A China, flanqueada por Rússia e Índia, utilizou a cúpula da Organização de Cooperação de Xangai (OCX) realizada neste domingo (31) e nesta segunda-feira (1), em Tianjin, para lançar um chamado por uma nova ordem mundial multipolar, em contraposição à hegemonia dos Estados Unidos e à guerra tarifária de Donald Trump.
O encontro, que reuniu mais de 20 líderes de países do Sul Global, serviu de palco para Pequim se apresentar como alternativa estável diante do unilateralismo ocidental, com Xi Jinping defendendo “verdadeiro multilateralismo” e condenando a “política de poder”.
A cena mais emblemática do encontro foi protagonizada pelo primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, pelo presidente da Rússia, Vladimir Putin, e Xi Jinping.
O premiê indiano e o presidente russo chegaram de mãos dadas até o líder chinês, e os três formaram um círculo sorridente, cercados por tradutores e câmeras. Em outro momento, Modi juntou as mãos com Putin e Xi, num gesto que foi interpretado como um recado político direto a Washington.
O episódio, que repercutiu nas redes sociais e na imprensa internacional, reforçou o simbolismo da cúpula: Índia, Rússia e China exibindo proximidade em um momento de forte contestação ao papel dos EUA.
Para analistas, as imagens carregaram um claro componente de mensagem. “A ótica é uma parte fundamental desta cúpula, e a Casa Branca deveria compreender que suas políticas levarão outros países a buscar alternativas para atender aos seus interesses”, avaliou Manoj Kewalramani, especialista em relações sino-indianas do Takshashila Institution. A declaração foi dada ao The New York Times.
Eric Olander, editor do China-Global South Project, foi mais incisivo ao interpretar o encontro: “Se o presidente dos EUA e seus acólitos pensaram que poderiam usar tarifas para pressionar China, Índia ou Rússia à submissão, esse encontro mostra o contrário.”
China e Índia carregam uma longa rivalidade geopolítica, marcada por disputas fronteiriças desde os anos 1950 e agravada por confrontos militares no Himalaia, como o embate de 2020 que deixou dezenas de soldados mortos e levou à militarização da fronteira de 3.800 quilômetros.
Além da coreografia diplomática, Modi ainda compartilhou nas redes uma foto ao lado de Putin dentro da limusine Aurus blindada do presidente russo, em outro gesto de aproximação que sinalizou a disposição da Índia de afirmar seus laços com Moscou e Pequim em meio ao litígio comercial com Trump. Recentemente, a Casa Branca taxou Nova Delhi com tarifas de 50%.
A OCX se consolida como palco de contestação ao unilateralismo ocidental
Além da cena simbólica entre os três líderes, a cúpula reforçou o peso da Organização de Cooperação de Xangai como espaço de contestação à hegemonia ocidental.
Fundada em 2001 por China e Rússia e expandida em 2017 com a entrada de Índia e Paquistão, a OCX reúne hoje 27 países, que somam cerca de 40% da população mundial. O comunicado final condenou “medidas coercitivas unilaterais” e sanções econômicas que violam a Carta da ONU e as regras da OMC, em referência implícita às tarifas de Donald Trump.
Em seu discurso de abertura, Xi Jinping pediu que os países-membros se unam contra a “mentalidade de Guerra Fria, confrontos de blocos e intimidação”, numa crítica velada às políticas dos Estados Unidos.
O líder chinês defendeu ainda a criação de um banco de desenvolvimento da OCX, maior integração econômica e um novo sistema de governança global capaz de “superar o monopólio” das potências ocidentais.
Putin, por sua vez, afirmou que a organização revive o “verdadeiro multilateralismo” e pode servir de base para “uma nova estabilidade e segurança na Eurásia”, diferenciada dos modelos eurocêntricos.
Ele repetiu acusações de que o Ocidente é o responsável pela guerra na Ucrânia e destacou a ampliação das relações comerciais e energéticas com Pequim.
