“João Pedro, [você] por mais de uma vez me perguntou se eu daria continuidade à sua luta, e eu nunca te dei minha resposta. Hoje eu te digo, com consciência ou sem consciência de luta, eu marcharei na sua luta, João Pedro, pro que der e vier.” (Elizabeth Teixeira, 1962)
O Nordeste continuava herdeiro de Canudos, cumprindo a sina de miséria e fome traçada pelos donos da terra, que não aceitavam vê-la dividida, nem seu povo organizado, uma gente sem eira nem beira que só podia ter serventia no eito, cavando o solo calcinado, de onde brotavam a riqueza e a prepotência do patrão.
A seca matava de um lado, o latifúndio de outro.
No início dos anos 1960, o Nordeste de miséria naturalizada ameaçava a paz da ordem natural do poder. Despertava a atenção, agora, quando a violência em seu paroxismo se deparava com a resistência de camponeses. Emergem na Paraíba e em Pernambuco as “Ligas Camponesas”, passa-se a falar na questão agrária, instala-se o que a repressão e a imprensa irão chamar de “conflito no campo”; o tema se politiza, chega à universidade, aos púlpitos, aos sindicatos, às tribunas dos parlamentos, mobiliza o movimento estudantil, empolga, divide, acentua divergências, põe a nu o conflito de classe, e a violência de uma ordem que reproduz a exploração secular do capital sobre o trabalho.
O sistema se assusta, a repressão se aparelha, o Estado cria organismos de intervenção no processo social, cuidando de atalhar o conflito mediante o desenvolvimento regional. Em 1952 é criado o Banco do Nordeste e em 1959 a Sudene, e Celso Furtado dá início à sua guerra contra as estruturas arcaicas. A autovisão do país muda, e muda sua percepção do Nordeste como problema. O discurso compreende agora o anacronismo da estrutura agrária, o mandonismo dos “coronéis” de baraço e cutelo, a exploração do Estado pelo patrimonialismo, o reacionarismo anti-desenvolvimentista da classe dominante.
João Goulart é presidente da República e o país fala em “reformas de base”, dentre elas a reforma agrária, o fantasma que vai assustar o sono da classe média; Francisco Julião, advogado das Ligas Camponesas, é eleito deputado federal em 1962, Miguel Arraes assume o governo de Pernambuco e faz usineiros se sentarem à mesa ao lado dos trabalhadores rurais, no Palácio das Princesas, para firmar o Acordo do Campo, um fato novo na luta pelo reconhecimento dos direitos humanos dos camponeses. O país mudava, era todo efervescência: discutia e debatia; buscava traçar ele próprio seu destino desde a rebelião civil de 1961, a Campanha da Legalidade comandada por Leonel Brizola, impedindo o golpe militar de 1961 (um trovão prenunciando a tempestade de 1964).
O país mudava porque se mobilizava. Se mobilizava em todos os sentidos e em todos os quadrantes, à direita e à esquerda. Mobilizavam-se o sistema e a repressão, mobilizava-se e crescia a violência do latifúndio que elegera como meta limpar os sertões da “praga” das Ligas Camponesas, expulsando da terra os camponeses que a elas aderissem, espancando os mais renitentes e simplesmente matando seus líderes, que para isso é que servem a polícia a serviço da terra e o trabuco dos jagunços. João Pedro Teixeira não se surpreendeu com- as ameaças, nem mesmo se assustou com as prisões e os espancamentos: sabia, sem medo mas sem bravaria, do alvo que se tornara desde 1955, quando organizou o Encontro dos Camponeses de Sapé (PB), ponto de partida para o nascimento das Ligas camponesas, mobilizando e politizando os trabalhadores rurais. Os fâmulos de ontem, Severinos destinados a ser eternamente Severinos na terra alheia, serviçais no corte da cana ou no caldeirão da usina, transformavam-se em sujeitos ativos de direitos. A dignidade do trabalho se associava ao pleito pela reforma agrária, que soava como música aos ouvidos dos progressistas.
