
Nos últimos cem anos, os atentados políticos demonstraram ter uma pontaria desconcertantemente seletiva. Tiros e bombas, essas ferramentas brutas de interrupção da história, raramente erram o alvo quando miram aqueles que ousam sonhar. Pacifistas, reformistas, radicais do bem, todos tombam.
Mahatma Gandhi, Martin Luther King Jr., Malcolm X, os irmãos Kennedy, o arcebispo Óscar Romero: homens que acreditaram ser possível curvar o mundo em direção à justiça foram eles próprios dobrados, com muita violência e muito sangue.
Os fascistas, por sua vez, parecem habitados por uma obstinação biológica. Sobrevivem a tudo. Passam incólumes por atentados, envenenamentos, tiros à queima-roupa e ameaças mirabolantes. Hitler sobreviveu a uma explosão. Mussolini desviou-se de projéteis com a desenvoltura de um acrobata.
Pinochet, Fujimori, Netanyahu, Trump, Bolsonaro. Nenhum deles saiu de cena pela violência. Ao contrário, retornaram das tentativas de eliminação com mais capital simbólico, como se a proximidade com a morte os tivesse ungido com uma espécie de autoridade transcendental. O que não os mata, os elege.
O que isso nos revela?
Talvez que a História tenha um gosto peculiar por ironias cruéis. Ou, mais cinicamente, que o fascismo, ao contrário da esperança, é protegido por forças que preferem fabricar heróis a enterrar cadáveres. Cada bala que erra um fascista não interrompe uma trajetória: inaugura uma campanha. O erro de mira transforma-se em milagre. E o milagre, por sua vez, em narrativa eleitoral. Nasce ali o messias da vez, o santo padroeiro da desinformação.
O caso mais recente ocorreu ontem à noite, em Bogotá. Miguel Uribe, pré-candidato à presidência da Colômbia, foi alvejado a tiros. Sobreviveu. Claro.
Passemos ao seu prontuário político, à capivara do elemento.
Miguel Uribe é neto de Julio César Turbay, ex-presidente da Colômbia (1978–1982), e filho de Diana Turbay, jornalista sequestrada e assassinada por Pablo Escobar durante a crise dos extraditáveis. Naquele período, narcotraficantes colombianos desencadearam uma campanha violenta contra o Estado para impedir a extradição de criminosos para os Estados Unidos.
Está no partido de oposição Centro Democrático, fundado pelo ex-presidente Álvaro Uribe Vélez, seu chefe político. Não são parentes, apesar do sobrenome. Álvaro é narcofascista em tempo integral, profeta do autoritarismo tropical, padrinho e referência confessa para fascistas como Nayib Bukele. Não apenas governou com punho de ferro e unhas sujas de sangue, como também orquestrou, num lavajatismo avant la lettre, uma engenharia de lawfare sofisticada.
Instrumentalizou o sistema judicial, alimentado por delações fraudulentas de milicianos das Autodefesas Unidas da Colômbia, para dizimar adversários políticos. Era um projeto de poder com duas pernas: uma legalidade armada de mentiras fabricadas e cuidadosamente plantadas na imprensa amiga, e uma ilegalidade institucionalizada, personificada por milícias que atuavam como extensão informal do Estado. Isso é o uribismo.
“Uribe”:
Porque informan que la izquierda colombiana mandó a tirotear al principal líder opositor de Gustavo Petro.pic.twitter.com/TPdoaGJPuB— Tendencias (@TTendenciaX) June 8, 2025
A CIA, que raramente diz a verdade em público, mas tudo registra nos seus arquivos, declarou que Álvaro Uribe foi um colaborador próximo do Cartel de Medellín em níveis elevados da administração pública. Essa informação só veio à tona com a recente desclassificação parcial de documentos. Imagine, então, o que permanece trancado nos arquivos “altamente confidenciais”.
Miguel é um fascista de boutique, embalado na estética neoliberal do século XXI, com verniz de meritocracia e alma de algoritmo. Não se contenta em repetir ad nauseam as mentiras de Álvaro. Ele as amplifica, as estiliza com filtros e as promove via hashtags patrocinadas. Nas redes sociais, é uma usina de desinformação, um influenciador do ódio, envolto em gravata e crucifixo. Agora, contudo, é também “vítima”. Também foi baleado.
Segundo o Globo, “o hospital disse que o estado de Uribe, senador de oposição ao atual governo e um dos favoritos na corrida eleitoral colombiana, é de máxima gravidade. O prognóstico é reservado.” Eis aí, em uma frase, toda a poesia trágica dos boletins médicos de ocasião, esse dialeto sagrado da imprensa que transforma “gravidade” em sinônimo de ressurreição política. É o gênero literário dos que nunca morrem. Pois o fascismo, ao contrário do amor e da democracia, tem sete vidas. E todas são bem alimentadas.
O momento exige extrema cautela, não com a saúde de Miguel Uribe, que vai muito bem, obrigado, mas com o uso político que se fará disso. Nós, brasileiros, conhecemos o roteiro. Ele ressurgirá em pé, brandindo a dor como bandeira, dizendo-se perseguido, injustiçado, tocado por Deus e abençoado pelas balas que não o matam. E, sim, muitos acreditarão.
O fascismo contemporâneo compreendeu o jogo. Precisa da violência, não para morrer, mas para renascer. E assim se reinventa, atentado após atentado. Quem morre são sempre os que ousam amar a humanidade, os que desejam repartir o pão e a terra, os que defendem a paz, mas não têm aparato de segurança.
A esquerda morre porque acredita. A direita sobrevive, ou ressuscita, porque calcula.
Diante do que leio nos jornalões, só tenho uma certeza: o candidato oficial do fascismo colombiano passa bem, e sairá ainda melhor deste atentado. No teatro do horror político latino-americano, a bala é apenas o ensaio. O espetáculo verdadeiro é a eleição.