A China exibiu nesta quarta-feira (3), em Pequim, seu maior desfile militar em seis anos para celebrar os 80 anos da vitória sobre o Japão na Segunda Guerra Mundial. O presidente Xi Jinping presidiu a cerimônia ao lado do presidente russo, Vladimir Putin, e do líder norte-coreano, Kim Jong-un, em uma cena inédita que evocou a unidade antifascista do século XX e projetou um recado direto a Washington: a China não aceitará ser intimidada.
A cerimônia reuniu cerca de 50 mil espectadores na Praça Tiananmen e contou com a presença de mais de duas dezenas de líderes estrangeiros, entre eles chefes de Estado da Indonésia, Malásia, Irã e Cazaquistão.
A ausência de representantes de alto escalão dos Estados Unidos e da União Europeia destacou a divisão internacional em torno da guerra da Ucrânia e da ofensiva tarifária de Donald Trump contra Pequim.
Xi discursou no alto do Portão de Tiananmen, sob o retrato de Mao Tsé-Tung, afirmando que “a nação chinesa é uma grande nação que não teme tirania e se mantém firme sobre seus próprios pés”.
Ele declarou que a humanidade enfrenta novamente uma escolha decisiva entre “paz ou guerra, diálogo ou confronto, ganha-ganha ou soma zero”, acrescentando que a revitalização chinesa é “irreversível”.
O desfile teve início com 80 salvas de canhão em homenagem ao fim da guerra, seguidas do hasteamento da bandeira nacional. Soldados marcharam sobre um tapete vermelho, enquanto a multidão agitava bandeirinhas e saudava a cena.
No ápice do espetáculo, foram soltos ao ar 80 mil pombos e 80 mil balões, simbolizando a vitória da paz.
A imagem central do evento foi a caminhada conjunta de Xi, Putin e Kim pelo tapete vermelho. Foi a primeira vez desde 1959 que líderes dos três países apareceram juntos em público em um desfile em Pequim.

À época, Mao Tsé-Tung, Kim Il-sung e Nikita Khruschov compartilharam a tribuna para celebrar a vitória sobre o fascismo.
Ao abrir a celebração, Xi vinculou diretamente o passado e o presente. “Quando no passado foi confrontado com uma luta de vida ou morte entre justiça e mal, luz e escuridão, progresso e reação, o povo chinês se uniu no ódio ao inimigo e se levantou em resistência”, afirmou, sugerindo que os desafios atuais, impostos por tarifas, cercos militares e pressões externas, fazem parte da mesma disputa histórica.
Poderio militar em evidência
O desfile foi a maior vitrine do Exército Popular de Libertação desde 2019, com exibição de milhares de soldados e de sistemas de armas de última geração. Pela primeira vez, a China apresentou publicamente a tríade nuclear completa — armamentos lançados de terra, mar e ar.
Entre os destaques estavam o míssil intercontinental DF-61, de lançamento móvel; o DF-5C, versão modernizada com maior alcance; o JL-3, projetado para submarinos nucleares; e o bombardeiro estratégico H-6N, reconstruído para transportar armas nucleares.
A cena dos H-6N sobrevoando a Praça Tiananmen ao lado de formações de caças e helicópteros buscou reforçar que a aviação chinesa não é apenas defensiva, mas preparada para operações de longo alcance. Os mísseis intercontinentais foram arrastados por veículos blindados diante da tribuna, em sinal de prontidão e de dissuasão contra potências rivais.
Além da tríade nuclear, Pequim apresentou mísseis hipersônicos antinavio da série YJ, capazes de atingir alvos de grande porte, como porta-aviões. Foram exibidos os modelos YJ-15, YJ-17, YJ-19 e YJ-20, todos projetados para missões de ataque rápido em cenários de conflito no Pacífico.
Segundo analistas, esses armamentos são um recado direto aos Estados Unidos, cuja frota naval patrulha rotineiramente a região.

