no Amazônia Real

Censo 2022: os quilombolas entre a vida rural e a falta de direitos

por Eduardo Nunomura


No Brasil, há 476.393 domicílios com pelo menos um morador quilombola. No total, eles representam 1.330.186 pessoas, mas com a ampla maioria (820.906 ou 61,7%) vivendo em situação rural, aponta o Censo 2022. E é justamente no campo que os problemas de falta de água, de esgotamento sanitário e tratamento de lixo se revelam não apenas maiores, mas também empurram essa população para o século 20.

Um total de 25,3 milhões de brasileiros vive em zonas rurais, e nelas 87,2% convivem com problemas de abastecimento de água, à destinação do esgoto ou à coleta de lixo. Mas esse número saltou para 94,6% se analisar apenas a população quilombola que mora no campo. O acesso à água nas localidades de maior precariedade chega a ser quase quatro vezes maior entre os quilombolas (9,2%) do que para a população em geral (2,7%).

Menos de 10% da população brasileira lida com a ausência de coleta de lixo, direta ou indireta, na porta de sua casa. Para os quilombolas, esse número chega a 48,7%. Ou 77,5% se forem aqueles que moram dentro de territórios quilombolas. Cerca de 85% dos que vivem no campo, mas fora de territórios reconhecidos, convivem com fossa rudimentar, buraco, vala, rio, córrego, mar ou outra forma. Eles não contam com esgotamento por falta de banheiro.

Em outras palavras: a ausência de água encanada, de coleta de lixo, de sistemas adequados de esgotamento sanitário é mais comum em domicílios rurais com moradores quilombolas. A análise das condições de moradia, cujos dados se revelam agora na nova rodada de divulgação do Censo 2022, indicam disparidades gritantes no acesso a serviços básicos entre o urbano e o rural.

E é uma distribuição que se altera significativamente ao considerar se a moradia está dentro ou fora dos Territórios Quilombolas oficialmente certificados pela Fundação Cultural Palmares, vinculada ao Ministério da Cultura, e titulados pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Nestes 495 territórios, a concentração rural é ainda mais acentuada, atingindo 87,4%, enquanto apenas 12,6% vivem em áreas urbanas. Fora dessas áreas delimitadas, embora a maioria quilombola também esteja no campo (58,0%), a presença urbana é mais expressiva, alcançando 42,0%.

O Nordeste possui o menor percentual de população quilombola vivendo nas cidades (35,0%), seguida da região Norte com 36,6%. Já a de maior percentual quilombola em situação urbana ocorre no Centro-Oeste (68,0%), seguido de Sudeste (47,7%) e Sul (45,6%). Considerando apenas os territórios quilombolas, o Norte é a região com menor percentual de quilombolas em situação urbana, com 3,7%.

Pressão da sociedade civil

Quilombo Cachoeira Porteira, em Oriximiná, região oeste do Pará (Foto Antônio Silva /Agência Pará). 

Agora se pode ter uma ideia dessa desigualdade, porque a população quilombola foi incluída no recenseamento dos brasileiros. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) ouviu e recebeu colaborações de lideranças quilombolas para poder mapear essa realidade. E isso foi possível com a inclusão, grosso modo, de uma pergunta adicional simples: “Você se considera quilombola?”

A coleta de dados, o treinamento de recenseadores e o monitoramento foram adaptados para atender às especificidades dessas comunidades. Organizações quilombolas, como a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), foram decisivas para extrair dados confiáveis. O mapeamento respeitou o direito de consulta prévia aos quilombolas, nos termos da Convenção 169 da Organização Internacional de Trabalho. 

Pela primeira vez, a pesquisa oficial do IBGE investiga em larga escala o pertencimento étnico quilombola, um marco que atende a antigas demandas das comunidades e a recomendações internacionais. Nesta segunda divisão com esse recorte, o Censo 2022 oferece estatísticas sobre gênero, faixa etária, alfabetização, registro civil, características dos lares e mortalidade, tudo isso segmentado pela localização – cidade ou campo.

A população quilombola é mais jovem que a média brasileira, com uma idade mediana de 31 anos (no Brasil, é de 35 anos). A pirâmide etária sugere que os quilombolas residentes em áreas urbanas e dentro de Territórios Quilombolas apresentam um perfil de “menos jovens” em comparação com aqueles que vivem no campo. E também foi detectada uma queda gradual e leve da fecundidade entre as mulheres quilombolas que vivem nos últimos 15 anos.

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O índice de envelhecimento é 80,03 para os brasileiros (para cada 100 crianças e adolescentes de até 14 anos, existem 80 com 60 anos ou mais), enquanto entre os quilombolas é de 54,98. Esse dado permite entender se uma determinada população está ficando mais jovem (quilombolas) ou mais velha (brasileiros em geral) ao longo do tempo. Investimentos devem levar essa estatística em consideração na hora de formular políticas públicas.

Há diferenças na razão de sexo (proporção de homens para cada 100 mulheres). Em situação urbana, há mais mulheres quilombolas (92 homens para cada 100 mulheres), tanto dentro quanto fora de territórios. Já em situação rural, especialmente fora de territórios, os homens quilombolas são mais numerosos (104 homens para cada 100 mulheres), com uma proporção similar dentro dos territórios rurais (107,21 homens para cada 100 mulheres).

Problemas educacionais

Quilombo de Mamuná, em Alcântara Maranhão (Foto: Eduardo Queiroz/EcoVerde) .

Como o analfabetismo atinge mais fortemente quem vive no campo, e mais da metade dos quilombolas moram em situação rural, não é difícil imaginar quem deveria estar na fila de prioridades por mais educação. Os índices de analfabetismo entre quilombolas com 15 anos ou mais são mais elevados no meio rural, tanto dentro quanto fora dos territórios demarcados, em todas as faixas etárias analisadas. Se no Brasil, a taxa de alfabetização é de 93%, entre os quilombolas esse índice é de 81,8%.

Um dado positivo apresentado pelo Censo 2022 é o alto índice de registro de nascimento entre crianças quilombolas de até 5 anos que vivem em Territórios Quilombolas, alcançando 98,69%. A parcela sem registro (1,21%) é apenas ligeiramente superior à média nacional na mesma faixa etária.

A composição familiar também apresenta particularidades, com menor frequência de cônjuges do mesmo sexo e empregados domésticos, mesmo em Territórios Quilombolas. A presença de netos representa cerca de 6% dos moradores tanto em áreas urbanas quanto rurais.

Membros da CIDH visitam os quilombos de Alcantara,, Maranhão (Foto: Francisco Proner/FARPA/CIDH/2018).

 Eduardo Nunomura – Na Amazônia Real, exerce a função de editor de especiais. ([email protected]). Mestre e doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo, é professor de Jornalismo na Faculdade Cásper Líbero. Iniciou a carreira jornalística em 1992, no grupo Folha, e teve passagens pelo Estadão e pela revista Veja. Foi repórter especial por quase dez anos no Estadão.

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Last Update: 15/05/2025