Como representar no cinema a vida inútil de um burguês norte-americano? Mostre sua essência como um grande consumidor de coisas, principalmente jornais e jornalistas. Essa é a linha geral de Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941), dirigido por Orson Welles. Como fazer isso sem cair na caricatura ou na vilania simplificadora? Faça uso da forma narrativa, do aparato cinematográfico e do enredo para expor contradições que não visam apenas mostrar um personagem em ação, como no drama aristotélico, mas também as rachaduras do próprio sistema econômico que permite a existência de tal figura.
O filme estreou há mais de 80 anos e, ao longo de todo esse tempo, manteve de maneira notável a sua relevância artística, política e histórica. Acumula também uma grande fortuna crítica que, em sua grande maioria, não esteve à altura de sua complexidade narrativa, ora tecendo elogios superficiais – o maior filme de todos os tempos -, ora tratando-o como uma obra cheia de defeitos. Para entender melhor essa recepção, recomendo o texto O Projeto Inacabado de Cidadão Kane, de Marcos Soares que, à luz da crítica materialista, oferece uma análise sobre o filme e suas condições de produção dentro da estrutura industrial da cinematografia americana da época, a vinculação desta com os bancos de Wall Street e a máquina de propaganda montada a partir da fórmula aristotélica adaptada às necessidades do mercado de entretenimento de massas.
Origens: o Mercury Theatre e a importância do teatro para Orson Welles
As origens de Cidadão Kane estão no teatro, mais exatamente no Mercury Theatre, uma companhia fundada pelo diretor e pelo dramaturgo John Houseman em Nova York em 1937, na sequência da montagem da ópera The Cradle Will Rock* (O Poder vai Dançar), que foi censurada e acusada de comunista pelo governo americano. Essa peça foi produzida como parte da política de incentivos do New Deal, que criou o Federal Theatre Project, um projeto estatal de fomento que durou três anos.
Outra montagem de muito sucesso do Mercury foi a adaptação de Júlio César, de Shakespeare, dirigida por Welles, que a ambientou na Itália fascista. Essa montagem, também de 1937, estabeleceu a companhia como um grupo da cena política da esquerda e da vanguarda no período. Era composta por um elenco fixo de atores e técnicos, muitos dos quais acompanhariam Welles posteriormente em Cidadão Kane.
Em 1938, o Mercury Theatre passou a se apresentar no rádio com o programa “The Mercury Theatre on the Air”, transmitido pela Columbia Broadcast System (conhecida como CBS e hoje um conglomerado de mídia pertencente ao grupo Viacom). Foi ali que Welles produziu a célebre adaptação de A Guerra dos Mundos, de H.G. Wells, que causou pânico entre os ouvintes ao simular uma invasão alienígena que foi entendida como real.
O sucesso no rádio despertou o interesse dos estúdios de cinema. Em 1939, a RKO Pictures ofereceu a ele um contrato para o filme que seria Cidadão Kane, mesmo com suas credenciais de esquerda. O diretor contou com o grupo do Mercury Theatre, “o que fez com que o filme se constituísse em um trabalho coletivo cujo nível raramente seria alcançado em Hollywood”, segundo Soares. A escolha dos atores também rompeu com a cultura do star system que estava em seu auge naquele momento. Entre eles, destacam-se:
- Joseph Cotten: Jedediah Leland, amigo de Kane e burguês falido
- George Coulouris: Walter Thatcher, gestor financeiro e tutor de Kane e de seu patrimônio
- Agnes Moorehead: a mãe de Kane
- Everett Sloane: Sr. Bernstein, o cão fiel, que acompanha Kane por toda a vida
- Ray Collins: Jim Gettys, político que concorre com Kane nas eleições para governador do estado de Nova York
- Ruth Warrick: Emily Monroe Norton Kane, a primeira esposa de Kane, sobrinha do presidente dos Estados Unidos
- Paul Stuart: Raymond, o mordomo de Kane que o acompanha até o fim
- Dorothy Comingore: Susan Alexander, uma cantora sem talento e pobre que se torna a segunda esposa de Kane
O enredo e o foco narrativo
O filme narra a vida do personagem Charles Foster Kane, um magnata da imprensa inspirado em figuras como William Randolph Hearst. Em entrevistas, Welles chegou a afirmar que o personagem não representava um determinado indivíduo, mas uma fusão de elementos do poder e da cultura americana. A história se inicia com a morte de Kane em seu castelo, onde proferiu sua última palavra: “Rosebud”. Intrigado com o significado desse enigma, um jornalista investiga sua vida, entrevistando pessoas que conviveram com ele. A narrativa é construída a partir desses relatos fragmentados, que revelam o percurso de um homem que, mesmo acumulando fortuna e poder, termina solitário, cercado por lembranças de uma infância perdida.
