o médico volta aos tribunais para responder por agressões sexuais de 158 meninos e 141 meninas. A idade média das vítimas era de 11 anos na época dos atos.

Apesar de ter sido denunciado, Joël Le Scouarnec nunca foi incomodado durante sua longa carreira. O caso demorou décadas para ser descoberto, e só veio a público após o médico abusar sexualmente da filha de seus vizinhos de apenas 6 anos, em 2017.

De acordo com documentos confidenciais consultados pela AFP, muitos sabiam, ou suspeitavam, de sua atividade criminosa, principalmente em Quimperlé (oeste da França), onde atuou.

Em 2004, um relatório do FBI sobre 2.468 usuários franceses da internet que se conectaram a sites de pornografia infantil desencadeou uma investigação judicial. Entre eles estava Joël Le Scouarnec, que morava e atuava em Lorient, no oeste da França. No mesmo ano, o cirurgião obteve sua transferência para a cidade de Quimperlé, a apenas 22 km de seu lugar de trabalho anterior.

“Naquela época, o hospital de Quimperlé, como outros lugares da França, tinha dificuldades para recrutar, e a maternidade, à qual o departamento cirúrgico estava intimamente ligado, estava ameaçada de fechamento”, lembra Michaël Quernez, atual prefeito da cidade. “A chegada do novo cirurgião pode ter sido vivida como um alívio.”

A investigação continuou e, em 2005, Le Scouarnec foi condenado a quatro meses de prisão, com pena suspensa, por posse de pornografia infantil. Uma pena que não foi acompanhada de qualquer obrigação de tratamento ou proibição de exercer sua profissão.

Apesar do médico não ter informado seus chefes, um de seus colegas, o psiquiatra Thierry Bonvalot, soube dessa condenação por meio de um colega, que “banalizou as ações de Le Scouarnec”, lembra. “Ele disse que ele era um alcoólatra que se sentia solitário, que sua esposa não o queria mais e não me forneceu provas da condenação”, disse Bonvalot à AFP. “Só que muito rapidamente outros elementos chamaram minha atenção”, relatou.

Primeiro, Le Scouarnec defendeu um radiologista de seu departamento, Mohamed Fréhat, suspeito de estuprar suas pacientes — condenado a 18 anos de prisão por estupro e agressão sexual de 32 mulheres, incluindo oito menores.

Posteriormente, após operar um menino por cinco horas, Le Scouarnec ignorou os pais, que estavam preocupados.

Na época, Bonvalot era presidente da comissão médica do estabelecimento e pediu explicações ao cirurgião. “Ele contou a operação com tantas metáforas sexuais que fiquei horrorizado. Ele admitiu ter sido condenado por pornografia infantil”, lembra. “Eu percebi que ele era perigoso e pedi que ele renunciasse. Ele se recusou.”

O cirurgião francês aposentado Joel Le Scouarnec participando de seu julgamento por estupro e abuso sexual de quatro crianças, no tribunal de Saintes, oeste da França, em 2020.
Foto: Benoit PEYRUCQ / AFP

Alertas infrutuosos

Bonvalot denunciou o cirurgião ao diretor do hospital em 14 de junho de 2006, em uma carta, onde questionava “a capacidade do Dr. Le Scouarnec de permanecer calmo ao trabalhar com crianças pequenas”, referindo-se ao “seu histórico jurídico”.

O psiquiatra enviou uma cópia da carta em 19 de julho ao Conselho Departamental local da Ordem dos Médicos (CDOM). O carimbo que atesta sua leitura foi verificado pela AFP.

Bonvalot também falou sobre o assunto com o então prefeito, Daniel Le Bras, anestesista e colega de Le Scouarnec, a fim de alertar “o quadro de pessoal oficial e não oficial” do hospital. “Le Bras me disse: ‘Eu cuidarei disso pessoalmente’”, afirma.

Apesar dos alertas de Bonvalot, Le Scouarnec foi nomeado chefe do departamento de cirurgia, em 1º de agosto de 2006.

