A gigante americana de semicondutores NVIDIA enfrenta sua maior crise no mercado chinês desde que as sanções comerciais americanas começaram a restringir o acesso de Pequim a chips avançados de inteligência artificial. Em declarações recentes, o CEO Jensen Huang admitiu que as políticas protecionistas implementadas pela administração Trump efetivamente “destruíram” a posição dominante da empresa no segundo maior mercado mundial de tecnologia.
A participação da NVIDIA no mercado chinês de IA despencou de 95% para apenas 50% em quatro anos, uma queda vertiginosa que custou bilhões de dólares à empresa e abriu espaço para concorrentes locais como a Huawei ganharem terreno significativo. O impacto financeiro foi imediato: apenas a proibição do chip H20 para a China, decretada em abril de 2025, resultou em uma baixa contábil de US$ 5,5 bilhões nos resultados da companhia.
A guerra dos chips entre duas superpotências
O conflito tecnológico entre Estados Unidos e China ganhou novos contornos com as diferentes abordagens adotadas pelas administrações Biden e Trump. Enquanto Biden apostava na coordenação com aliados internacionais para isolar tecnologicamente Pequim, Trump optou por uma estratégia mais direta e unilateral.
O sistema de três níveis implementado por Biden classificava países em categorias distintas: nações “confiáveis” como Reino Unido, Espanha, Japão, Alemanha e Irlanda teriam acesso irrestrito aos chips americanos; um grupo intermediário enfrentaria cotas limitadas; e países como China e Rússia estariam completamente bloqueados. Esse modelo, que deveria entrar em vigor em 15 de maio de 2025, foi rapidamente revogado por Trump, que considerou o sistema “sufocante para a inovação americana”.
A nova abordagem de Trump foca em medidas unilaterais agressivas contra empresas chinesas específicas, particularmente a Huawei. O Departamento de Comércio americano declarou que o uso do chip Ascend da gigante chinesa “em qualquer lugar do mundo” constituiria violação dos controles de exportação dos EUA, embora tenha posteriormente suavizado a linguagem para evitar complicações diplomáticas desnecessárias.
Chips específicos no centro da disputa
Os semicondutores que alimentam a revolução da inteligência artificial tornaram-se as principais armas nesta guerra tecnológica. A NVIDIA, que detém cerca de 90% do mercado global de chips de IA, viu seus produtos mais avançados serem sistematicamente banidos do mercado chinês.
O chip H100, considerado o padrão-ouro para treinamento de modelos de IA, nunca foi legalmente disponibilizado na China. Em resposta às restrições, a NVIDIA desenvolveu versões “degradadas” especificamente para o mercado chinês: primeiro o H800, depois o H20, cada um com capacidades reduzidas para atender às exigências regulatórias americanas.
Mesmo assim, as vendas do H20 estavam “incrivelmente altas” no final de 2024, com gigantes chinesas encomendando mais de US$ 12 bilhões em chips antes que Trump proibisse completamente sua venda em abril de 2025. A medida forçou a NVIDIA a desenvolver uma versão ainda mais limitada, mas que pode não conseguir competir efetivamente com as alternativas chinesas emergentes.
A resposta chinesa: Huawei lidera a independência tecnológica
Longe de aceitar passivamente as restrições americanas, a China respondeu com um ambicioso programa de independência tecnológica liderado pela Huawei. A empresa, que já estava sob sanções americanas há anos, acelerou o desenvolvimento de seus próprios chips de IA e conseguiu avanços impressionantes.
Os chips Ascend da Huawei, particularmente os modelos 910C e 910B, foram rapidamente adotados por gigantes tecnológicas chinesas como Tencent, Baidu e ByteDance. O Ascend 910C, que integra dois chips 910B mais antigos, oferece até 800 TFLOP/s de poder computacional e largura de banda de memória de 3,2 TB/s, especificações comparáveis ao H100 da NVIDIA.
A Huawei planeja enviar 700.000 unidades de chips Ascend em 2025, segundo previsões da Mizuho Securities. Embora enfrente desafios técnicos – a taxa de rendimento de produção está em apenas 30% devido ao uso de processos de 7nm baseados em litografia ultravioleta profunda – a empresa conseguiu estabelecer uma alternativa viável aos produtos americanos.
Além dos chips individuais, a Huawei desenvolveu o CloudMatrix 384, sua primeira solução rack-scale que compete diretamente com o NVIDIA Blackwell GB200 NVL72. Essa capacidade de oferecer soluções completas, não apenas componentes isolados, representa um salto qualitativo significativo na estratégia chinesa de independência tecnológica.
O fenômeno DeepSeek abala Wall Street
O impacto mais dramático da estratégia chinesa de independência tecnológica veio de uma fonte inesperada: a startup DeepSeek, fundada há apenas um ano e meio, que conseguiu desenvolver um modelo de IA capaz de competir com os melhores produtos americanos por uma fração do custo.
