O governo chinês apresentou, nesta quarta-feira (10), o 3º Documento sobre a Política da China para a América Latina e o Caribe, uma diretriz ampla que atualiza prioridades políticas, econômicas, culturais e de segurança para a região. A iniciativa, longe de ser apenas diplomática, funciona como resposta direta ao recrudescimento da política externa do governo Donald Trump, que, ao relançar a Estratégia de Segurança Nacional, tentou ressuscitar a lógica de guerra fria da Doutrina Monroe no hemisfério.
Ao anunciar o documento, o ministro assistente de Relações Exteriores, Cai Wei, enviou recado claro a Washington: a China não aceita coerção nem imposição de alinhamentos. A frase, dirigida a países latino-americanos e caribenhos, ecoa a percepção de que os EUA voltam a pressionar o continente a “escolher lados” em meio à competição global entre grandes potências.
Nova política vem com crédito bilionário e rede de cooperações estruturais
O texto consolida acordos firmados no Fórum China–Celac, ampliando cooperação em 40 áreas e abrindo uma linha de crédito de US$ 9,3 bilhões (66 bilhões de yuans) para projetos em infraestrutura, energia, inovação tecnológica, finanças, agricultura, cultura e segurança.
Entre os eixos principais, destacam-se:
- Finanças: expansão do uso de moedas locais e compensação via yuan;
- Infraestrutura: participação ativa de empresas chinesas em obras estratégicas;
- Cultura e mídia: intercâmbios, coproduções e acordos de comunicação;
- Segurança: cooperação policial, militar, cibernética e humanitária;
- Governança social: políticas de combate à pobreza, saúde e integração entre povos.
O movimento reforça a ambição de Pequim de consolidar a América Latina como parceira estratégica de longo prazo, não apenas como fornecedora de commodities.
Documento funciona como gesto político em resposta a Washington
A apresentação do documento foi calculada. O anúncio ocorreu poucos dias depois de os EUA divulgarem sua nova Estratégia de Segurança Nacional, cujo texto revive explicitamente o espírito da Doutrina Monroe, defendendo que o hemisfério ocidental deve permanecer sob predominância norte-americana.
Trump, em entrevistas recentes, chegou a afirmar que países latino-americanos “talvez precisem escolher” entre EUA e China — discurso recebido com forte crítica por diplomatas da região em Pequim.
A presença de 24 dos 33 países da Celac na cerimônia — inclusive o Brasil — reforçou a leitura de que o evento foi pensado como contrapeso às rupturas provocadas pela política externa norte-americana. Embaixadores que participaram do encontro afirmaram, reservadamente, que o lançamento foi “uma mensagem direta a Washington”.
Pequim oferece estabilidade onde Trump oferece incerteza
A China explora um contraste político: enquanto Trump promete pressão, sanções e alinhamento compulsório, Pequim se apresenta como parceira de cooperação, investimento e previsibilidade. Cai Wei sintetizou o recado: “benefícios mútuos, ganhos compartilhados e nenhum cálculo geopolítico”.
A afirmação precisa ser lida no contexto da disputa global: ao negar explicitamente a existência de interesses geopolíticos, Pequim busca desarmar a narrativa de Trump de que a China representa ameaça ao hemisfério.
O gesto teve impacto entre diplomatas latino-americanos presentes, muitos deles desconfortáveis com a agressividade dos EUA. Um deles resumiu: “Ninguém aceita a doutrina Donroe”, referência irônica à mutação trumpista da velha Doutrina Monroe.
China aposta em multipolaridade e autonomia latino-americana
Pequim coloca a América Latina como aliada do Sul Global na construção de um mundo multipolar, com mais equilíbrio de poder internacional. Ao destacar a tradição de autonomia latino-americana, o documento dialoga diretamente com a insatisfação regional diante das pressões de Washington, reforçando a necessidade de representatividade, diversificação produtiva e soberania digital.
Ao mesmo tempo, a China espera contrapartidas:
- apoio explícito ao princípio de “uma só China”;
- cooperação em fóruns multilaterais;
- ambiente favorável para investimentos.
Brasil ganha espaço, mas precisa transformar diretrizes em política concreta
O Brasil participou ativamente da atualização da política — Lula esteve pessoalmente na reunião ministerial em maio — e é visto por Pequim como ator central para articular a região. A nova política amplia oportunidades para infraestrutura, digitalização, transição energética e inovação, mas também exige que Brasília mantenha equilíbrio entre China e EUA, agora sob tensão ampliada pela ofensiva geopolítica de Trump.
O documento, por si só, não resolve contradições nem garante investimentos automáticos. Mas muda o terreno estratégico, sinalizando que a China está disposta a disputar influência na América Latina com mais força, mais crédito e mais planejamento — exatamente no momento em que Washington tenta retomar o controle político do continente.
O futuro da relação dependerá de como a região — e especialmente o Brasil — transformará esse novo mapa de cooperação em políticas, projetos e oportunidades concretas para sua população.