Cenários para o Brasil com a guerra comercial entre EUA e China
por Fernando Marcelino
Com Washington e Pequim tentando infligir cada vez mais dor um ao outro e o resto do mundo sendo visto como dano colateral em sua guerra comercial, é difícil imaginar como seria um grande acordo para apaziguar a tensão. A China não deseja a guerra comercial, mas deseja menos ainda negociar numa posição de fraqueza. Por um lado, o governo Trump parece comprometido com uma estratégia agressiva de dissociação econômica, independentemente dos custos para as cadeias de suprimentos globais. Por outro lado, é provável que a China redobre o fortalecimento econômico interno e continue estabelecendo laços com parceiros comerciais fora da órbita dos EUA, priorizando países do Sul Global. Pequim ainda espera evitar uma guerra comercial total por meio de canais diplomáticos, mas, sem negociações comerciais formais agendadas no momento, não há perspectivas imediatas de distensão. O cenário segue em desenvolvimento e os impactos para os exportadores e para a economia brasileira ainda são difíceis de dimensionar. A guerra comercial, ao que tudo indica, está apenas começando e sua trajetória continua incerta.
A situação de confronto comercial entre os Estados Unidos e a China poderá afetar o Brasil, tanto de maneira positiva como negativa. Afinal de contas, em termos mundiais, os dois países respondem por mais de 40% do PIB e pouco mais de 20% do comércio. No caso do Brasil, há o risco de ser afetado por essa crise comercial dos dois, porque eles são também seus maiores parceiros comerciais: maiores compradores, vendedores e investidores. Qualquer movimento errado, do governo e entidades empresariais do Brasil, terá implicações negativas para importadores e/ou exportadores. É possível que o país consiga se equilibrar entre os dois contendores e saia mais ou menos como estava antes dessa briga, apenas porque a nossa participação no comércio mundial é inferior a 1% do total, ou seja, por não sermos compradores e vendedores suficientemente importantes.
Para o Brasil, é preciso um plano abrangente contingencial e se preparar para viver cenários incertos. Criar a consciência de cenários possíveis, além de ser um exercício estratégico, permite uma análise das possibilidades. Não é possível controlar o ambiente externo, mas é possível controlar a maneira como se reage e tomar as melhores decisões. Neste sentido, desenhamos três cenários possíveis para o Brasil.
Cenário 1: Guerra comercial de baixa intensidade, podendo explorar oportunidades com ambas potências.
A decisão tarifária do presidente Trump baseou-se nos déficits comerciais totais dos Estados Unidos com cada parceiro comercial, e não na tarifa efetiva imposta a produtos específicos. Dado que o Brasil mantém uma posição comercial relativamente equilibrada com os EUA, foi-lhe atribuída apenas a tarifa adicional básica de 10%. Com esse resultado, melhor do que o esperado, a reação do mercado no Brasil tem sido bastante positiva, refletindo uma sensação de alívio e de que o Brasil pode ser um “vencedor” relativo na guerra comercial global. Alguns enxergam que possíveis impactos positivos das tarifas de Trump para o Brasil vão desde ganho de competitividade de produtos brasileiros no mercado americano, frente a produtos sobretaxados de outros países, a aumento das vendas de commodities para a China, já que o país tende a reduzir suas compras dos Estados Unidos. A desvalorização do dólar poderia trazer alívio para a inflação brasileira, ao baratear produtos importados. Há também expectativa de que o aumento da tensão entre EUA e Europa possa impulsionar a implementação do acordo comercial entre Mercosul e União Europeia.
Os menos otimistas dizem que as medidas de Trump devem prejudicar a indústria e o setor de serviços do Brasil, mas que produtores de soja brasileiros devem lucrar com as medidas. Esse movimento estaria ligado exclusivamente a um incremento das exportações de soja para a China, resultado da barreira imposta contra a soja dos EUA. Estimativas apontam que só as exportações de soja devem crescer 4,8 bilhões de dólares (cerca de R$ 28 bilhões). Esse ganho, sozinho, tende a compensar a perda de 3,5 bilhões de dólares da indústria (R$ 20 bilhões) de 375 milhões de dólares do setor de serviços (R$ 2,2 bilhões) e mais 587 milhões de dólares (R$ 3,4 bilhões) de perdas de outros setores da agropecuária.
