A Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados solicitou esta semana à Procuradoria-Geral da República que exija providências imediatas do Instagram e do TikTok para a retirada de publicações veiculadas pelas duas plataformas. Segundo a denúncia, foram postados, sem nenhuma interferência moderadora das empresas, vídeos e fotos que distorcem digitalmente a imagem de pessoas com Síndrome de Down, inserindo-as em contextos de conotação sexual através de filtros e edições, e também por meio de Inteligência Artificial. Trata-se de mais um grave episódio a apontar para a urgência da retomada da discussão sobre a responsabilização das grandes plataformas da internet, as chamadas big techs, pelos conteúdos nelas veiculados e, muitas vezes, impulsionados.
A denúncia, oficiada ao procurador federal dos Direitos do Cidadão, Nicolao Dino, coincidiu com a retomada, na quarta-feira 4, do julgamento no Supremo Tribunal Federal que discute a constitucionalidade de um trecho do Marco Civil da Internet e, na prática, poderá criar jurisprudência para que as big techs passem a responder pelos seus conteúdos no Brasil. Segundo o artigo 19 do conjunto de normas aprovado em 2014, “com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, as plataformas só podem ser responsabilizadas pelas postagens de seus usuários se, após ordem judicial, não tomarem providências para a imediata retirada do conteúdo”.
Suspenso desde dezembro, após um pedido de vista do ministro André Mendonça, o tema volta a ser analisado dias depois da intensificação da pressão do governo de Donald Trump sobre o STF, personificado na figura do ministro Alexandre de Moraes. “É inaceitável que autoridades estrangeiras ameacem com mandados de prisão cidadãos ou residentes americanos por postagens em plataformas ou redes sociais norte-americanas enquanto estiverem fisicamente presentes em solo americano”, disse o secretário de Estado dos EUA, Marco Rubio. O recado velado é fruto dos recorrentes apelos do deputado conspirador Eduardo Bolsonaro e também não deixa dúvida sobre a importância das empresas de tecnologia no jogo político que se travará entre a extrema-direita e as forças democráticas no Brasil até 2026.

Marco Rubio e Donald Trump acenam com sanções para constranger o ministro Alexandre de Moraes – Imagem: Brendan Smialowiski/AFP
Cutucado com vara curta pelo trumpismo, apesar da distância entre os dois países, o STF parece unido em afirmar a independência do Judiciário brasileiro e disposto a, mais uma vez, tomar as rédeas de uma discussão que deveria ser travada no Legislativo. Do outro lado da Praça dos Três Poderes, o Projeto de Lei 2630, conhecido como PL das Fake News, dorme em sono profundo nas gavetas da Câmara desde 2020, após ter sido aprovado no Senado. Assim como seu antecessor Arthur Lira, do PP, o atual presidente da casa, Hugo Motta, do Republicanos, não parece disposto a assumir o papel do príncipe encantado que fará despertar a discussão.
Os ministros do Supremo, em sua maioria, sinalizam com a derrubada do artigo 19 em uma discussão que será travada sobre nuances. Antes do pedido de vista, os dois relatores, ministros Luiz Fux e Dias Toffoli, votaram pela inconstitucionalidade completa do trecho: “As plataformas devem agir a partir do momento em que forem notificadas pela vítima ou seu advogado. O artigo em questão é inconstitucional porque se mostra incapaz de oferecer proteção efetiva aos direitos fundamentais”, disse Toffoli. Em um voto ligeiramente diferente, o ministro Luís Roberto Barroso defendeu que as big techs sejam responsabilizadas apenas se não tomarem providências após a notificação extrajudicial. “Não há fundamento constitucional para um regime que incentiva que as plataformas permaneçam inertes após tomarem conhecimento de claras violações da lei penal”, disse o presidente do STF.
