Durante a campanha eleitoral de 2018, o então candidato a governador Romeu Zema prometia privatizar as empresas estatais de Minas Gerais, incluindo o sistema de comunicação pública. A nova programação da Rede Minas, lançada em meados de julho, mostra que Zema, no segundo mandato, e seu partido passaram a olhar de forma diferente para o setor. Na segunda-feira 22, o programa Danizinha Protetora estreou na grade com “personagens que nasceram para defender as crianças usando o amor, a Bíblia e a coragem”. Danizinha é uma criação da pastora Daniela Linhares, filha do pastor Jorge Linhares, líder da Igreja Evangélica Getsêmani, uma das maiores do estado. Na página oficial da série infantil, encontra-se, entre outras, a mensagem: “Nosso lema é que Deus não erra! Menino é menino, menina é menina e os dois gêneros têm muito valor como nasceram!” Ou outra: “Quer tenhamos nascido meninos ou meninas, nascemos para a glória de Deus e o inimigo almeja macular esta verdade!”
A nova atração evidencia a forma como o governo passou a usar a empresa estatal para consolidar laços com lideranças evangélicas. “Vejo esta situação com tristeza e indignação, mas não com surpresa. A tentativa dos evangélicos de colocar um canal público a seu serviço não é de agora. A diferença é que um governo de extrema-direita se sente confortável para fazer isso sem temer as consequências”, avalia a professora e pesquisadora Ângela Carrato, da Universidade Federal de Minas Gerais. A programação infantil, destaca a acadêmica, é um dos pontos fortes da emissora, uma das poucas a oferecer atrações na parte da manhã na rede aberta, atendendo principalmente as populações mais pobres.
A ligação da Getsêmani com Zema não é nova. Em diferentes oportunidades, o governador usou o altar da congregação para fazer campanha a favor de Bolsonaro, inclusive ao lado da pastora Daniela. Em agosto de 2022, chegou a ser anunciado como “liderança religiosa” em um evento de apoio ao ex-presidente na sede da igreja.
A Rede Minas integra a Empresa Mineira de Comunicação EMC, da qual faz parte a Rádio Inconfidência. Em junho, rádio e tevê foram usadas para divulgar o Ore Comigo Music Festival, considerado o maior evento de música gospel da América Latina, realizado em Belo Horizonte com apoio do governo estadual, por meio da Secretaria de Estado de Cultura e Turismo.
A situação incomoda os trabalhadores concursados. Segundo um dos funcionários, que pediu que sua identidade fosse preservada, o uso político da estatal se dá de várias formas. “Chegamos ao ponto de vermos o telejornal ser usado para atacar um adversário político do Novo. Tivemos uma equipe deslocada para outra cidade só para fazer uma reportagem de briga de vizinhos para manchar a imagem de um candidato da cidade para atender aos interesses do partido do governador.” Outro trabalhador, que também pediu para não ser identificado, conta que uma das formas de manter a empresa sob controle é barrar os concursos. “Cada dia mais chega um novo comissionado. Eles vão colocando só pessoas indicadas pelo governo, então a tevê está entregue aos interesses do Novo.”
Outra atração nova do canal público é o Minas em Ação, anunciado como um espaço para retratar a segurança pública e o cotidiano das forças de segurança no combate à criminalidade, salvamento e apoio humanitário. Com apresentação do jornalista André Santos, ex-apresentador e editor-chefe do Balanço Geral de uma filial da TV Record no Acre, o Minas em Ação vai ao ar de 11 da manhã ao meio-dia, logo após a programação infantil. Internamente, o programa foi anunciado como a nova menina dos olhos do governador. A atração seria uma forma de melhorar a relação do Executivo com as forças de segurança, em especial com a Polícia Civil, que se mobilizou por aumentos salariais e se sentiu traída por Zema ao não ser atendida.
Danizinha Protetora é produzida pela Igreja Getsêmani, cujos líderes são aliados políticos de Romeu Zema
Ângela Carrato critica a inserção desse tipo de conteúdo em um canal de caráter cultural e educativo. “Mais uma vez, isso mostra uma visão de extrema-direita. A tevê pública pode e deve discutir a questão policial. O que deveria ser feito é uma análise observando o quadro social onde se inserem os problemas policiais, qual a origem da violência e quem é o alvo dela.” Lina Rocha, presidente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais de Minas Gerais e funcionária da EMC lotada na Rádio Inconfidência, resume a situação interna. “Existe um desconforto muito grande entre os trabalhadores, porque é visível o uso político sem respeitar o sentido original da comunicação pública. Tem muita gente dizendo que não aguenta mais.”
Em janeiro deste ano, dois funcionários morreram em um intervalo de menos de uma semana, por problemas de saúde. Na ocasião, o sindicato apontou que ambos estavam doentes e não se afastaram do trabalho por conta da falta de profissionais para substituí-los. As mortes mostram a situação precária a que estão sujeitos os trabalhadores. “Posso afirmar que, hoje, a situação é ainda pior”, afirma Lina Rocha.
Gustavo Mendicino, presidente da EMC, garante que os novos programas não destoam das funções atribuídas à comunicação pública. “Temos dois colegiados que decidem sobre a transmissão de algum conteúdo e essa decisão nunca é sozinha. Elas foram aprovadas pela diretoria colegiada e pelo conselho curador, que é um órgão deliberativo composto de funcionários concursados e pela sociedade civil.” De acordo com Mendicino, há anos a Rede Minas apresenta missas dominicais da Igreja Católica, e também cobre de forma intensa as expressões religiosas de matriz africana. Mesmo na programação infantil, afirma, houve a apresentação do programa Pequenos Mestres, que valoriza a cultura pastoril do Nordeste e isso nunca foi encarado como problema. O programa Minas em Ação, acrescenta, encaixa-se no caráter informativo e que, além das questões policiais, incluirá temas da área da saúde e do Corpo de Bombeiros. “Vamos enviar para um caráter educativo, principalmente na questão do trânsito, junto à Polícia Militar, que tem um bom trabalho nesse sentido.” As ligações políticas entre Zema e a igreja Getsêmani, alega, não interferem no trabalho da empresa estatal e o quadro de funcionários é formado por 69,5% de trabalhadores concursados e efetivos.
Na quarta-feira 24, Robson Sávio Reis Souza, presidente do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos Humanos, enviou ao governo e ao Ministério Público um pedido de explicação sobre o possível preconceito de gênero difundido pela série infantil. •
Publicado na edição n° 1321 de CartaCapital, em 31 de julho de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Venham a mim as criancinhas’