No curto prazo, isso pode ser verdade. Durante o momento de tensão, até se chegar a um acordo, a tendência é de crescimento das exportações para China. No começo de abril, as esmagadoras de soja chinesas adquiriram cerca de 2,4 milhões de toneladas no Brasil, quase um terço do volume médio que a China normalmente esmaga em um mês. Trata-se de uma medida protetiva da China para maximalizar suas posições de negociação com os EUA. Porém, mesmo neste cenário “otimista”, é preciso levar em conta que, além de maiores lucros para o agronegócio exportador, seguramente haverá maior pressão no preço de alimentos no país, que já está elevada. Com mais exportações e áreas de cultivo de soja, a expectativa é de aumento nos preços nacionais. Se a exportação brasileira passar das atuais 328 milhões de toneladas de soja para 500, por exemplo, isso significa perda considerável de áreas para produção de outros alimentos.
Neste cenário, se as coisas continuarem como estão, saímos mais ou menos beneficiados. Não serão necessárias mudanças drásticas nas políticas econômicas. É o famoso “jogar parado”. O problema é que, caso a guerra comercial se acirre ou um acordo seja feito, o que é bem possível, tudo pode mudar. Esse cenário “positivo” pode ser rapidamente revertido.
Cenário 2: Guerra comercial de alta intensidade, aumento de tarifas e sanções de ambos os lados, dificultando o comércio internacional.
Se a guerra comercial escalar e os efeitos do tarifaço de Trump se multiplicarem negativamente, com esfriamento da economia dos EUA e travamento de importantes cadeias produtivas, em conjunto com aumento das tarifas e a retaliação entre países, a expectativa é de aumentos dos riscos para o crescimento econômico e redução do comércio mundial.
Do ponto de vista macroeconômico, o efeito direto pode ser limitado. As exportações representam cerca de 18% do PIB brasileiro, e as vendas para os EUA representam cerca de 12% do total exportado — ou seja, 2,2% do PIB. É o segundo maior parceiro comercial do Brasil depois da China. No entanto, no nível microeconômico, as consequências podem ser mais significativas, especialmente em setores onde os EUA são um comprador dominante, como ferro e aço, aviação e etanol. E os Estados Unidos são o maior destino das exportações industriais brasileiras. Ainda que a China seja o maior destino das exportações brasileiras, é com os EUA que o Brasil tem uma pauta comercial mais diversificada e de maior densidade tecnológica. Além de petróleo, o Brasil vende para os EUA aeronaves, motores, produtos siderúrgicos, aparelhos de telecomunicação, medicamentos e equipamentos médicos. O número de empresas brasileiras que exportam aos EUA é mais de três vezes maior do que o de fornecedores que vendem, em sua maioria commodities, para a China. No ano passado o Brasil exportou cerca de US$ 40 bilhões e cerca de US$ 31 bilhões corresponderam a produtos da indústria de transformação.
Trump espera que as exportações brasileiras para os Estados Unidos diminuam em termos absolutos, já que alguns produtos podem ser substituídos por alternativas fabricadas nos EUA. Deve-se levar em conta o impacto nas exportações de peças e equipamentos produzidos no Brasil por subsidiárias de empresas norte-americanas. Por isso, é preciso cautela na análise da balança comercial Brasil-EUA num acirramento da guerra comercial. Assim como os EUA, economia brasileira está se desnacionalizando e desindustrializando nos últimos 40 anos. Os EUA são os maiores compradores de produtos manufaturados do Brasil, como insumos e equipamentos. A reindustrialização dos EUA – com base nas tarifas e aumento da oferta de energia – pode resultar na diminuição da demanda brasileira. Embora a taxa global brasileira tenha ficado em 10% até agora, alguns setores importantes serão impactados com taxas mais altas, como aço e alumínio, tarifados em 25% pelo governo Trump, independentemente do país de origem. A medida é significativa porque produtos derivados de ferro e aço são o segundo item brasileiro mais exportado para os EUA, tendo somado US$ 2,8 bilhões em vendas em 2024, ficando apenas atrás de petróleo (US$ 5,8 bilhões). O minério de ferro é o terceiro principal produto de exportação do Brasil no geral e também para os chineses, com um total de US$ 28,9 bilhões, enquanto a China comprou o equivalente a US$ 18,2 bilhões ou cerca de 63%. Além disso, a Casa Branca impôs uma tarifa de 25% às importações da indústria automotiva, afetando exportações de autopeças do Brasil. E há produtos para os quais o governo Trump disse ainda estudar novas tarifas, como cobre e madeira, ambos com relevância para o Brasil, colocando em risco a produção nacional em setores estratégicos e geradores de empregos.
