O parlamento da Alemanha aprovou nesta quarta (30), com votos da União Democrata-Cristã (CDU) e da extrema direita da Alternativa para a Alemanha (AfD), uma moção que endurece as regras de imigração. A decisão marca uma inflexão histórica na política alemã e desencadeou forte reação da ex-chanceler Angela Merkel, que criticou seu sucessor na CDU, Friedrich Merz, por abandonar compromissos anteriores com o campo democrático.
O projeto, liderado por Friedrich Merz, candidato da CDU ao cargo de chanceler para as próximas eleições no dia 23 de fevereiro, prevê a recusa sistemática de pedidos de asilo na fronteira alemã, o aumento da deportação de imigrantes considerados “perigosos” e a revisão do princípio do reagrupamento familiar para refugiados.
Embora não tenha força de lei, a medida pressiona por mudanças imediatas e antecipa a plataforma eleitoral da CDU, que tem colocado a imigração como tema central da campanha.
O Bundestag aprovou a moção por 348 votos a favor e 344 contra, e outros 41 votos de abstenção. A União, uma coligação entre a CDU e a União Social Cristã (CSU), partido que atua apenas na Baviera, contribuiu com 187 votos dos 348 a favor.
O Partido Liberal Alemão (FDP) foi a segunda maior força da votação pela aprovação da moção com 80 votos a favor e nenhum contra. A AfD teve 75 votos a favor e apenas uma abstenção.
O Partido Social-Democrata (SPD), de Olaf Scholz, a Aliança 90/Os Verdes (verdes), o partido Die Linke (Esquerda) votaram contra a moção.
A votação ficou assim:
✅ A favor (348 votos):
CDU/CSU: 187 votos
FDP: 80 votos
AfD: 75 votos
Keine: 6 votos
❌ Contra (344 votos):
SPD: 200 votos
Verdes: 115 votos
A Esquerda (Die Linke): 26 votos
Keine: 2 votos
CDU/CSU: 1 voto
A vitória representa a primeira vez que uma medida legislativa é aprovada no parlamento alemão com o apoio decisivo da extrema direita.
Merkel repreende possível futuro chanceler e colega de partido
Em carta publicada nesta quarta (29) em seu site e amplamente repercutida na imprensa, Angela Merkel lembrou que Merz havia prometido buscar acordos apenas com partidos da chamada “democracia do centro” e classificou a votação como um erro político grave.
Na carta, a ex-chanceler lembrou um discurso de Merz em uma discussão sobre o orçamento – que acabaria por derrubar a coligação de Scholz.
“Em seu discurso de 13 de novembro de 2024 no Bundestag alemão, o presidente da bancada parlamentar da CDU/CSU e candidato a chanceler pela CDU e pela CSU, Friedrich Merz, declarou, conforme registrado na ata taquigráfica do Bundestag, entre outras coisas:
‘Friedrich Merz: Para as poucas decisões [parlamentares] remanescentes que possam ser tomadas sem o orçamento federal, quero fazer uma proposta: devemos concordar com vocês, os social-democratas, e com vocês, os verdes, que só colocaremos na pauta do plenário as decisões sobre as quais já tivermos chegado a um consenso substancial com o SPD e os Verdes’.
‘Dessa forma, nem na definição da ordem do dia nem nas votações em plenário, em nenhum momento haverá uma maioria ocasional ou deliberadamente provocada com os deputados da AfD’.
‘Quero propor expressamente esse acordo a vocês, senhoras e senhores. Pois é exatamente isso que esses senhores e senhoras da extrema direita gostariam: que, de repente, fossem eles a garantir as maiorias’.
‘Nós não queremos isso. Espero que vocês também vejam dessa forma, prezados colegas e prezadas colegas’”, transcreveu Merkel.
A ex-chanceler alertou para o risco de normalizar o apoio da extrema direita dentro das instituições, rompendo um tabu que vigorava na política alemã desde a Segunda Guerra Mundial:
“Essa proposta e a postura a ela associada foram uma expressão de grande responsabilidade política de Estado, que eu apoio integralmente. Considero um erro não mais se sentir vinculado a essa proposta e, assim, permitir conscientemente, em 29 de janeiro de 2025, pela primeira vez, uma maioria em uma votação no Bundestag com os votos da AfD.
Em vez disso, é necessário que todos os partidos democráticos, conjuntamente e para além das fronteiras partidárias, não como uma manobra tática, mas de maneira honesta no conteúdo, moderada no tom e com base no direito europeu vigente, façam tudo o que for possível para evitar no futuro atentados horríveis como os ocorridos recentemente, pouco antes do Natal em Magdeburgo e há poucos dias em Aschaffenburg.”
A sessão desta quarta (29) que aprovou medidas anti-migração
A sessão no Bundestag foi marcada por embates diretos entre Merz e o chanceler Olaf Scholz. O social-democrata acusou o rival de abrir as portas para um governo da CDU com a AfD, hipótese que Merz rejeitou publicamente, mas sem descartar novas votações em parceria com a extrema direita.
O líder da CDU defendeu o endurecimento das políticas migratórias como uma resposta ao sentimento de insegurança da população e afirmou que não se importa com quem vota a favor de suas propostas, desde que garantam maioria no parlamento. Esta última fala provocou risos de correligionários.
A guinada da CDU à direita acontece em meio à escalada da crise econômica na Alemanha. Dados divulgados pelo governo apontam que o PIB do país caiu 0,2% no último trimestre de 2024, alimentando o temor de recessão.
A desaceleração alemã ocorre num momento de instabilidade política, após o colapso da coalizão de governo de Scholz, provocado pela saída dos liberais do FDP, que rejeitaram políticas de estímulo econômico. Agora, o mesmo partido vota ao lado da AfD em pautas de endurecimento da imigração, numa tentativa de manter apoio do eleitorado conservador.
A radicalização da CDU foi classificada por analistas como um “jogo perigoso” para o sistema democrático. O jornal Der Freitag afirmou que Merz pode não ser um nazista, mas age como um “facilitador” da extrema direita, ao dar legitimidade à AfD no parlamento. A Neue Deutschland classificou o movimento como um passo para o desmonte das garantias democráticas e dos princípios fundadores da União Europeia. O editorial do Spiegel alertou que a CDU não pode continuar neste caminho sem consequências graves para a política alemã.
Cenário internacional com Trump
Além da crise política interna, a guinada da direita alemã se conecta ao contexto internacional. O segundo mandato de Donald Trump nos Estados Unidos tem incentivado lideranças europeias a adotarem discursos mais duros contra imigrantes, num movimento que reforça o campo conservador global. O bilionário Elon Musk, aliado de Trump, já declarou abertamente seu apoio à AfD e participou remotamente de eventos da campanha do partido.
Se a votação no Bundestag representou uma vitória para a extrema direita, também gerou reações contundentes da sociedade civil. Movimentos progressistas, associações jurídicas e lideranças políticas articulam um pedido para a Justiça analisar a possibilidade de proibição da AfD, sob a justificativa de que o partido fere os princípios democráticos.
Paralelamente, manifestações contra o avanço da extrema direita se espalharam por diversas cidades alemãs, num movimento crescente de resistência ao retrocesso político.
A menos de um mês das eleições legislativas, o cenário eleitoral alemão se torna ainda mais incerto. Com a CDU liderando as pesquisas e a AfD consolidada em segundo lugar, cresce a pressão para que os partidos democráticos reforcem um “cordão sanitário” contra a extrema direita. Mas a votação desta semana mostrou que essa barreira já começou a ruir.