O Departamento de Estado dos EUA ameaçou vetar vistos de estrangeiros que promovem a “censura”
Levando-se em conta a postura dos outros ministros, o placar de 3 a zero a favor da derrubada do artigo 19 do Marco Civil da Internet deve formar maioria folgada com os votos esperados de Gilmar Mendes, Cármen Lúcia, Edson Fachin, Alexandre de Moraes, Cristiano Zanin e Flávio Dino. Se vierem, os votos contrários podem partir dos ministros Nunes Marques e André Mendonça, ambos indicados por Jair Bolsonaro ao STF. Em seu pedido de vista, Mendonça afirmou: “A questão é delicada e apresenta controvérsias na sociedade brasileira. Tenho sérias dúvidas se deveríamos, nessas situações, determinar a retirada de conteúdos porque estaríamos cerceando indevidamente as críticas que consideramos injustas”.
Na segunda-feira 2, durante um evento em Paris, o ministro Gilmar Mendes afirmou que o julgamento retomado pelo STF possibilitará “regras mais duradouras” sobre a responsabilização civil das plataformas. “Acho que o Brasil pode ser um paradigma para o mundo nessa questão de como lidar com as mídias sociais. Regular não significa tolher nem mitigar o direito fundamental à liberdade de expressão.” O magistrado também criticou o Congresso: “Tivemos dificuldades. O Senado aprovou um projeto que ficou parado na Câmara. É preciso que isso seja retomado em termos legislativos”.
O direito à “liberdade de expressão” é utilizado pelas big techs como argumento. Em entrevista ao site UOL, o presidente da Google no Brasil, Fábio Coelho, afirmou que “o ambiente ficará mais difícil de operar” no País, se prevalecer o entendimento que responsabiliza as plataformas pelos conteúdos veiculados. “Para evitar um passivo financeiro, as plataformas terão de remover preventivamente qualquer conteúdo potencialmente questionável”, disse. Segundo ameaçou o executivo, a censura prévia a ser provocada pela derrubada do artigo 19 “colocará o humor, o jornalismo investigativo e a propaganda eleitoral em risco”.

Imagem: Redes Sociais/Partido Liberal
Em 30 de maio, um diretor do “Departamento Educacional” da Google no Brasil, Ricardo Vilella, marcou presença em Fortaleza durante o segundo Seminário Nacional de Comunicação do PL. Ao lado de diversos representantes de big techs, como Felipe Ventura (Meta) e Dan Maker (CapCut), entre outros, Vilella, assim como os colegas, teve mais tempo ao microfone do que o próprio presidente do partido, Valdemar Costa Neto.
A aliança das big techs com a extrema-direita ficou evidente em um evento do PL de bolsonaro
Presente no Centro de Eventos do Ceará, Jair Bolsonaro ouviu dos três especialistas, ao lado de uma plateia formada por centenas de jovens militantes, dicas e instruções sobre como alimentar as redes sociais com vídeos automatizados, instruir a IA com conteúdo político, impulsionar mensagens e gerar podcasts com vozes sintetizadas. Os ataques ao Supremo pela retomada do julgamento, ao governo federal pela elaboração de um novo projeto de regulação e ao ministro Moraes pelo banimento da rede social Rumble deram o tom político do evento.
Diante do engajamento das big techs no Brasil, instigado por Trump, o governo brasileiro corre contra o relógio para avançar na regulamentação possível. Nos próximos dias, será enviado pelo Palácio do Planalto ao Congresso um novo Projeto de Lei, elaborado em conjunto por nove ministérios, que indicará a Agência Nacional de Proteção de Dados (ANPD) como encarregada de fiscalizar as redes e plataformas e instância responsável pela aplicação de multas e bloqueios, caso as determinações de remoção de conteúdo não sejam atendidas.
Para facilitar sua tramitação, a nova proposta, que tentará suprir em parte o vácuo causado pela não aprovação do PL das Fake News, dará maior ênfase a questões como a proteção de crianças e adolescentes nas redes e deixará de lado pontos como a punição por desinformação ou retirada de postagens mediante notificação extrajudicial. Líder da bancada do PT na Câmara, o deputado Lindbergh Farias foi convocado para acompanhar Lula na viagem à França, e a expectativa é de que ambos voltem de lá com uma estratégia definida antes de o projeto do Executivo ser enviado ao Congresso.