Para garantir sua contratação, a direção do hospital solicitou, como sempre, um extrato de seus antecedentes, onde nada constava de errado.

Advertido por Bonvalot, o CDOM entrou em contato com o tribunal competente para obter uma cópia da condenação. De acordo com uma troca de e-mails vista pela AFP, o conselho não recebeu uma resposta até 9 de novembro, após vários lembretes.

O CDOM informou então a Direção Departamental de Saúde e Assuntos Sociais (DDASS) local, que recebeu uma carta em 23 de novembro do diretor do hospital de Quimperlé defendendo Le Scouarnec.

O cirurgião é “sério e competente (…) é afável e mantém excelentes relações com os pacientes e suas famílias, bem como com a equipe”, escreveu ele, destacando que sua chegada “nos permitiu estabilizar nossa atividade cirúrgica de forma satisfatória”.

No dia 14 de dezembro, o CDOM organizou uma sessão plenária. Dos 19 médicos, 18 descartaram sancionar Le Scouarnec e decidiram “deixar o DDASS cuidar do assunto”.

Morte de paciente

Ao mesmo tempo, Yvon Guillerm, diretor da Agência Hospitalar Regional (ARH) da Bretanha, iniciou uma investigação no hospital devido a um caso que havia “sido relatado ao Ministério Público”, de acordo com uma carta datada de 13 de março de 2007, vista pela AFP.

Uma paciente operada por Le Scouarnec morreu durante a operação. Esta morte e a condenação do médico por posse de pornografia infantil “são, naturalmente, preocupantes”, insistiu o diretor na carta.

No dia seguinte, Guillerm enviou um relatório não assinado a Bernard Chenevière, então chefe do Centro Nacional de Gestão de Profissionais Hospitalares.

“Os fatos estão em contradição com as condições de moralidade necessárias” para exercer as funções de cirurgião, sublinha o relatório, rejeitando, no entanto, o “processo disciplinar” contra Le Scouarnec.

“Como o ministro (da Saúde) tem que reagir, a opção de uma queixa à Ordem parece mais adequada”, conclui o relatório.

No entanto, devido a mudanças no governo, nenhuma reclamação foi registrada no Conselho Nacional da Ordem dos Médicos.

“Quantas pessoas sabiam?”

Em junho de 2007, a investigação da ARH levou ao fechamento dos serviços cirúrgicos e obstétricos em Quimperlé.

Le Scouarnec assumiu um cargo em Pontivy, também na região da Bretanha, no oeste da França. O diretor da clínica onde foi contratado tomou conhecimento de sua condenação. A decisão foi encurtar seu contrato para “uma semana”.

Então, em junho de 2008, Le Scouarnec foi contratado para trabalhar no hospital Jonzac, a 600 km a sudeste de Paris, onde informou o diretor sobre os processos legais de que havia sido alvo. Ela ignorou os antecedentes do médico e Le Scouarnec trabalhou no centro de saúde até 2017.

“Quantas pessoas sabiam que ele era um pedófilo e o deixaram trabalhar com menores?”, pergunta uma vítima, que deseja permanecer anônima. “Eles sabiam e não fizeram nada. Quero que sejam julgados.”

A associação “La Voix de l’Enfant” (A voz da criança) apresentou uma queixa contra as instituições médicas por “colocarem os outros em perigo”, disse seu advogado Frédéric Benoist à AFP, denunciando “uma falha coletiva”. A associação “Face à l’inceste” (Diante do incesto) também apresentou uma queixa, destacando a “inação” das autoridades.

Uma “investigação preliminar” está “em andamento, sob acusação de não prevenção de um crime ou delito contra a integridade das pessoas”, indicou a promotoria de Lorient.

Cerca de 30 crianças foram estupradas ou abusadas sexualmente em Quimperlé pelo cirurgião, incluindo quatro em maio de 2007, de acordo com a investigação.

(Com AFP)

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Last Update: 18/02/2025