Cento e onze anos de Ignácio Rangel, o cruzeiro do sul brasileiro

por João Victor Moré Ramos

Não é demasiado desafinar o coro dos contentes, insistindo, junto dos professores Armen Mamigonian e Ricardo Bielschowsky, que Ignácio Rangel, não só foi, como ainda é, “o mais criativo e original analista do desenvolvimento econômico brasileiro”. E nesse sentido, mais do que fazer homenagens de ocasião pelos 111 anos do infindo e ilustre mestre polímata, ou mesmo levantar monólogos entre “velhas estórias” e “novas teorias”, sobretudo as natimortas, é preciso defender o óbvio, e o óbvio nesses tempos de confusa sapiência é por si só revolucionário, tal qual seu pensamento singular e independente, típico daqueles “homens lentos” de quem fala Milton Santos e, “last, but not the least”, altamente dinâmicos.

Há exatamente setenta anos atrás, quando o velho marxista Ignácio M. Rangel pronunciava uma série de conferências no Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia e Política (IBESP) – reunidas em livro pela primeira vez em 1957 na Bahia (Livraria Editora Progresso) sob o título de Introdução ao Desenvolvimento Econômico Brasileiro – muito antes já havia ordenado, mesmo que empiricamente, a evolução sócio-econômica do Brasil, isto é, as chamadas dualidades brasileiras, que hoje oferecem uma constelação de subsídios fundamentais como teoria e método para as pesquisas que se ocupam, ou deveriam se ocupar, a intelligensia brasileira.

Ainda sobre a mesma obra citada, lançada em sua segunda edição pela Editora Bienal (1990), Rangel acrescentou um posfácio de importante monta crítica onde expôs “o desleixo dos autores da inefável teoria da inercialidade” inflacionária, bem como a outra vaga da intelectualidade que se fundia em um “rosário de planos recessivos”, que muito contribuiu para a estagnação econômica do país nos anos 1990, outrossim, a aversão a qualquer perspectiva de planejamento à longo prazo que permitisse a continuidade do desenvolvimento econômico e social brasileiro.

Ora, seria oportuno nesse fechamento do primeiro quartel do século XXI, retomar seu convite ao engajamento de encarar o problema da inflação como um epifenômeno inerente ao império dos ciclos econômicos de longa (Kondratiev) e média (Juglar) duração em nossas vidas, isto é, a começar pela dupla tarefa de aprofundar o conhecimento com precisão sobre os ciclos pari passu a promoção de um planejamento sério que busque os meios e os modos necessários de promover não só a recuperação econômica, mas a continuidade de sua expansão ao longo das décadas. É que, todavia, não há mais espaço para o planejamento ingênuo, outrora praticado no país feito às custas das finanças do Estado (reserva de mercado) que muito contribuiu para edificação do capitalismo industrial brasileiro através do vitorioso modelo de substituição de importações, mas, que hoje, a rigor, só é possível se pensados, como insistiu incansavelmente Rangel, a partir dos recursos sobrantes da economia nacional, longe, portanto, de simples transferências para o Estado via imposto ou crédito.

Em outros termos, é preciso planejar cada volta dos novos parafusos do desenvolvimento econômico, combinando os recursos ociosos disponíveis da capacidade ociosa do complexo tecido industrial nacional (e multinacional) que não se dê somente nas possibilidades de inversões à jusante – via leilões de divisas – nos setores de tecnologia nova, como se propõe as missões do Plano da Nova Indústria Brasil (NIB), mas, também, a montante, maximizando o potencial produtivo dos fatores (recursos naturais, emprego, capacidade instalada, etc.), das quais assegurariam o crescimento a longo prazo.  

Já não é novidade para aqueles que acompanharam o processo de industrialização brasileira (1930-80), e ainda acompanham de perto a permanência dos ciclos juglarianos, sobretudo em suas fases depressivas geralmente ancoradas no segundo lustro de cada decênio, que a economia brasileira tendencialmente cresce numa alternância de setores industriais, salvo algumas exceções, como foi o caso do quinquênio recessivo (2015-2021), quando se instalou a crise institucional pelas mãos “invisíveis” da ingerência estrangeira e, que, só após a pandemia do COVID-19, houve uma retomada do crescimento econômico em 2021 (4,6%).

No entanto, se regressamos no período de lançamento do primeiro Programa de Aceleração do Crescimento (2007) pelo segundo governo Lula, mesmo sob os efeitos da ulterior crise financeira em 2008, fica evidente que o renascimento da indústria naval, estimulado pela campanha do Pré-Sal (2006), foi um dos setores privilegiados do ciclo médio, saltando de 1.910 empregos em 2001 para 82.472 em 2014 (SINAVAL) – fato este que não deixa dúvidas sobre a eficiência do intervencionismo do Estado na economia, mesmo sob chuvas e trovoadas do imperativo tripé macroeconômico do laissez-faire.

Ao que tudo indica, nesse próximo quinquênio (2025-2030), com o anúncio das privatizações e as parcerias público-privadas em curso nos setores estrangulados dos serviços de utilidade pública – chegando ao total de R$1,6 trilhões em investimentos – somadas as reformas institucionais previstas, e uma certa dose de otimismo e pacificação do povo brasileiro, o país parece estar encontrando seu caminho, como se vê nos indicadores do mundo do trabalho, onde a taxa de desemprego (6,6%) foi a menor da série histórica iniciada em 2012, bem como nos números da balança comercial, tendo as exportações da indústria de transformação alçado as cifras de US$ 181,9 bilhões em 2024 – algo não visto por aqui desde 1997, e que exige maior atenção das autoridades em repensar os caminhos de planificação do comércio exterior.

Infelizmente, a dinâmica da dialética da capacidade ociosa visionariamente vislumbrada por Rangel desde os anos 1950, que hoje está mais do que provado como um imperativo básico do desenvolvimento industrial brasileiro, ao combinar as funções do Estado e da iniciativa privada em cada fase dos ciclos econômicos, hoje chega tarde em nossos arraiais, mas, que, felizmente, como disse o filósofo “utilius tarde quam nunquam” (antes tarde do que nunca).

João Victor Moré Ramos – Prof. Dr. em Geografia na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC)

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Last Update: 20/02/2025