O encontro também funcionou como demonstração da capacidade da China de capitalizar as fissuras abertas pela guerra tarifária de Trump.
Analistas ouvidos pela imprensa internacional ressaltaram que a cúpula em Tianjin projetou uma narrativa alternativa de liderança global, em que Índia, Rússia e China aparecem como polos de estabilidade diante da imprevisibilidade norte-americana.
Para Pequim, esse posicionamento busca consolidar a ideia de que a integração do Sul Global pode servir de contrapeso ao unilateralismo ocidental.
Um chamado por uma nova ordem multipolar
Nos discursos oficiais, os líderes reforçaram o eixo político da cúpula. Xi Jinping apresentou sua “Iniciativa de Governança Global”, afirmando que “a governança global chegou a uma nova encruzilhada” e que os países do Sul devem “se opor ao hegemonismo e à política de poder” para construir um sistema mais justo.
O presidente chinês insistiu que a Organização de Cooperação de Xangai deve servir como “pilar de uma ordem multipolar”, impulsionada pelo comércio, por bancos alternativos e por uma integração econômica que dispense a dependência do dólar.
Vladimir Putin ecoou a mesma visão ao elogiar a retomada do que chamou de “multilateralismo genuíno”, ressaltando que os acordos em moedas nacionais entre os membros da OCX criam as bases de “um novo sistema de estabilidade e segurança na Eurásia”.
Segundo ele, esse arranjo se diferencia dos modelos eurocêntricos porque “não permite que um país garanta sua segurança às custas dos outros”.
Narendra Modi, por sua vez, destacou que Índia e China devem ser vistas como “parceiros de desenvolvimento, não rivais”, e frisou que a paz e a estabilidade na fronteira himalaia abriram espaço para uma nova fase de cooperação. Ao mesmo tempo, aproveitou para demonstrar que Nova Délhi não está isolada: lembrou que as tarifas de 50% impostas por Donald Trump não comprometem sua capacidade de cultivar alianças estratégicas no âmbito da OCX.
Com essa convergência de discursos, o encontro de Tianjin se transformou em uma plataforma de contestação explícita ao sistema internacional liderado pelos Estados Unidos, projetando a China, ao lado de Rússia e Índia, como eixo articulador de uma nova ordem mundial.
Novos mecanismos econômicos e promessa de integração tecnológica
Além da retórica política, a cúpula também resultou em anúncios concretos de cooperação. Xi Jinping defendeu a criação de um banco de desenvolvimento da OCX, apresentado como passo fundamental para consolidar um sistema financeiro alternativo que reduza a dependência do dólar e a vulnerabilidade às sanções impostas pelos Estados Unidos.
O plano se articula com a meta de ampliar o uso de moedas nacionais nas transações entre os países-membros, prática que Moscou já vem intensificando em resposta ao bloqueio ocidental.
Pequim também anunciou 2 bilhões de yuans (cerca de 280 milhões de dólares) em ajuda gratuita aos países da organização neste ano e mais 10 bilhões de yuans em empréstimos a um consórcio bancário da OCX nos próximos três anos.
A medida, segundo analistas, sinaliza que a China está disposta a assumir os custos financeiros da liderança regional, fortalecendo a integração do bloco.
Outra frente aberta por Xi foi a tecnológica. Ele propôs a criação de um centro de cooperação em inteligência artificial para os países da OCX, além de convidar os parceiros a participarem da estação lunar chinesa.
A ênfase em projetos de inovação mostra que a China pretende projetar seu modelo de desenvolvimento como referência para o Sul Global, contrapondo-se à instabilidade das políticas comerciais dos Estados Unidos.
Esses anúncios reforçam a narrativa de que a OCX não é apenas um fórum de segurança, mas um espaço de construção de alternativas econômicas, energéticas e científicas frente ao unilateralismo ocidental.
Com a presença ativa de Rússia e Índia, a estratégia chinesa busca consolidar Tianjin como vitrine de uma integração capaz de rivalizar com o eixo Washington-Bruxelas.