Se guerra comercial entre China e EUA se acelerar, o Brasil ficará numa posição delicada. Embora no curto prazo se beneficie com o aumento da demanda chinesa do agro, o escalamento irá levar a retaliações futuras por parte dos EUA, com tarifas e sanções. Num cenário de acirramento da guerra comercial entre EUA e China, o mais provável é que os EUA busquem dificultar o comércio entre Brasil e China, assim como criem mecanismos tarifários para garantir a liderança na produção global de comodities, destacando-se a soja, milho, trigo e etanol. Além disso, a política de “substituição de importações” de Trump terá como alvo primário a Europa e a América Latina. Numa espiral que altere os fluxos comerciais de forma abrupta, a China pode aplicar embargos às operações de tradings norte-americanas, muitas em operação no Brasil, comprometendo o escoamento da produção nacional. Os custos de produção podem aumentar devido aos fertilizantes importados. Por fim, não se descarta que a manutenção da guerra comercial pode levar ao aumento dos estoques agrícolas internos dos EUA. O estoque em excesso deve baixar o preço, pressionando a cotação da soja, milho e trigo na Bolsa de Chicago.
Cenário 3: Novo Acordo “Fase 1”, podendo a China substituir as compras agrícolas dos EUA e os EUA fecharem seu comércio para o Brasil.
Em 2020, foi firmado a “Fase 1” do acordo entre EUA e China. O ponto central do acordo era uma promessa da China de comprar mais US$ 200 bilhões em produtos dos EUA ao longo de dois anos para reduzir o déficit comercial bilateral com os norte-americanos que chegou a US$ 420 bilhões em 2018. O acordo previa que a China aumentasse a compra de produtos manufaturados, agrícolas, energia e serviços dos EUA. As barreiras de comércio para complemento alimentar para lactantes, carne bovina, carne de porco, frutos do mar e biotecnologia agrícola foram aliviadas. A China devia comprar US$ 12,5 bilhões em produtos agrícolas dos EUA no primeiro ano e US$ 19,5 bilhões no segundo ano, comprar US$ 18,5 bilhões em produtos de energia no primeiro ano e US$ 33,9 bilhões no segundo ano, comprar US$ 32,9 bilhões em manufaturadas dos EUA no primeiro ano e US$ 44,8 bilhões no segundo ano e adquirir US$ 12,8 bilhões em serviços dos EUA no primeiro ano e US$ 25,1 bilhões no segundo ano. Naquele ano, 1.124 plantas de processamento de carne bovina, aves e suína ou instalações logísticas foram registradas na alfândega chinesa para exportação, ganhando acesso ao maior importador de carne do mundo.
Na avaliação de Larissa Wachholz, ex-assessora especial do Ministério da Agricultura para assuntos relacionados à China, quanto mais essa guerra tarifária se intensificar, mais perto Estados Unidos e China ficam de um acordo comercial. Uma hora esses países terão de se sentar à mesa e conversar, já que a economia de ambos é extremamente interligada. Esses dois países têm, inclusive, negócios conjuntos e triangulares – incluindo aí o Brasil, como as grandes multinacionais do agronegócio global, fornecedores de tecnologia, de sementes, de insumos. De forma geral, essas empresas são globais e é muito pouco provável que eles não cheguem a um acordo. Não se sabe se um acordo comercial possa acontecer nos próximos dias ou em um ou dois anos, mas o mais provável é que seja na linha do acordo comercial Fase 1 de janeiro de 2020, assinado no primeiro mandato Trump. O acordo determinava que a China se comprometeria com compras agropecuárias dos Estados Unidos, o que não foi cumprido porque logo em seguida entramos na pandemia de covid-19, que desestruturou o comércio global.
Se o cenário base é um acordo entre China e Estados Unidos, quais serão os termos? Neste acordo, o déficit comercial dos EUA deve ser um dos principais pontos de negociação. Em uma “reedição” da Fase 1, o agronegócio estar na mesa de negociações é algo fundamental. O acordo deve ser para que a China compre mais produtos dos Estados Unidos e o agronegócio deve entrar obrigatoriamente nesta negociação, inclusive como protagonista. Com commodities agrícolas é que a China poderia pender a balança mais a favor dos Estados Unidos, em um eventual acordo comercial. É o que ela já fez no acordo Fase 1, que não foi levado à frente. Isso é, há um potencial de essa negociação venha a direcionar determinadas compras para os Estados Unidos. Um acordo China-EUA deve apontar para maiores compras chinesas de mineiras e alimentos norte-americanos, já que a exportação da indústria deve manter as barreiras que visam dificultar a transferência de tecnologias sensíveis. Assim, a correção no déficit comercial passa por maior concentração de compras agrícolas chinesas nos EUA e queda na demanda do Brasil. EUA e Brasil competem entre si pelas importações de produtos similares para a China. O Brasil, maior exportador global de soja, vendeu 69 milhões de toneladas do grão para a China em 2024, totalizando US$ 35 bilhões. É 75% do total de exportações de soja. Os EUA exportaram US$ 12,84 bilhões em soja para a China em 2024, de acordo com dados do US Census Bureau.