Gilmar Mendes lamenta que o projeto de regulação das redes sociais esteja parado na Câmara e diz que o Supremo não se furtará a estabelecer “regras mais duradouras” para responsabilizar as plataformas – Imagem: Ton Molina/AFP e Roberto Jayme/TSE
Em entrevista coletiva na terça-feira 3, Lula falou que o Brasil precisa de rapidez no enquadramento das big techs: “Temos de fazer a regulamentação ou pelo Congresso ou pela Suprema Corte. Nós queremos apressar isso da forma mais democrática possível, ouvindo a sociedade brasileira. Não é possível que um cara tente dar um golpe de Estado e diga que isso é liberdade de expressão”, disse o presidente, que criticou Eduardo Bolsonaro por “renunciar ao mandato de deputado para ir lamber as botas de Trump”. Lula voltou a falar publicamente sobre a questão desde a polêmica surgida em parte da imprensa após o pedido de moderação do TikTok feito pela primeira-dama Janja da Silva ao líder chinês Xi Jinping.
A pressão de Lula levou a Advocacia-Geral da União a solicitar ao STF a aplicação de forma imediata de medidas judiciais que façam cessar os episódios de desinformação, danos morais e violência digital incentivados pela omissão das big techs. Na ação, a AGU elencou 300 postagens com falsos anúncios sobre as indenizações aos aposentados do INSS que tiveram descontos fraudulentos em seus contracheques. “Documentos internos da empresa Meta indicam que fraudadores podem acumular até 32 infrações antes de terem suas contas banidas, o que revela a inércia da plataforma.”

Durante a viagem oficial à China, Janja e Lula manifestaram ao líder Xi Jinping preocupação com os crimes cometidos contra menores no TikTok – Imagem: Ricardo Stuckert/PR
Cientista político e professor da FGV de São Paulo, Cláudio Couto avalia que a judicialização da questão parece inevitável na medida em que novos episódios de violação forem acontecendo. “A partir da tentativa de solução de um caso concreto, acaba sendo criada uma regra para lidar com aquele tipo de situação. Houvesse uma regulação clara por parte do Congresso, que deveria legislar sobre o assunto, poderíamos ter um desdobramento bem diferente desse”, afirma o colunista de CartaCapital.
Para Renata Mielli, coordenadora do Comitê Gestor da Internet no Brasil, a incapacidade do Congresso em aprovar um marco regulatório com parâmetros para orientar a prestação de serviços das grandes corporações internacionais de tecnologia no Brasil é o que motiva o STF a conduzir o debate. “E isso é um problema gravíssimo porque o papel do STF não é criar regras e obrigações, mas observar se as normas legais existentes estão em consonância com a Constituição”, comenta. Mielli diz ter “muitas preocupações” com o debate realizado no Supremo. Segundo ela, “julgar o artigo 19 inconstitucional trará ainda mais confusão para o ecossistema de aplicações de internet, gerando uma enorme insegurança jurídica. Além disso, o voto não se limita à inconstitucionalidade, ele cria um rol de obrigações que não estão na lei. E isso torna o processo mais frágil”.
O CGI.br, que lançou uma consulta pública sobre a regulação das plataformas, defende que o STF mantenha a constitucionalidade do dispositivo, mas que este seja interpretado, conforme a Constituição, para os tipos de aplicação de internet que têm alto grau de intervenção sobre a circulação do conteúdo de seus usuários. Para aqueles que não interferem ou têm baixa interferência, como, por exemplo, os provedores de hospedagem de sites e outros, o Comitê propõe que continuem valendo as regras atuais. “O artigo 19 mantém-se atual para uma parte do ecossistema, mas é insuficiente para novos modelos de negócios que não são mais meros intermediários neutros, como é o caso das plataformas de redes sociais. Estas, é claro, precisam assumir suas parcelas de responsabilidade sobre os conteúdos que circulam”, afirma Mielli.