A primeira cena do filme estabelece seu intento: vemos uma cerca de metal e a placa com o aviso de “no trespassing” (proibido entrar). Esse é o tipo de imagem que vale mais do que mil palavras: ela anuncia a propriedade privada, a base econômica do capitalismo, como o centro do enredo. Estamos em Xanadu, a enorme propriedade que Kane construiu para si mesmo, após seus fracassos como membro da alta burguesia de Nova York, onde vivem aqueles que realmente ditam os rumos do país, como os Rockefellers. Nesse ponto, podemos até dizer que Kane tem algo de semelhante com o midiático Trump de nossos dias e também com Elon Musk, dono do Twitter e herdeiro de minas de esmeraldas da África do Sul. Eles são figuras de um imaginário tradicional americano do self-made man.
Essa cena também estabelece uma das questões formais que diferenciam enormemente o filme de outros da indústria de entretenimento: o exercício do ponto de vista. Vale ressaltar que Orson Welles tinha apenas 25 anos quando dirigiu Cidadão Kane, era praticamente um autodidata e conhecia o trabalho de Bertolt Brecht e as vanguardas modernistas. Durante muito tempo, com a teoria francesa do autor, criou-se um mito sobre a sua genialidade. Evidente que seu talento individual deve ser ressaltado, contudo, a existência de uma cena teatral de vanguarda que permitiu a pessoas tão jovens criar obras como essa não pode ser subestimada, como também o fato de que, como apontamos acima, o trabalho coletivo foi fundamental para o filme alcançar os resultados propostos.
O ponto de vista do filme é fragmentado, criando um certo distanciamento ao narrado. Normalmente, o cinema comercial esconde as contradições por uma série de truques que, em geral, buscam a identificação da audiência com o personagem principal. Tal mecanismo evita o distanciamento crítico (elemento da teoria do teatro épico formulada por Brecht) e estimula o mergulho na história, tomada como realista. Aqui, a primeira imagem estabelece o primeiro narrador, aquele que chamamos de implícito e que cria uma certa coesão e nos dá pistas que vão além do que os personagens falam. Ele é perceptível também, por exemplo, nas famosas cenas de profundidade de campo em que é possível ver duas ações diferentes acontecendo.
Além dele, há outros cinco narradores: Thatcher, Susan, Leland, Bernstein e Raymond. Cada um avança e completa a história que é contada ao repórter. A fragmentação narrativa não apenas nega uma verdade coesa sobre Kane, mas distribui olhares determinados pela posição de classe de cada personagem: o capital, a pequena burguesia aderente, o trabalho doméstico, o artista frustrado e o intelectual acomodado.
A narração inicial é a reminiscência do encontro entre Kane, com 10 anos, e o especulador financeiro. Com seu ponto de vista, Thatcher conta a primeira compra e venda de um ser humano no filme. Nesse contexto, se todos os personagens são “coisas”, o mesmo vale para Kane. Ao longo do filme, o espectador percebe que não é apenas Kane quem se transforma em mercadoria, mas todos ao seu redor: esposas, empregados, jornalistas e até memórias. A mãe do garoto vende-o para o tutor que deverá zelar por sua educação e criação, garantindo a ela e ao marido uma renda de 50 mil dólares por ano e a administração de sua fortuna: uma mina de ouro que pertencerá ao jovem por herança. Após esta, outras transações comerciais são narradas pelos demais personagens, cada um com uma visão de sua relação com o milionário.