Outro ponto de destaque foram os drones de última geração. A apresentação incluiu aeronaves não tripuladas de combate, conhecidas como “leais escudeiros”, projetadas para voar em conjunto com caças tripulados.
Esses drones funcionam como multiplicadores de força: detectam inimigos, absorvem disparos e reduzem os riscos para pilotos humanos. A China é o único país a declarar que já possui esse sistema em operação.
O desfile também mostrou drones subaquáticos em forma de torpedo, designados AJX002. Em larga escala, esses equipamentos poderiam complicar o equilíbrio naval na região e desafiar rivais nos mares da Ásia.
Analistas militares apontaram que o surgimento desses drones surpreendeu pela dimensão e pela possibilidade de uso em guerras futuras.
Para reforçar a mensagem de superioridade tecnológica, a China apresentou sistemas antidrones descritos pela mídia estatal como um “triângulo de ferro”. O conjunto inclui artilharia, armas a laser de alta energia e dispositivos de micro-ondas.
Essa integração busca demonstrar que Pequim está preparada não apenas para lançar drones, mas também para neutralizar o uso de veículos não tripulados por adversários.
Xi evoca a Segunda Guerra para falar do presente
O desfile teve uma forte dimensão histórica, ancorada na memória da resistência chinesa contra a ocupação japonesa. A primeira formação militar atravessou a Praça Tiananmen carregando bandeiras das brigadas comunistas que lutaram nos anos 1930 e 1940.
Veteranos de guerra, muitos em seus 90 anos, foram convidados para assistir, inclusive um ex-combatente do Kuomintang, em gesto simbólico de unidade nacional contra o fascismo.
No discurso, Xi reforçou o papel do Partido Comunista como salvador da pátria. “O povo chinês resistiu à invasão japonesa sob uma frente unida defendida pelo Partido Comunista da China, salvando a civilização humana e defendendo a paz mundial”, declarou.
A frase reafirmou a centralidade do PCCh na narrativa oficial da guerra, em contraposição a interpretações históricas que atribuem maior protagonismo aos nacionalistas de Chiang Kai-shek.
O presidente russo, Vladimir Putin, aproveitou a ocasião para associar a experiência soviética à chinesa.
Ele descreveu a vitória na Segunda Guerra como prova da “disposição de defender a verdade histórica e a justiça”.
“Estávamos juntos então, permanecemos juntos agora”. Putin chamou Xi de “querido amigo”, acrescentou, agradecendo a Kim Jong-un pelo envio de soldados norte-coreanos para lutar ao lado da Rússia na guerra na Ucrânia.
A evocação da memória da Segunda Guerra não foi apenas retrospectiva. Xi deixou claro que vê paralelos entre as agressões externas de ontem e as pressões de hoje.
Ao falar da escolha entre “paz ou guerra, diálogo ou confronto”, ele não mencionou diretamente os Estados Unidos, mas a interpretação foi imediata: tratava-se de um recado à Casa Branca, que ampliou tarifas contra produtos chineses e reforçou sua presença militar no Indo-Pacífico.
O contraste com o Ocidente foi ainda mais evidente quando Donald Trump, pelo Truth Social, acusou Xi de ignorar o papel norte-americano na Segunda Guerra. Trump afirmou que a “grande questão” era se Xi iria “mencionar o sangue e o apoio massivo que os Estados Unidos deram à China para garantir sua liberdade contra um invasor estrangeiro muito hostil”.
Ele encerrou ironizando: “Por favor, envie minhas calorosas saudações a Vladimir Putin e Kim Jong-un, enquanto vocês conspiram contra os Estados Unidos da América.”
O porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, respondeu dizendo que “ninguém está tramando conspirações” e que Trump teria falado em “sentido figurado”.
Ainda assim, a troca de acusações reforçou o pano de fundo ideológico do desfile: enquanto a China e a Rússia procuram consolidar legitimidade no presente por meio da memória da vitória antifascista, os EUA tentam reafirmar seu papel indispensável na guerra de 1945.
Alinhamento com Putin e Kim reforça frente contra Ocidente
A presença conjunta de Xi, Putin e Kim foi interpretada como um marco político e diplomático. Foi a primeira vez que Kim Jong-un participou de um desfile militar do Exército Popular de Libertação.
O líder norte-coreano chegou acompanhado de sua filha, Kim Ju-ae, considerada herdeira política, embora ela não tenha aparecido no evento. No encontro bilateral com Putin, Kim declarou estar disposto a “fazer tudo que puder” para apoiar a Rússia.
Para a diplomacia chinesa, o gesto de reunir em uma mesma tribuna os líderes mais atacados pelo Ocidente simbolizou a construção de um novo eixo geopolítico. A imagem dos três caminhando lado a lado pelo tapete vermelho foi cuidadosamente planejada para ser lida como demonstração de unidade frente às sanções e bloqueios impostos por Washington e Bruxelas.
Essa aproximação não elimina divergências práticas. A Gazprom, empresa estatal russa de energia, anunciou ter fechado um acordo “juridicamente vinculante” para construção de um novo gasoduto até a China. Mas o ministério das Relações Exteriores chinês afirmou não ter nada a anunciar, indicando que Pequim não pretende ampliar de imediato sua dependência do gás russo.
Ainda assim, Xi anunciou isenção de vistos para turistas russos até 2026, em gesto de aproximação concreta.

A retórica, porém, é de convergência. Putin declarou que a visão de Xi para uma nova governança global é “urgentemente necessária em um momento de déficit de liderança”. Ao ecoar essa posição, Xi reafirmou que China e Rússia foram “os principais vencedores” da Segunda Guerra e têm a responsabilidade de defender os resultados desse triunfo.
A cena da tribuna também revelou a estratégia chinesa de se consolidar como centro de um bloco alternativo ao Ocidente.
Além de Rússia e Coreia do Norte, compareceram líderes do Irã, da Bielorrússia e de nações da Ásia Central, reforçando o projeto de uma rede multipolar. Ausentes estiveram os Estados Unidos, a União Europeia e o Japão, países que Xi acusa de tentar conter e suprimir a ascensão chinesa.
Essa divisão ficou ainda mais nítida na recepção que Xi ofereceu no Grande Salão do Povo após o desfile. Ali, o presidente chinês afirmou que a humanidade não deve retornar à “lei da selva” e reiterou que a China permanecerá “firmemente do lado certo da história”. A mensagem foi clara: Pequim se vê como pilar de estabilidade global em contraste com o unilateralismo ocidental.
Simbolismos internos e mobilização patriótica
O desfile também foi concebido como ato de mobilização interna. Xi vestiu traje no estilo Mao e percorreu a praça em uma limusine Hongqi, veículo símbolo da autossuficiência industrial chinesa.
A presença de antigos membros do Comitê Permanente do Politburo, como Wen Jiabao e Wang Qishan, reforçou a mensagem de continuidade e unidade no alto escalão. Ao lado de veteranos nonagenários, a cerimônia buscou transmitir que o Partido Comunista permanece guardião da soberania nacional desde a luta contra o Japão até os dias atuais.
A exibição das novas forças criadas em 2024 — a Força Aeroespacial, a Força do Ciberespaço e a Força de Apoio à Informação — mostrou que o país se prepara para guerras multidomínio, que incluem espaço, rede e inteligência artificial.
Xi declarou que o EPL “sempre foi uma força heróica na qual o Partido e o povo podem confiar totalmente”, reafirmando o vínculo entre política, sociedade e defesa.