Independentemente da concepção que se tenha sobre o assunto, o momento que estamos vivendo pode ser considerado histórico, pois está gestando, possivelmente, a transição de um império que se encontra em declínio para um novo protagonismo global. Dentre os muitos aspectos que explicam a ascensão da China nas últimas décadas, o mais impressionante é a sua capacidade de planejar a longo prazo e, claro, cumprir o que foi planejado. O plano “Made in China 2025”, lançado oficialmente em 2015 pelo Conselho de Estado chinês, ilustra bem essa rara competência. Ele surgiu da constatação dos dirigentes chineses de que, mesmo tendo a China alcançado a condição de segunda economia do mundo, o país ainda era muito dependente de tecnologia estrangeira e concentrava sua produção nas camadas inferiores das cadeias globais de valor.
Um dos objetivos do plano era superar a condição de “fábrica do mundo”, com uma economia voltada para produtos de baixo valor agregado, correndo até o risco de entrar em uma fase de estagnação econômica. Especialmente após a crise global de 2008/2009, que reduziu sensivelmente o crescimento da economia mundial, impactando também a China, que passou de uma média de crescimento de 10,4% no período 2000–2007 para 6,7% no período 2008–2024. A queda das médias históricas de crescimento está relacionada tanto à crise financeira global quanto, principalmente, à mudança de estratégia, que passou a dar ênfase à inovação e ao consumo doméstico.
O plano “Made in China” procurou também responder a riscos externos, como o embargo tecnológico advindo dos países ricos e as restrições em setores como semicondutores e aeronáutica. Essas restrições, que vêm de longa data, podem ser ilustradas pelo caso das empresas de tecnologia, em especial Huawei e ZTE (Zhongxing Telecommunication Equipment Company Limited). Em agosto de 2018, o governo americano proibiu o uso de equipamentos dessas empresas em órgãos federais, sob alegação de riscos à segurança nacional. Em maio do ano seguinte, o Departamento de Comércio adicionou Huawei, ZTE e 70 subsidiárias à lista de empresas sujeitas a restrições, dificultando muito o acesso a componentes e softwares fundamentais, principalmente semicondutores produzidos por empresas americanas ou que utilizassem, para sua produção, tecnologia dos EUA. A China continua dependente da importação de semicondutores, especialmente os mais avançados, mas vem rapidamente reduzindo essa dependência.
O plano, que é decenal (2015–2025), visa transformar a China, até meados do século XXI, em uma potência global em inovação, produção de alta tecnologia e domínio de setores estratégicos. Os dez setores industriais priorizados em 2015 foram: Tecnologias da Informação e Comunicação; Maquinário Automatizado e Robótica; Aeronáutica e Aeroespacial; Engenharia Oceânica e Construção Naval Avançada; Equipamentos Ferroviários Modernos; Veículos de Novas Energias (elétricos e híbridos); Equipamentos Energéticos (como energia renovável); Materiais Avançados (como compósitos e novos metais); Biomedicina e Equipamentos Médicos Avançados; Máquinas e Equipamentos Agrícolas de alta tecnologia. Para cada setor, foram definidas metas específicas, visando a parâmetros concretos para medir os avanços.
Os resultados são impressionantes. Nos dez setores industriais priorizados pelo plano “Made in China 2025”, o país hoje é considerado uma potência mundial nos seguintes: Energia Renovável (solar, eólica, baterias); Veículos de Novas Energias (elétricos); Equipamentos de Telecomunicações (5G); Construção Naval; Equipamentos Ferroviários; Robótica Industrial (em volume). Nos demais segmentos – aeronáutica, semicondutores, biomedicina, materiais avançados e máquinas agrícolas –, o país avançou significativamente, porém não atingiu autossuficiência plena ou liderança em inovação, dependendo em parte de tecnologias e componentes estrangeiros. Considerando a determinação de suas lideranças e população, e o fato de que a China possui parcerias consolidadas com mais de 150 países – com muitos dos quais mantém acordos de cooperação científica e tecnológica –, seria tolice duvidar que o país atingirá a liderança também nesses segmentos, nos próximos anos.
Corroídos por sistemas políticos combalidos e graves crises econômicas, e incapazes de empreender um esforço nacional da mesma envergadura, os países imperialistas dedicam-se a criticar e tentar conter o sucesso chinês. As acusações contra a China vão de protecionismo a distorção de mercado, favorecimento a empresas nacionais e uso de subsídios – práticas, aliás, também típicas de países que historicamente conseguiram se industrializar e desenvolver tecnologia e inovação. Chega a ser cômico que Inglaterra, EUA, França e Alemanha, formados sob forte protecionismo e outras políticas públicas, critiquem a China por utilizar exatamente o mesmo método. Especialmente agora, quando Trump decidiu retornar ao Século XIX em termos de política tarifária.