Neste cenário, o principal afetado será o Brasil, pois além dos efeitos negativos de queda no comércio internacional, desestruturação de indústrias e serviços nacionais, também pode significar um profundo baque na exportação de grãos e mineiras na balança comercial brasileira. O Brasil tem saldo positivo em cerca de US$ 30 bilhões no comércio com os chineses, metade do total do superávit da balança comercial brasileira. O que se tem certeza é que uma paulada será sentida de verdade se as ações de Trump resultarem em aumento das compras de grãos e carnes dos EUA por parte da China – algo que ocorreu no final do primeiro governo Trump –, em detrimento das compras chinesas desses produtos do Brasil. Isso porque o Brasil não tem outra China a quem vender tantos grãos e carnes. Como o agro do Brasil apostou muito em um único megacliente, uma redução de 20% das compras chinesas de soja e carne bovina resultará em um desastre no setor empresarial da agropecuária brasileira. Se este cenário se concretizar, o Brasil enfrentará um cenário de recessão e inflação. Por um lado, com crise no setor agro-exportador pela redução da demanda chinesa. Por outro, com crise no setor manufatureiro pelas políticas protecionistas norte-americanas. Além disso, com maior desova de produtos chineses onde encontra consumo em expansão ou com menos barreiras.
Quando se observa a posição do Brasil, nota-se que uma situação de grande vulnerabilidade e fragilidade. O Brasil, se não escapar da política protecionista de Trump, da dependência do comércio agrícola da China e do Acordo EU-Mercosul, deve sofrer com mais desindustrialização, limitação políticas públicas e agravamento da nossa condição primário-exportadora. É irreal imaginar que políticas liberais sejam capazes de evitar que o Brasil seja prejudicado e, se possível até, aumentar a sua fatia de participação no comércio mundial e voltar a atrair investimentos produtivos. Na realidade, para o Brasil, trata-se de um cenário negativo, mas que pode se tornar catastrófico. Se não houver mudança no sistema econômico e geopolítico brasileiro visando melhorar substancialmente as capacidades estatais para negociar e enfrentar a nova situação, poderemos testemunhar a maior crise dos últimos anos.
Conclusão
Pode ser que a onda de choque de Trump favoreça um cenário venha a beneficiar o Brasil por alguma razão e que nada demais seja necessário, mas seria bem mais prudente evitar o cenário catastrófico que pode se desenrolar. Esperar para ver deixa o Brasil extremamente vulnerável diante seja pelo acirramento ou pelo acordo China-EUA. Se o governo não for pego de surpresa pela “imprevisibilidade de Trump” já é um começo para traçar as estratégias mais adequadas para não virar um peão no jogo de xadrez entre China e EUA. O Brasil precisa se preparar para seus efeitos imediatos: perda da soberania, aumento da inflação, redução das exportações e desindustrialização. É preciso desenvolver um roteiro claro que trace o horizonte com mais segurança e garanta o fortalecimento do país num cenário protecionista e perigoso.
Porém, o problema de fundo é que o Brasil foi um dos países onde a globalização e o liberalismo eram e ainda são considerados dogmas indestrutíveis e irrefutáveis. O Brasil está integrado à estrutura globalista na dimensão econômica, política, militar, ideológica e tecnológica. A classe política parece incapaz de fazer a transição para um novo Estado, seja em termos operativos, ou aspectos de visão de mundo, cultura política e administrativa. Ela se encontra atônita diante do desafio de preparar o Estado e a sociedade para se unirem em torno da nova ordem pós-globalista.
Se o governo pretende constituir-se como força dirigente diante da situação, terá que reformular suas prioridades práticas. Definir claramente o que se pretende para o futuro do país. Discutir e definir uma nova agenda interna, levando em conta as mudanças globais, para restabelecer o equilíbrio da economia e volta do crescimento e do emprego, o aumento da competitividade e investimentos. Quanto mais se posterga a formulação e execução dessa agenda, mais se fica longe de um entendimento claro, direto e objetivo sobre como estão as coisas e para onde se está indo. Seu objetivo fundamental deve ser reestabelecer a soberania nacional, voltar para si e buscar a autossuficiência de fornecimentos externos em setores estratégicos relativos à alimentação, produtos industriais, energia, sistema monetário e financeiro e poderio militar. Neste “despótico mundo novo”, é de um Estado forte que o Brasil precisa, que seja soberano, promotor da integração nacional, planejador, centralizado e unitário, capaz de levar adiante as transformações que impulsionem o desenvolvimento nacional.
Fernando Marcelino é analista internacional, doutor em sociologia na UFPR e militante do MPM – movimento Popular por Moradia
O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.
“Democracia é coisa frágil. Defendê-la requer um jornalismo corajoso e contundente. Junte-se a nós: www.catarse.me/jornalggn “