Cinderela na cultura coaching vira um conto de horror em ‘The Ugly Stepsister’, por Wilson Ferreira

Cinderela na cultura coaching vira um conto de horror em ‘The Ugly Stepsister’

por Wilson Roberto Vieira Ferreira

O filme “The Ugly Stepsister” (Den Stygge Stesøsteren, 2025), da diretora norueguesa Emilie Blichfeldt, é mais uma releitura de contos de fada da cinematografia recente. Ela pega o conto clássico dos irmãos Grimm, “Cinderela”, e inverte o foco: acompanhamos a história não mais do ponto de vista da heroína, mas da ótica da meia-irmã feia que a todo custo quer ser a escolhida do príncipe. Qual o preço da beleza? É quando o conto “Cinderela” se encontra com o horror corporal cronenbergiano. E também quando descobrimos que Cinderela, desde o início com os irmãos Grimm, foi uma história de horror. Até ser embelezada pela Disney. Mas os irmãos Grimm ainda buscavam ensinar para o leitor uma “moral da história”. Ao contrário da versão de Emilie Blichfeldt: vira um conto de advertência sobre zeitgeist atual da hegemonia das tecnologias do Eu da cultura coaching – gerir a si mesmo como marca para ter o maior impacto num mercado competitivo.

Vivemos uma onda de releituras ou visões alternativas dos velhos contos de fadas e outras histórias clássicas.  O romance que inspirou Wicked tem várias décadas, enquanto filmes como Malévola e Frozen remixaram e reimaginaram os vilões de outras fábulas icônicas em heróis há mais de dez anos. Enquanto esse ano a Disney lançou uma versão live-action de Branca de Neve sintonizada com a tendência atual de transformar a desigualdade e luta de classes em tema – mexer com o tom tranquilizador de princesinhas e rainhas de contos de fadas custou caro para as bilheterias de Branca de Neve.

Parece que nossa paciência se esgotou para narrativas simples do bem contra o mal. Ou um caso de fadiga em relação ao modelo de animação da Disney para as princesas – Por décadas as princesas higienizadas da Disney (românticas, brancas, de cabelos lisos, que esperam por seu príncipe encantado) foram o objeto de consumo de uma classe média orgulhosa de si mesmo.

Mas é inegável que talvez saibamos que os vilões sempre foram mais divertidos e que, por isso, narrativas que querem passar a “moral da história” não são mais bem-vindas.

Tudo isso para dizer que o que torna The Ugly Stepsister (Den Stygge Stesøsteren, 2025), da diretora norueguesa Emilie Blichfeldt , tão poderoso não é o fato de virar o jogo em relação a um conto de fadas clássico — ao contrário do conto de fadas, o ponto de vista se inverte e volta-se para as meias-irmãs feias de Cinderela. Francamente, estou surpreso que tenha demorado tanto para um filme simpatizar com as meias-irmãs supostamente caseiras e sem graça de Cinderela.

E o faz, nos colocando o conto em um mundo de terror sombrio e que magicamente reflete a concepção grotesca do conto original de Jacob e Wilhelm Grimm de 1812. O que torna The Ugly Stepsister poderoso é a revelação uma verdade sombria que provavelmente sabíamos secretamente o tempo todo: a história de Cinderela sempre foi uma história de terror, apesar das versões higienizadas da Disney.

O príncipe convidando a dedo (mediante convite oficial com pompas de um mensageiro uniformizado a cavalo) as mulheres virgens do reino para uma festa no seu castelo na qual escolherá a esposa e futura rainha do seu reino obviamente desperta nas pretendentes uma fúria pela beleza exterior que, em The Ugly Stepsister, se transforma numa loucura generalizada.

A novidade é que o foco não está mais em Cinderela – afinal, sua beleza exterior se a alinha com a seu interior, isto é, a beleza física reflete sua bondade e retidão moral. Essa é a lição que supostamente o conto quer passar.

Na versão dos irmãos Grimm, a monstruosidade está nas suas meias-irmãs, capazes até de decepar os próprios pés para poder vesti-los no sapatinho como qual o príncipe procura sua favorita que fugiu da festa no castelo antes da carruagem virar abóbora.

O curioso é que nessa releitura, o conto de Cinderela deixa o campo da lição moral para virar um conto de advertência. Ninguém vai mais longe em busca da beleza exterior quanto Elvira (Lea Myren), uma das meias-irmãs feias e que está no centro das ações.

O quão extremo isso irá podemos perceber logo no início, quando Elvira espreme uma espinha no nariz, com close extremo do “conteúdo” da espinha. “Extremo” é uma palavra suave para a abordagem da diretora Blichfeldt. O filme inclui larvas, dentes quebrados, um nariz quebrado, um procedimento de optometria no estilo Um Cão Andaluz de Buñuel, partes do corpo decepadas e, finalmente, uma imensa solitária tênia.

Qual o preço da beleza? O filme se deleita com o grotesco e o sangrento, levando as coisas ao limite, com uma inconfundível sensação de alegria. E a performance da atriz Lea Myren é sua parceira nisso. Sua atuação selvagem e desenfreada é crucial para explorar os absurdos pesadelos  que acompanhamos.

Portanto, podemos considerar The Ugly Stepsister o encontro de Cinderela com o terror corporal ao estilo cronenbergiano.

E por que de um conto moral, The Ugly Stepsister vira um conto de advertência? Certamente a melhor reflexão já feita sobre contos de fadas foi o do psicanalista Bruno Betelheim no livro clássico “Psicanálise dos Contos de Fadas”. Para Bettelheim, “Cinderela” é muito mais do que uma simples história de trapos à riqueza; é uma narrativa rica em simbolismo que aborda questões fundamentais da experiência infantil, como a rivalidade entre irmãos, sentimentos de desvalorização, conflitos edipianos e a jornada para a maturidade.

Para Bettelheim, quando a criança se identifica com a heroína, elabora seus próprios conflitos, encontra consolo na certeza de que as dificuldades podem ser superadas e vislumbra a promessa de um futuro em que seu verdadeiro valor será reconhecido, culminando na conquista da independência e na capacidade de formar relações íntimas saudáveis.

Ao contrário, a releitura de Cinderela pelo ponto de vista alucinado da meia-irmã feia é uma advertência do espírito do tempo atual da hegemonia das tecnologias do Eu baseadas na gestão performática dos efeitos da imagem exterior que imprimimos nos outros ao redor – em tempos neoliberais em que gerimos nosso próprio Eu como marca para ser bem-sucedida no mercado do empreendedorismo, experimentamos a evolução da velha teoria da força do pensamento positivo para a teoria coaching atual no qual a gestão da aparência é mais importante do que qualquer coisa.

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