Hoje, o compositor brasileiro mais renomado completa 80 anos, mas o azar não é só dele. Ao longo da vida, o artista é alvo de diversas homenagens, sim – mas também da longeva rabugice da grande mídia brasileira.
Na Folha de S.Paulo, Gustavo Alonso se presta a escrever sobre “o lado B de Chico Buarque”, já que “o lado A (…) todos conhecem”. Segundo o colunista, há muitos “pontos tortuosos da vida de Chico” – “vacilos que não podem ser glamourizados”. Um dos “paradoxos” é o fato de Chico ter apoiado o então peemedebista Miro Teixeira nas eleições para o governo do Rio de Janeiro em 1982. Tenha dó!
Um dia depois de Alonso, Sidney Molina também usa a Folha para relativizar o prestígio do aniversariante octogenário. Seu texto faz justiça a Chico ao pontuar que, além de grande letrista, se trata de um compositor com “personalidade musical sofisticada”. Mas peca ao frisar que uma “unanimidade nacional nos anos 60 e 70” passou a ter “um público mais restrito nas últimas décadas”. Sua tese é precisamente a seguinte:
“Até então ouvida em todos os rádios, a voz de Chico Buarque, responsável pela educação sentimental de todo um país e também pela vocalização da resistência política, passaria, pouco a pouco, a ser escutada apenas por seu próprio público. Quando rumava para a maturidade artística, o compositor deixaria de ter suas letras gigantescas e melodias marcantes aprendidas de memória e cantadas por gente de todas as idades e classes sociais.”
Pobre Chico – e pobre de nós, leitores. Chico nunca foi uma “unanimidade” com músicas tocadas “em todos os rádios”, nem tampouco está circunscrito hoje a “seu próprio público”. Mesmo no auge dos grandes festivais de música, na década de 1960, emissoras como Excelsior, Record e Globo chegavam a, no máximo, duas capitais do Nordeste.
Além disso, que diabo de “unanimidade” é esta que, em pleno apogeu, recebeu a maior vaia do mundo, ao disputar o 3º Festival Internacional da Canção em 1968? A bela e melancólica Sabiá – que tinha letra de Chico e música de Tom Jobim – cometeu o crime de vencer Pra não Dizer que não Falei das Flores, de Geraldo Vandré. À luz da História, as imagens de um Chico intimidado e constrangido com as vaias depõem mais contra o público. Mas unanimidade, enfim, não havia.
Da mesma maneira, Chico Buarque segue digno de uma reverência raríssima para artistas vivos que estão há quase 60 anos na ativa. Sua criação – que vai da música à literatura, passando pelo teatro – continua a ganhar versões pelas mãos de outros autores e recriadores.
É pouco comentada – mas digna de nota – sua relação com o cinema, iniciada aos 22 anos, quando Chico compôs uma música instrumental para o filme O Anjo Assassino (1966), de Dionísio Azevedo. Foi a primeira de dezenas de contribuições para longas de ficção ou documentários. De resto, três de seus romances – Estorvo, Benjamim e Budapeste – foram adaptadas para o cinema, assim como a peça Ópera do Malandro.
Se lhe falta uma biografia à altura, sobram livros e ensaios sobre sua obra. Só nestas semanas, foram lançados quatro, com destaque para Trocando em Miúdos – Seis Vezes Chico, de Tom Cardoso. O autor defende que “a política só fez mal ao Chico artista”, a ponto de o compositor preterir ou quase renegar algumas de suas canções mais engajadas.
Exageros à parte, Chico hesitou em aceitar o convite de sua gravadora, a Phonogram (atual Universal), para participar do Festival Phono 73, em São Paulo. A empresa queria promover seus contratados, mas esqueceu de combinar com a ditadura. Era 1973. Homens a serviço do regime militar cortaram os microfones de Chico e Gilberto Gil durante a execução de Cálice. Os dois só voltaram a cantar publicamente a música 45 anos depois, no Festival Lula Livre, em 2018.
Apesar de Você – que foi composta em 1970 e nos lembrava de que “amanhã vai ser outro dia” – é mais uma canção praticamente vetada por Chico em seus shows. Ele sempre negou que a ditadura fosse o tema da letra (tal como nega escrever letras autobiográficas), mas de nada adiantou. A lenda se impôs.
A política é visível, sim, no Chico cidadão. Pode-se dizer que sua adesão à Passeata dos Cem Mil, em 1968, no Rio de Janeiro, talvez seja de menor peso, tantos foram os artistas que se envolveram abertamente na manifestação, sendo muitos deles mais famosos e populares à época.
Mas, dos três expoentes máximos da MPB (Música Popular Brasileira), Chico é o único que votou em Lula em todas as eleições presidenciais disputadas pelo petista, diferentemente de Caetano Veloso e Gilberto Gil. No Golpe de 2016, nenhum ídolo se expôs mais do que Chico na defesa de Dilma Rousseff, o que inclui sua presença por horas na galeria do Senado enquanto a ex-presidenta apresentava corajosamente sua defesa.
O músico e professor José Miguel Wisnik, amigo de Chico, já o comparou ao protagonista do conto Um Homem Célebre, de Machado de Assis. De nome Pestana, o personagem é um artista que rejeita suas canções – polcas simples, mas de imenso sucesso popular. Porém, a despeito de um prolongado esforço, Pestana fracassa ao tentar compor músicas clássicas ou mais sofisticadas.
A comparação é injusta, porque Pestana, no afã de buscar algo maior, acaba em ruína e deixa de ser uma celebridade. Já Chico, ao vencer o Prêmio Camões – o mais importante para escritores da língua portuguesa –, provou de vez que o romancista, embora inferior ao músico, não deve nada à produção de seu tempo.
Seja qual for o Chico Buarque que você preferir, entre as tantas facetas do homem público, cabe celebrá-lo pelos 80 anos. Chico foi parte da resistência à ditadura e é parte da reconstrução nacional. Na música, na arte e na política, seu legado é muito mais que uma “alegria fugaz” ou “uma ofegante epidemia”. Viva Chico Buarque!