O lançamento do modelo R1 da DeepSeek em 20 de janeiro de 2025 – coincidentemente no mesmo dia da posse de Trump – causou um terremoto nos mercados financeiros. O aplicativo iPhone da empresa ultrapassou o ChatGPT como o app gratuito mais baixado na App Store americana, enquanto as ações da NVIDIA perderam mais de US$ 600 bilhões de valor em um único dia.
A DeepSeek afirmou ter treinado seu modelo por apenas US$ 5,6 milhões, usando principalmente chips H800 disponíveis legalmente na China. No entanto, análises posteriores revelaram uma realidade mais complexa. A empresa possui uma infraestrutura computacional estimada em US$ 1,63 bilhão, incluindo pelo menos 50.000 GPUs da geração Hopper, com evidências de uso de chips H100 proibidos, possivelmente obtidos através de redes de contrabando.
Essas redes de contrabando tornaram-se um fenômeno significativo. Investigações jornalísticas identificaram oito redes distintas, cada uma movimentando mais de US$ 100 milhões em transações chinesas. As técnicas de evasão tornaram-se cada vez mais sofisticadas, incluindo a duplicação de números de série de servidores para enganar inspeções.
Declarações contundentes de Jensen Huang
O CEO da NVIDIA não poupou críticas às políticas americanas de controle de exportação. Em declarações na Computex de Taipei, Jensen Huang foi direto: “As premissas fundamentais que levaram à regra de difusão da IA provaram ser fundamentalmente falhas. Se os EUA quiserem permanecer à frente na corrida tecnológica, precisamos maximizar e acelerar a nossa difusão, e não limitá-la.”
Huang destacou como as sanções inadvertidamente fortaleceram a concorrência chinesa: “Os pesquisadores chineses de IA estão usando seus próprios chips. As empresas locais são muito determinadas. Os controles sobre exportação lhes deram o espírito para competir, e o apoio do governo acelerou seu desenvolvimento. Nossa concorrência é intensa na China.”
O executivo também questionou a premissa básica da política americana: “A ideia de que os EUA são o único país que desenvolve e fornece infraestrutura de IA é fundamentalmente errada. A China tem 50% dos desenvolvedores de IA do mundo, e é importante que, quando eles desenvolverem em uma arquitetura, o façam com a NVIDIA, ou pelo menos com tecnologia americana.”
Implicações geopolíticas da guerra tecnológica
O conflito vai além de questões comerciais, refletindo uma disputa mais ampla pela supremacia tecnológica global. Brad Smith, vice-presidente da Microsoft, resumiu a situação: “O fator número um que definirá se EUA ou China vence esta corrida é cuja tecnologia é mais amplamente adotada no resto do mundo.”
As sanções americanas criaram um efeito dominó global. A Coreia do Sul manifestou apoio aos fabricantes de chips para combater as ameaças tarifárias, enquanto a TSMC anunciou investimentos de US$ 100 bilhões nos Estados Unidos como forma de mitigar riscos geopolíticos. Empresas como Acer já aumentaram preços de notebooks em 10% devido às novas tarifas, e a Nintendo alertou sobre possíveis aumentos no preço do Switch 2.
A China, por sua vez, prometeu “medidas firmes” em resposta às recomendações americanas, acusando Washington de “intimidação” e abuso de restrições para “conter” o desenvolvimento chinês. Pequim deixou claro que não desistirá facilmente de seus objetivos tecnológicos, investindo pesadamente em capacidades nacionais para “fechar a lacuna tecnológica” com os Estados Unidos.
Perspectivas para o futuro
A situação atual representa um ponto de inflexão na indústria global de semicondutores. Especialistas alertam que a rivalidade tecnológica entre EUA e China está “cada vez mais arraigada nas políticas de segurança nacional de ambos os países”, tornando improvável uma resolução rápida do conflito.
Para a NVIDIA, o desafio é duplo: manter sua liderança tecnológica global enquanto navega por um ambiente regulatório cada vez mais restritivo. A empresa pode enfrentar o que Jensen Huang descreveu como um “fechamento efetivo” do mercado chinês se não conseguir desenvolver produtos que atendam simultaneamente às exigências americanas e às necessidades chinesas.
A Huawei e outras empresas chinesas, por outro lado, ganharam um impulso inesperado com as sanções. Como observou Angela Zhang, professora da Gould School of Law: “As conquistas da China em eficiência não são acidentais. Elas são uma resposta direta às crescentes restrições de exportação impostas pelos EUA e seus aliados.”
O futuro da indústria de IA pode depender não apenas de quem desenvolve a melhor tecnologia, mas de quem consegue construir o ecossistema mais robusto e amplamente adotado. Nesta corrida, as sanções americanas podem ter inadvertidamente acelerado a inovação chinesa, criando concorrentes mais fortes e determinados do que existiam antes das restrições.
A guerra dos chips entre EUA e China está longe de terminar, e suas consequências continuarão moldando o panorama tecnológico global nos próximos anos. Para empresas como a NVIDIA, adaptação e inovação contínua serão essenciais para sobreviver em um mundo cada vez mais fragmentado tecnologicamente.