As Ligas se espalham por todo o Nordeste e sobrevivem, como podem, ao combate ferrenho do latifúndio e de seus servidores: a polícia, o judiciário, a imprensa, os intelectuais orgânicos da direita; para a polícia e a chamada “elite” econômica são células de agitação rompendo com a paz do campo; seus dirigentes são agitadores comunistas a serviço de Moscou, financiados por Cuba. A repressão não conhece limites. Na tarde do dia 2 de abril de 1962, em uma emboscada, o latifúndio tirou a vida de João Pedro Teixeira, com três tiros de fuzil, pelas costas. Pedro já era um líder em todo o Estado, e seu assassinato provocaria grande revolta. Ao seu enterro, registram os jornais de João Pessoa, acorrem cerca de cinco mil pessoas.
(Por esse então a União Nacional dos Estudantes (UNE), uma entidade de massas, percorria o país, visitava as universidades, promovia atos políticos, apresentava shows e encenava peças teatrais. Com a diretoria viajava seu Centro Popular de Cultura, o CPC, liderado por Oduvaldo Vianna Filho e Carlos Estevão Martins. Os dirigentes da UNE eram Aldo Arantes, Marco Aurélio Garcia, Clemente Rosas Ribeiro e eu. Fomos ter em Sapé, município da zona da mata paraibana, naquele fevereiro/março de 1962, e participámos de grande concentração popular, em homenagem ao líder assassinado. Penso que nas filmagens desse ato Eduardo Coutinho começava a conceber seu Cabra marcado para morrer. Foi nessa contingência que conheci Elizabeth Teixeira, e me lembro dela como uma mulher ainda jovem, magra de aparência frágil, mas irradiando vida. Voltaria a vê-la, muitos anos passados, na companhia de Silvio Tendler; nós a entrevistávamos para programa político que produzíamos para um partido então de esquerda. Era a mesma mulher. Silvio relembra a beleza de seu depoimento).
Viúva de Pedro, Elizabeth, que já se destingira pela sua capacidade de liderança, assume a presidência da Liga Camponesa de Sapé e, na sequência, a presidência das Ligas da Paraíba, função que ocupará até 1964. Amplia a integração dos camponeses à resistência, dobrando o número de associados, e, reforçando a participação das mulheres, cria novas Ligas. Em 1964, aos 39 anos, perseguida pelos militares e pelos latifundiários, é trabalhadora sem terra, mulher de vida severina, viúva, carregando 11 filhos.
Com a chegada do golpe militar em Sapé, morrem os cabras marcados para morrer: são assassinados Nego Fuba (João Alfredo Dias) e Pedro Fazendeiro (Pedro Inácio de Araújo), companheiros de Pedro Teixeira. São os primeiros. Elizabeth é presa e conhece a cadeia por oito meses; sua casa é incendiada. Sabe o que está marcado como seu destino, mas ainda a aguardam muitas dores ignoradas. Ao suicídio de sua filha de apenas 18 anos, atormentada com o assassinato do pai e a prisão da mãe, seguem-se os assassinatos de dois filhos, José Eudes Teixeira e João Pedro Teixeira Filho. À mercê do imponderável, resolve salvar-se para preservar o que lhe resta de família. Abandona a Paraíba, troca de nome (é agora Marta Maria da Costa); seguindo o destino de seu povo errante sai pelo mundo comendo estrada e poeira, trabalhando aqui e ali para sobreviver, ora como empregada doméstica, ora como lavadora de roupa em beira de rio, ora alfabetizando crianças, correndo da política e da polícia, que no sertão andam juntas.
Afinal, fugindo e se escondendo do mundo (por quase 20 anos!), exilada do mundo, desaparecida embora viva, desgarrada, tida então como morta, logra reunir-se com o restante da família, reencontrada por seus filhos Abraão e Carlos e o cineasta Eduardo Coutinho, que em 1984 lançaria Cabra marcado para morrer, documentário – hoje célebre – dedicado ao martírio de Pedro Teixeira, mas que na verdade é a história de Elizabeth e o milagre de sua vida.
Passaram-se sessenta anos do assassinato de João Pedro Teixeira, 61 do golpe de 1º de abril, 41 do filme de Eduardo Coutinho e 37 da promulgação da “Constituição cidadã”… e seguimos tendo cabras marcados para morrer, como bem sabem os sem terra, os indígenas e os quilombolas.