Se o plano “Made in China” tivesse ficado só no papel, os países imperialistas não estariam tão desesperados. Mas os resultados práticos já aparecem com força em setores estratégicos. A China tornou-se líder global na produção e consumo de veículos elétricos (BYD, NIO, Xpeng); no setor de telecomunicações, Huawei e ZTE já lideram as cadeias globais de 5G, superando gigantes ocidentais. Na área de energia renovável, a China consolidou-se como maior fabricante global de painéis solares, turbinas eólicas e baterias de íon-lítio. Em robótica industrial, a automação avançada está amplamente difundida nas fábricas chinesas, com incremento nas exportações desses equipamentos. O país também passou a se destacar na fabricação de materiais de alta tecnologia, como aço especial, ligas leves e novos materiais para transporte e infraestrutura.
O pano de fundo de todo esse processo é uma encruzilhada histórica relevante: a crise do imperialismo e a consolidação de um novo eixo de poder global com a liderança da China. Um sintoma desse cenário é o surgimento de grandes acontecimentos simultâneos, em curtos espaços de tempo, trazendo enormes incertezas. Ambiente no qual as decisões tomadas pelos países, possivelmente trarão consequências por décadas.
No modelo chinês, alguns aspectos se sobressaem na crescente capacidade do país de influenciar nações e atrair parcerias. A China não exporta só produtos, mas também sua capacidade produtiva, influenciando, cada vez mais, as cadeias globais de produção. Outro aspecto fundamental é a proposta de uma globalização diferente, fundamentada numa filosofia de “ganha-ganha”, na direção contrária da política normal dos EUA cujo princípio é “nós ganhamos tudo, vocês perdem o máximo”. No modelo de parceria proposto pela China, prevalecem a cooperação e previsibilidade, e não interferências nas políticas internas dos países.
Sob esse ponto de vista, a China é aquilo que o Brasil não conseguiu ser até hoje. Desde as reformas de 1978, o país manteve taxas de crescimento entre 8% e 10% e, mesmo com a crise de 2008, prosseguiu como uma das economias de crescimento mais acelerado do mundo – desempenho insuperável entre as grandes economias. A média de crescimento do PIB brasileiro no período 1980–2023 foi de apenas 2,2% ao ano. Enquanto a China, com seu projeto nacional, se tornou a “fábrica do mundo”, o Brasil enfrentou um processo precoce de desindustrialização.
Nas últimas décadas, a China transformou o investimento público maciço em infraestrutura, logística e tecnologia em um de seus principais motores de desenvolvimento. O Brasil, ao contrário, deixou sucatear sua infraestrutura, exceto por iniciativas pontuais, como os PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) 1 e 2. Segundo o Banco Mundial, a China tirou mais de 800 milhões de pessoas da pobreza entre 1980 e 2020. O Brasil conseguiu, por um período, reduzir a pobreza (entre 2003 e 2010), mas mesmo esse esforço foi interrompido por crises econômicas e pelo golpe de 2016.
Obviamente, as diferenças entre os dois países têm raízes em diversos fatores estruturais, históricos e conjunturais. A China passou por uma revolução em 1949 e, desde 1978, promoveu reformas econômicas fundamentais, logrando um grande salto industrial e tecnológico. A combinação de planejamento consistente e abrangente, assim como a continuidade das ações, possibilitou a saída da pobreza extrema, do maior número de pessoas na história conhecida, como vimos. O Brasil, por outro lado, principalmente desde o golpe de 1964, é marcado pela instabilidade política, aumento da pobreza, desindustrialização e crescente dependência de commodities minerais e agrícolas.
Na década de 1990, enquanto a China alinhava suas estatais aos objetivos estratégicos do desenvolvimento com distribuição de renda, a burguesia brasileira, corrupta e subserviente, promovia um dos maiores processos de privatização do mundo, entregando a preços de banana ativos estratégicos nas áreas de energia, mineração e telecomunicações. A política desenvolvida pela China nas últimas décadas, que transformou o país no motor industrial e tecnológico do planeta, ao mesmo tempo que melhorou a vida do seu povo, tem um componente imprescindível, que é a defesa intransigente de um projeto de país, nacional e soberano.