O governo Lula tenta fazer a “regulamentação possível”, com regras para proteger crianças e adolescentes
Coordenador do Laboratório de Estudos sobre Estado e Ideologia da UFRJ, Luiz Eduardo Motta nota que as big techs estarão sempre contra os governos progressistas “Elas não têm neutralidade política. Pertencem às grandes frações do capital monopolista que dominam a área da alta tecnologia de produção, com as suas distorções reproduzidas a cada segundo. Quem atende aos interesses dessas companhias, em última instância, responde aos interesses do imperialismo”, destaca. Atualmente, este último, diz o professor, está conectado diretamente com as grandes empresas das nações imperialistas. “Trump demonstra isso de forma transparente com as ações dos interesses estadunidenses sobre aquilo que eles chamam ‘o seu quintal’, ou seja, os países do denominado Sul Global”.
Couto ressalta ainda que o apoio do governo Trump à “liberdade de expressão” das big techs pode produzir uma reação internacional em termos de legislação. Para ele, “a ida do Lula à França e a conversa com Macron terão como um dos temas a questão da regulação das redes sociais. Esse é um problema que a União Europeia também está tentando enfrentar. Diante dessa pressão que o governo norte-americano faz, a possibilidade de haver uma reação soberanista por parte de outros países, e o Brasil está incluído nisso, se coloca”. As big techs, acrescenta o professor, “vêm atuando em prol da extrema-direita em campanhas eleitorais ao longo do tempo”.
Enquanto as decisões permanecem em suspenso no Congresso e no STF, o caso da exploração das imagens de jovens com Síndrome de Down promete colocar mais lenha na fogueira do debate. “Pais e mães de crianças e adolescentes nos procuraram com receio do que estava acontecendo, inclusive de a imagem dos filhos ser usada. Agora vamos aguardar que a Procuradoria para o Direito do Cidadão faça a devida representação contra as plataformas que permitem a divulgação dessas imagens e também a identificação das pessoas que, porventura, estão divulgando e lucrando com esse tipo de vídeo”, diz o advogado Rodrigo Mondego, que levou a denúncia à Câmara.

Assim como o antecessor Arthur Lira, o atual presidente da Câmara, Hugo Motta, não parece disposto a mover uma palha para combater a desinformação e o discurso de ódio nas redes – Imagem: iStockphoto e Kayo Magalhães/Agência Câmara
Mondego esclarece que ainda não se sabe se os rostos usados são de pessoas reais ou se é apenas um recurso de IA. “Em todo caso, é algo que ataca um segmento da sociedade, que são as pessoas com Síndrome de Down, a partir de uma hipersexualização de seus corpos. Mesmo que não apareça uma vítima específica, são imagens que atentam contra a dignidade da pessoa humana”, justifica.
Presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara, o deputado federal Reimont, do PT, requisitou à PGR que a Polícia Federal adote as medidas cabíveis para investigar os perfis responsáveis pelas publicações e que notifique o Instagram e o TikTok para a remoção dos citados conteúdos, prestando os esclarecimentos pertinentes. “Essa denúncia é mais uma prova de que não podemos mais adiar a regulação das big techs. A utilização indevida de imagens de pessoas com deficiência, de forma degradante e discriminatória, evidencia a ausência de mecanismos eficazes de controle e responsabilização por parte dessas plataformas”, diz o parlamentar.
Ao focar na proteção de crianças e adolescentes, a proposta do governo toca em um aspecto essencial e urgente. “É um avanço possível, especialmente diante do bloqueio conservador em relação à regulação da desinformação.” O petista acrescenta, porém, que o governo não pode contentar-se com uma regulação minimalista. “A bancada do PT, certamente, trabalhará para aperfeiçoar o texto, ampliando a proteção de grupos vulneráveis, como as pessoas com deficiência, e reforçando mecanismos de responsabilização das plataformas, inclusive no que diz respeito à remoção de conteúdos abusivos e à prevenção de práticas criminosas”.
Líder da bancada do PSOL, a deputada federal Talíria Petrone afirma que a pressão tem de vir de fora para dentro, porque “a bancada das fake news” é grande no Congresso. “Quem é contra que as big techs estejam sujeitas às leis nacionais está a favor dos crimes. Está sendo conivente com os criminosos que submetem crianças e adolescentes a desafios violentos e macabros. O Brasil não é terra sem lei”, conclui. •
Publicado na edição n° 1365 de CartaCapital, em 11 de junho de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Cavaleiro solitário’