Em O Processo, publicado postumamente em 26 de abril de 1925, Franz Kafka narra a história de Josef K., um funcionário de banco preso em sua casa numa manhã qualquer, acusado de um crime que nunca chega a ser nomeado. A partir daí, Josef mergulha em um pesadelo jurídico sem fim: tribunais opacos, ritos incompreensíveis, juízes invisíveis e uma burocracia que o engole sem explicações. A culpa não precisa ser provada; a punição já está determinada.
Essa engrenagem insana encontra espelho perfeito em acontecimentos recentes da história política brasileira. A Operação Lava Jato, inicialmente saudada como cruzada contra a corrupção, revelou-se um instrumento de exceção e mecanismo de poder político: atuou fora dos marcos legais, atropelou garantias constitucionais e teve consequências devastadoras para a democracia e a soberania nacional, fragilizando as bases do Estado democrático de direito. O paralelo kafkiano sempre foi mencionado, inclusive pelo próprio presidente Luiz Inácio Lula da Silva e sua assessoria.
Na semana em que o livro modernista cumpre seu centenário avançando sobre a compreensão contemporânea, vemos que Kafka se mostra atualizado. De lá pra cá, vivemos no mundo da pós-verdade, onde interesses econômicos e políticos obscurantistas tornam os mecanismos da burocracia cada vez mais incompreensíveis. Atuam nas sombras fabricando notícias falsas, engajando ódio por meio de sensacionalismo, desinformando e deslegitimando instituições como a ciência, a justiça, a imprensa, a universidade, a medicina; tudo que possa ser obstáculo para essa lógica absurda apropriada pela extrema-direita no mundo.
Josef K. e Lula: o réu já condenado
A Lava Jato pavimentou o golpe contra Dilma, a prisão de Lula e a eleição de Bolsonaro, cujo governo foi a culminação do autoritarismo jurídico-midiático. Com o Judiciário agindo como ator político, instaurou-se um estado de exceção disfarçado de legalidade – exatamente como o tribunal invisível que condena Josef K.
Lula foi condenado e preso em 2018 no caso do triplex de Guarujá, — entre outras tentativas de atribuir a Lula propriedades que nunca foram dele — num processo que, como no romance de Kafka, ignorou as premissas básicas do devido processo legal de forma ilógica e absurda. A atuação do então juiz Sergio Moro — que combinava estratégias com o Ministério Público fora dos autos, como revelado pela Vaza Jato — transformou o Judiciário em protagonista de um projeto de poder.
A condenação de Lula, sem provas materiais robustas, foi posteriormente anulada pelo Supremo Tribunal Federal, revelando-se uma construção judicial baseada em suposições vagas e vazamentos seletivos, delações coagidas e narrativas midiáticas. A imagem de um procurador exibindo um diagrama simplista em “powerpoint”, acusando Lula de todos os crimes políticos do país, poderia ser uma cena do filme clássico de Orson Welles, adaptando O Processo. No entanto, os efeitos políticos já estavam consumados: Lula foi impedido de disputar as eleições, abrindo caminho para a ascensão de Jair Bolsonaro, com apoio explícito de setores judiciais, midiáticos e econômicos.
A prisão de Lula foi mais do que uma punição individual: foi um golpe estratégico para neutralizar a principal liderança progressista do país.
O tribunal invisível da geopolítica: A República de Curitiba
A Lava Jato também cumpriu uma função geopolítica: fragilizou empresas estratégicas brasileiras — especialmente a Petrobras e grandes construtoras como a Odebrecht — e comprometeu a exploração do pré-sal, entregando ativos valiosos a interesses estrangeiros. O argumento do “combate à corrupção” justificou o desmonte de políticas industriais e de conteúdo nacional, e abriu caminho para reformas impopulares como a trabalhista e a previdenciária.
A Petrobras, símbolo da soberania energética nacional, foi alvo de multas bilionárias e teve sua reputação internacional destruída. A operação amplificou crises artificiais na empresa, desvalorizou ações e assustou investidores, facilitando a posterior desmontagem neoliberal sob Temer e Bolsonaro. O pré-sal, projeto de soberania energética, foi sabotado por privatizações e entrega a multinacionais estrangeiras em condições questionáveis.
A Lava Jato contribuiu para a falência de grandes empresas de construção civil, como a Odebrecht e a OAS, que desempenhavam papéis estratégicos na execução de projetos nacionais, abrindo espaço para grupos estrangeiros dominarem infraestrutura no Brasil. Esse colapso não apenas destruiu milhares de empregos, mas também comprometeu a capacidade do Brasil de realizar obras de infraestrutura essenciais.
Uma engrenagem que parece girar sozinha
Em O Processo, o protagonista luta contra um sistema burocrático que parece funcionar de maneira autônoma, sem qualquer relação com a realidade ou com a justiça. No Brasil, a chamada “República de Curitiba” reproduziu essa dinâmica. Juízes e procuradores agiam com autonomia quase absoluta, tomando decisões em sigilo e utilizando instrumentos como delações premiadas para construir casos sem base factual sólida.
Assim como no tribunal kafkiano, onde os réus não entendem as regras, a Lava Jato se utilizou de “exceções justificadas” para romper com a legalidade. Prisões preventivas prolongadas, delações forçadas, espetacularização midiática e decisões tomadas com base em convicções substituíram provas e contraditório. As delações lembram os interrogatórios absurdos descritos por Kafka. A operação, com seus múltiplos desdobramentos, criou um labirinto jurídico que dificultou a defesa dos acusados e gerou um clima de incerteza e insegurança.
Esse cenário remete à atmosfera sufocante de O Processo , onde o protagonista percebe que todas as suas tentativas de resistir ao sistema acabam reforçando seu poder. No Brasil, a Lava Jato pavimentou o caminho para um autoritarismo crescente, alimentado por discursos anti-institucionais e ataques à democracia.
Kafka não escreveu sobre o Brasil — mas poderia
O centenário de O Processo é um convite à reflexão. Kafka não falava de um país específico, mas de estruturas de poder opacas que, em nome de uma legalidade distorcida, desumanizam indivíduos e corroem sociedades. A Lava Jato transformou-se em símbolo desse autoritarismo jurídico contemporâneo, travestido de moralidade.
Hoje, com parte das feridas ainda abertas, o Brasil tenta reconstituir sua democracia e restaurar a credibilidade de suas instituições. A denúncia kafkiana permanece vivo: quando a justiça serve ao arbítrio, todos nos tornamos réus de um processo que não compreendemos — e cuja sentença pode já estar escrita. A narrativa de Kafka, com sua crítica à burocracia e ao autoritarismo, serve como um alerta para os perigos da instrumentalização da Justiça e da erosão do Estado democrático de direito.
Ao completar cem anos, O Processo continua sendo um espelho perturbador da condição humana diante do poder. E, infelizmente, sua relevância nunca esteve tão viva quanto nos últimos anos da história brasileira, assim como de países onde a ultradireita avança por meio de fake news, desinformação, engenharia do caos e lawfare – a perseguição judicial a todos que resistem a sua tirania.
O Processo termina com Josef K. executado sem entender por quê, deixando o legado kafkiano de que quando a lei vira instrumento de poder, a justiça se torna uma farsa. Depois de todos os horrores passados no país pós-lava-jato, ficamos como o leitor de Kafka na cena final de O Processo, com a sensação de um absurdo implacável.