Em comum, todos são agregados de Kane e estão unidos a ele por dependência. No geral, são pequeno-burgueses. Cada um apresenta sua versão de acordo com sua função e sua classe social: Susan tem como emprego a posição de esposa, porém o valor é alto, dela também é exigido que se torne uma cantora de ópera bem-sucedida. Bernstein é fiel e leal e conta a história de Kane como se ele fosse uma espécie de mito particular. Leland tem o nascimento, mas é dependente financeiramente, o que sugere que sua família perdeu tudo na crise de 1929. Thatcher, o financista racional, administra o patrimônio de acordo com as regras do mercado, seja ele uma mina de ouro ou uma criança. Raymond, como mordomo, no lugar mais baixo nessa hierarquia, é o único sem muitas ilusões.
O jornalismo e a prostituição
A compra do jornal The New York Inquirer estabelece a questão da propriedade privada dos meios de produção no filme. No entanto, aqui não estamos falando de uma manufatura de sapatos ou de carros, mas da fábrica de discursos, com forma de notícia, e de seu uso para manutenção da burguesia como classe dominante. No filme, Kane usa o jornal de acordo com seus caprichos e interesses de classe. Ele quer se eleger governador e tem ambições políticas. Há uma cena em que ele compra toda a redação do principal concorrente, o Chronicle. O acontecimento é celebrado por um show de coristas com quem Kane dança efusivamente. A relação entre a prostituição e o jornalismo se estabelece:
“A sequência, na verdade, tomou o lugar de outra, prevista na primeira versão do roteiro, mas nunca filmada, que mostraria uma orgia num bordel, mas a relação entre a compra dos jornalistas e a prostituição permanece na versão final do filme. O interesse da sequência está tanto no fato de que ela demonstra a mercantilização do trabalho intelectual, na medida em que a “fidelidade ideológica” dos jornalistas mostra ser um objeto de troca como outro qualquer, quanto no processo dialético de demonstração de que o cinema, ao “coisificar” a imagem de pessoas e objetos (…), é um instrumento privilegiado para exposição do processo de compra e venda generalizado que constitui a vida no capitalismo” (Soares, M. p. 189).
É impossível não perceber a atualidade do tema. Quem acompanhou a história da operação lava-jato na mídia brasileira sabe do que estou falando. O uso da notícia como uma forma de propaganda não é uma novidade do atual momento histórico. É possível que Welles tenha escolhido o tema da mídia após a repercussão do episódio radiofônico da Guerra dos Mundos.
Na atualidade, é importante refletir sobre o fato de que as tecnologias evoluíram, mas os princípios que governam as empresas jornalísticas não mudaram. Nesse sentido, falar em “fake news” ou “pós-verdade” é um debate ralo que esconde a luta de classes. O fato é que a imprensa e seus profissionais alugados permanecem cães fieis da burguesia. A pequena burguesia empregada por esses capitalistas apenas se adapta ao patrão e cria seu discurso de maneira muito competente.
Nas décadas de 1930 e 1940, apesar das enormes crises, havia uma promessa que infelizmente foi combatida e derrotada. Cidadão Kane mostra por dentro o conflito entre o trabalho de produção de notícias e as notícias como mercadorias. O cinema de vanguarda não esconde as contradições do capitalismo e não se esconde na fórmula que divide o mundo entre vilões e mocinhos.
*O link leva para o filme O Poder vai Dançar, dirigido por Tim Robbins em 1999, e que conta a história dessa montagem e de sua censura.
O texto citado está na seguinte referência bibliográfica: SOARES, M. “O Projeto Inacabado de Cidadão Kane” in Crítica Cultural Materialista, São Paulo, Humanitas, 2008.