A União Democrata Cristã (CDU) iniciou uma ofensiva contra organizações da sociedade civil e jornalistas um dia após vencer as eleições na Alemanha. Na segunda-feira (24), a bancada conservadora enviou ao governo um questionário com 551 perguntas, questionando a neutralidade política de entidades que participaram ou apoiaram os protestos contra a aliança entre a CDU e o partido de extrema direita Alternativa para a Alemanha (AfD).
A ação provocou reações imediatas de partidos e organizações da sociedade civil, que classificaram a medida como um ataque à democracia e um gesto de intimidação contra críticos do conservadorismo. O Partido Social-Democrata (SPD), que pode integrar a coalizão governista, alertou que essa postura pode dificultar as negociações.
A CDU justifica a iniciativa alegando que ONGs e veículos de mídia que recebem financiamento público estariam promovendo ações de caráter “partidário”, o que violaria regras de neutralidade fiscal.
O documento menciona 18 organizações, incluindo:
Omas gegen Rechts – Avós contra a Direita (Movimento antifascista de mulheres mais velhas)
Amadeu Antonio Stiftung – Fundação Amadeu Antonio (ONG que combate o racismo e o extremismo de direita)
Correctiv – (Plataforma independente de checagem e investigação)
Netzwerk Recherche – Rede de Pesquisa Jornalística (Rede de jornalismo investigativo)
Foodwatch – (Defesa dos direitos dos consumidores)
BUND – (Federação ambientalista alemã, sigla mantida)
A consulta pede informações sobre o financiamento público dessas entidades e questiona se elas atuaram politicamente nos protestos recentes. Algumas perguntas levantadas no questionário incluem:
- “O site da Avós contra a Direita pode ser considerado politicamente neutro?”
- “Como a Bundesregierung avalia, à luz das normas de neutralidade fiscal, um artigo do Correctiv sobre extremistas de direita na CDU?”
A inclusão de veículos de imprensa no questionário gerou críticas. A Netzwerk Recherche afirmou que a CDU “demonstra total falta de compreensão sobre o papel do jornalismo independente”, enquanto o Correctiv declarou que suas reportagens “seguem padrões jornalísticos rigorosos e são baseadas em evidências documentais”.
Reações e críticas à iniciativa da CDU
A consulta foi amplamente criticada por partidos de oposição, membros do futuro governo e ONGs citadas no documento. O líder do SPD, Lars Klingbeil, classificou a ação como “jogo sujo” e alertou que esse tipo de conduta pode prejudicar as negociações para a formação do governo:
“Não podemos sentar para discutir investimentos em infraestrutura de manhã e descobrir à tarde que a CDU está enviando esse tipo de questionário”, disse.
A deputada Clara Bünger, do Die Linke, chamou o documento de “vingança contra os protestos antifascistas”, afirmando que a ofensiva “lembra Estados autoritários”.
O eurodeputado Sergey Lagodinsky, do Partido Verde, classificou a medida como “um ataque à sociedade civil” e um indício de um “clima quase trumpista”.
A Anistia Internacional também criticou a ação, afirmando que a CDU “trata ONGs progressistas como inimigas políticas e ameaça sua sobrevivência com acusações infundadas”.
A Foodwatch, que foi citada no questionário, negou ter qualquer envolvimento com os protestos:
“Nosso nome aparece aleatoriamente nessa lista, sem termos participado de qualquer manifestação contra a extrema direita. Isso mostra que a CDU quer apenas intimidar vozes críticas.”
CDU adota narrativa de extrema direita
A CDU justifica a consulta afirmando que ONGs e veículos de mídia estariam “politicamente alinhados” ao governo do SPD e dos Verdes, e que a fiscalização dessas entidades é necessária para garantir o uso adequado do financiamento público.
A alegação, no entanto, ressoa teorias conspiratórias promovidas pela extrema direita. O jornal conservador Die Welt, por exemplo, sugeriu que a Alemanha estaria sendo governada por um “Estado Profundo”, tese amplamente difundida por Donald Trump e Jair Bolsonaro para atacar instituições democráticas.
A Alternativa para a Alemanha (AfD) já havia utilizado essa retórica no passado para sugerir que ONGs progressistas seriam braços ocultos do governo para manipular a opinião pública. Agora, críticos apontam que a CDU está reproduzindo a mesma estratégia, estreitando ainda mais suas semelhanças com a extrema direita.
Consulta segue modelo já usado pela AfD em 2022
Essa não é a primeira vez que um partido alemão tenta usar o Parlamento para investigar ONGs e jornalistas críticos. Em 2022, a AfD apresentou uma consulta semelhante, questionando o financiamento de ONGs progressistas e plataformas de checagem de fatos.
O professor de sociologia Matthias Quent, da Universidade de Magdeburgo-Stendal, avalia que a CDU está tentando restringir a mobilização social:
“O tom, o escopo e o conteúdo das perguntas revelam um profundo desconforto da CDU com a mobilização popular. Em um momento de avanço da extrema direita, esse tipo de intimidação da sociedade civil é um sinal preocupante.”
CDU amplia radicalização e ameaça democracia
A ofensiva contra ONGs e jornalistas representa um novo estágio na radicalização da CDU, que passou a adotar táticas semelhantes às da AfD, Trump e Bolsonaro para deslegitimar a sociedade civil e o jornalismo independente.
O objetivo parece claro:
Criar uma narrativa de que ONGs progressistas são instrumentos políticos do governo SPD/Verdes.
Intimidar instituições que promovem direitos humanos, ambientalismo e jornalismo crítico.
Sinalizar para o eleitorado conservador que a CDU está “combatendo privilégios da esquerda”.
O impacto dessa estratégia na futura coalizão governista e na estabilidade democrática da Alemanha ainda é incerto. Mas analistas alertam: a democracia alemã está sendo testada.