No próximo dia 13 deste fevereiro, Elizabeth Altino Teixeira, mulher brava e forte, marcada para resistir e viver, completa 100 anos de uma trajetória que há de seguir inspirando, e educando-nos para a luta.
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Os genocidas – Indiciado por crimes de guerra, Benjamin Netanyahu foi a Washington entrevistar-se com seu contraparte estadunidense, recentemente condenado por estupro e investigado por fraude, conspiração e obstrução da justiça. Na ocasião, Donald J. Trump expeliu uma declaração que faz o escândalo do Watergate – que custou, lá trás, a cabeça de Richard Nixon – parecer brincadeira de criança: ignorando solenemente tudo o que se conhece como Direito Internacional, afirmou que os EUA irão assumir o controle da Faixa de Gaza, apropriando-se daquele pedaço de terra. Não bastante isso, os dois criminosos reafirmaram seu compromisso com a limpeza étnica da região, que atravessa décadas, ao afirmar que os palestinos de Gaza terão de viver fora da terra que lhes pertence. A proposta explicitamente genocida e racista evidencia – embora evidências já se acumulassem – que a brutalidade extrema do enclave sionista armado e financiado pelo imperialismo, chocante para qualquer ser humano, nunca consistiu na “autodefesa” invocada por seus apoiadores, mas sim numa guerra colonial, de conquista.
Fez bem o presidente Lula em repudiar de pronto o absurdo. Resta saber se a dita comunidade internacional permanecerá como vem se portando desde o início do genocídio: mantendo uma inércia cúmplice diante dos crimes que acompanha em tempo real.
A ubiquidade do complexo de vira-latas – O Congresso brasileiro retomou suas atividades nesta semana, e a imprensa registrou que o plenário da Câmara foi palco de uma “batalha dos bonés”: aos bonés vermelhos que extremistas de direita usaram e usam para exprimir sua fidelidade canina a Trump e ao Partido Republicano, parlamentares governistas responderam envergando bonés da cor azul do partido de Joe Biden. Não é possível, porque seria desanimador, admitir que essa Câmara dos Deputados, pela sua composição majoritária, seja representativa do nosso povo. Vivos fossem, Barbosa Lima Sobrinho e Ulysses Guimarães, estariam desesperados. Cronistas da vida cotidiana como Nelson Rodrigues e Stanislaw Ponte Preta, por outro lado, fariam a festa com o ridículo nosso de cada dia. E é melhor rir do que chorar.
Ainda o complexo – É comovente a preocupação dos conglomerados de mídia brasileiros com o desenvolvimento tecnológico da China, e a presteza com que alertam sobre supostos riscos associados à ferramenta DeepSeek – parecendo esquecer a pletora de abusos imputados às Big Techs dos EUA, agora instaladas na Casa Branca. No entanto, é curioso que nossos baluartes da liberdade sequer ericem as sobrancelhas com a notícia de que, na gestão Trump, a equipe do magnata Elon Musk está tendo livre acesso aos dados de pagamentos do Tesouro estadunidense. Como diriam Noel Rosa e Francisco Alves: onde está a honestidade?
A seletiva compaixão da classe dominante – No último domingo 6, o Fantástico (“O show da vida”), revista eletrônica campeã de audiência da onipresente Rede Globo, dedicou algo como dez minutos de sua caríssima grade a comovida defesa de pets abandonados. Que frutifique sua campanha em defesa da vida e do bem-estar de totós e bichanos, pois eles merecem. Nenhuma palavra, porém, foi cogitada sobre as multidões de miseráveis, homens, mulheres, velhos e crianças, os chamados moradores de rua (ou, mais elegantemente, sem-teto, ou, ainda mais elegantemente, homeless), milhares de trapos humanos, famintos, famélicos, imundos, doentes, que povoam nossas cidades, atulhando as calçadas, disputando o lixo com as ratazanas. Na capital paulista são 90 mil pessoas em “situação de rua”; no Rio de Janeiro, quase 8 mil. E a miséria humana não para de crescer.
Uma chamada que diz (quase) tudo – “Múcio avisa Planalto que fica na Defesa por mais tempo” (O Globo, 06/02/2025, p. 6).
*Com a colaboração de Pedro Amaral